Exército Romano: um agente do Emaranhamento Cultural

Roman Army: an agent of Cultural Entanglement

 

Érika Vital Pedreira[1]


Resumo

Em um brevíssimo estudo sobre as dedicações epigráficas às divindades femininas plurais de quatro províncias ocidentais do Império Romano (Germânia Inferior, Bética, Gália Lugdunense e Britânia), aferimos que as populações locais não permaneceram passivas à ocupação de seus territórios, mas adotaram, rejeitaram e ressignificaram elementos da religiosidade que lhes chegavam de fora, mantendo, igualmente, elementos e práticas preexistentes. Tal estudo se insere nas atuais pesquisas sobre Império Romano, que demonstram a impossibilidade de compreendê-lo como um sistema homogêneo no qual os romanos, entendidos como um grupo coeso e indistinto, utilizavam seu poderio bélico para subjugar populações igualmente homogêneas e pouco complexas. Ao invés, verificamos a grande heterogeneidade étnica e cultural dos membros do Exército que, aliada à variabilidade cultural presente nas províncias, possibilitou a disseminação de práticas romanizadas e regionais bem como a criação de novas práticas emaranhadas

Palavras-chave: Exército Romano; Emaranhamento Cultural; Divindades Femininas Plurais.

Abstract

In a very brief study of the epigraphic dedications to the plural female deities of four western provinces of the Roman Empire (Germania Inferior, Baetica, Gaul Lugdunense and Britannia), we concluded that the local populations did not remain passive in the occupation of their territories, but they adopted, rejected and resignified elements of religiosity that came to them from outside, while also maintaining preexisting elements and practices. This study is part of the current researches on the Roman Empire, which demonstrate the impossibility of understanding it as a homogeneous system, in which the romans, understood as a cohesive and indistinct group, used their war power to subjugate populations that were equally homogeneous and not very complex. On the contrary, we verified the great ethnic and cultural heterogeneity of the members of the Army which, allied to the cultural variability present in the provinces, made possible the dissemination of romanized and regional practices, as well as the creation of new entangled practices.

Keywords: Roman Army; Cultural Entanglement; Plural Female Deities.


 

 

 

 

Introdução

Ao longo de nossos estudos sobre o Império Romano percebemos que sua extensão abarcou um grande número de populações nas quais os elementos que caracterizam a “cultura romana” (Culto Imperial, arquitetura, instituições e cargos públicos, traços da religiosidade, entre outros), ganharam contribuições locais, mantendo, assim, especificidades e variações de região para região. Contudo, para chegarmos a essa percepção e esse entendimento, muito vem sendo discutido sobre os contatos interculturais e seus resultados dentro dos domínios do Império. Da mesma forma, observamos a grande evidência dada atualmente aos estudos de cultura material que permitem aos pesquisadores entrar em contato com os modos de vida, costumes e crenças das populações provinciais. Tais estudos, principalmente os de epigrafia, são muito caros para as propostas desse breve artigo.

A partir de meados dos anos 90 uma nova abordagem acerca das pesquisas sobre Império Romano ganhou força. Nesse período passamos a observar uma inclinação dos arqueólogos e pesquisadores em geral para os estudos pós-coloniais (DOMMELEN, 2012, p. 2), o que fomentou discussões sobre poder imperial e as formas como as populações conquistadas lidaram com a dominação. A Teoria Pós-colonial colocou em evidência tópicos como resistência, apropriação, ressignificação de práticas e diferentes modos de contato.

Os estudos sobre Roma e suas províncias, sofreram uma profunda transformação, liderados por autores como Hingley (1997; 2010), Webster (2003; 1997) e Woolf (1990; 1998; 2001; 2005) dentre outros, que vêm contestando as teses tradicionais e defendendo que o Império Romano não pode ser entendido como um sistema homogêneo. Ao invés, é ele um conjunto de diversas experiências, no qual cada província manteve suas características locais, adequando as práticas romanas às suas necessidades específicas.

No bojo das novas abordagens, o conceito de Romanização sofreu revisões e novos conceitos foram forjados e aplicados aos estudos dos contatos interculturais dentro do Império Romano. Conceitos como hibridismo (BHABHA, 1998), hibridização (JIMÉNEZ, 2011) e emaranhamento cultural (STOCKHAMMER, 2012; 2013), buscam demonstrar a impossibilidade de uma dominação irrestrita e homogênea associada à ideia de aculturação e enfatizam as transformações que ocorreram tanto nas sociedades locais, quanto na “romana”, demonstrando que o contato não se resumiu à dominação pura e simples de um pelo outro, mas de uma interação entre práticas culturais e cotidianas.

A composição heterogênea do Império Romano levou à necessidade da criação de mecanismos de integração de sua diversidade cultural, o que se deu em grande parte por meio de práticas de domínio não coercitivas. Verificamos a tentativa de estabelecer um código cultural comum, que fosse acessível e que pudesse ser compartilhado por todos os habitantes do Império. A reorganização espacial e política das regiões conquistadas, bem como uma atitude agregadora no que concerne às práticas religiosas, constituíram mecanismos importantes de integração.

Contudo, não podemos olvidar que ainda que padrões tenham sido disseminados para todas as regiões, tais como a prática da epigrafia em latim e o Culto do Imperador, cada província manteve certa autonomia cultural e características locais, adaptando as práticas adotadas às suas necessidades específicas, ou ainda, a partir delas, criando novas práticas.

Nesses diferentes contextos sociais que se formaram a participação do Exército Romano foi decisiva na criação de produções emaranhadas. Tendo em vista que seus integrantes eram provenientes de diversas províncias e viviam itinerantes pelas regiões do Império, traziam consigo crenças, práticas religiosas e divindades, tanto de suas terras de origem, quanto de outras regiões onde estiveram em campanhas.

Para compreender tais dinâmicas e complexidades, aqui utilizaremos amplamente o conceito de Emaranhamento Cultural desenvolvido por Stockhammer, segundo o qual os objetos e as práticas produzidos e utilizados em contextos de dominação, interação e contatos interculturais, são únicos com características singulares, pois são os resultados do poder criativo desencadeado por esses encontros (STOCKHAMMER, 2013, p. 14-15).

            Stockhammer (2012b, p. 49-51) destaca dois tipos diferente de emaranhamento, classificados de acordo com o caráter do material arqueológico analisado, a saber: emaranhamento relacional, que ocorre quando o objeto é apropriado e integrado nas práticas locais, nos sistemas de significado e nas visões de mundo, e emaranhamento material, que ocorre quando existe a criação de algo novo.

            Dentre as produções epigráficas aqui estudadas identificamos ambos os tipos de emaranhamento. O emaranhamento relacional pode ser percebido na apropriação e ressignificação de práticas religiosas romanizadas e celticizadas, tais como a produção de epígrafes dedicadas a divindades locais em língua latina. Nesses casos podemos observar a utilização de algo já existente, as práticas são reelaboradas de forma a criar algo novo.

            O emaranhamento material está presente nos objetos resultantes dessas práticas. Nesse

ponto temos a apropriação de topônimos e etnônimos locais para a produção de novas divindades, bem como o exemplo dos legionários, agentes da colonização, que veneravam Coventina, uma divindade local da região de Carrawburgh.

A partir dessa breve introdução, vamos demonstrar como o Exército Romano atuou, não apenas como um agente colonial dentro das províncias, mas também como um agente do Emaranhamento Cultural, na produção de comunidades, práticas culturais e religiosidades emaranhadas.

 

O Exército Emaranhado e as Divindades Femininas Plurais

            O Exército Romano pode ser descrito como a maior organização do Império contando com mais de 400.000 componentes entre soldados e oficiais, que serviam em Roma, na Península Itálica e nas províncias. Isso porque, aparentemente, a vida no Exército era bastante atrativa, pois, além de proporcionar abrigo, alimentação e pagamento por serviços prestados, ainda garantia status superior ao de outros grupos sociais (FIELDS, 2009, p. 6).

Segundo Fields (2009, p. 7-10), inicialmente os soldados que compunham as legiões eram recrutados no norte da Península Itálica, mas, ao longo do primeiro século d.C. também passaram a ser recrutados nas províncias, dentre elas, Hispânia, Gália Narbonense, Noricum e

em cidades gregas como a Macedônia. Tanto que, em fins do primeiro século, o número de soldados provenientes da Península Itálica já era bem pequeno (SOUTHERN, 2006, p. 141-142). Os membros das tropas auxiliares, por exemplo, eram recrutados em meio às populações provinciais, sendo formadas por não-cidadãos ou peregrini, e depois dos 25 anos estabelecidos para o serviço, eles e seus descendentes recebiam a cidadania (SOUTHERN, 2006, p. 143-144; D’ANATO; RUGERI, 2016, p. 9-10). Roymans (2004, p. 223) destaca que as sociedades provinciais eram um terreno fértil para a obtenção de soldados relativamente baratos, dentre os quais era fácil disseminar valores como bravura e lealdade à autoridade de Roma.

Na grande maioria das vezes o Exército estava em trânsito a fim de solucionar conflitos, rebeliões, entre outras questões nas regiões conquistadas, contudo, segundo Southern (2006, p. 140), em fins do segundo século II d.C., algumas legiões e tropas auxiliares, assim como destacamentos menores (vexillationes), ficaram permanentemente estacionadas em 19 províncias, principalmente nas regiões de fronteira ou limes. A esse respeito, Roth (1999, p. 96-101) afirma que a presença do Exército era um evento lucrativo, como também era um fator importante no desenvolvimento da economia das províncias.

Como afirmam D’anato e Rugeri (2016, p. 7), as tropas assentadas criavam a demanda por suprimentos (vinho, azeite, cereais) e outros bens (cavalos, animais de tração, couro, metal, cerâmica) em grandes quantidades. Nas províncias ocidentais, por exemplo, a presença do Exército foi uma das causas do que Woolf (1998, p. 169-205) denominou como “revolução de consumo”, com novos padrões de consumo e ampliação dos mercados provinciais.

Logo, a qualquer local que as tropas se deslocassem, eram seguidas de perto por mercadores e outros negociantes, artesãos, escravos, e também mulheres, que buscavam não só lucrar, mas também usufruir de proteção, urbanização e outras facilidades trazidas para a região (SOUTHERN, 2006, p. 141). Do mesmo modo, quando montavam acampamentos permanentes ou semipermanentes, tais acompanhantes se assentavam em pequenas comunidades de imigrantes denominadas canabae (WIERSCHOWSKI, 1984, p. 123; 2002, p. 284-288; WHITTAKER, 2002, p. 216-217). De acordo com Southern (2006, p. 142), as canabae poderiam, inclusive, desenvolverem-se para assentamentos maiores e mais sofisticados, tornando-se municipia ou coloniae.

            Devido a este intenso contato com as populações locais, podemos afirmar que o papel do Exército foi decisivo para a disseminação de valores e práticas romanas/romanizadas, contudo, devemos atentar para duas questões importantes. Primeiramente, a heterogeneidade do Exército Romano no que concerne à etnia dos soldados corroborava com a produção e disseminação de práticas emaranhadas, especialmente no que se refere à religiosidade. Em segundo lugar, tais soldados não permaneceram ilesos aos contatos com as populações provinciais, adotando e ressignificando eles mesmos práticas da localidade, o que igualmente

fomentou a produção e a disseminação de práticas religiosas emaranhadas.

Assim, como ressalta Stoll (2007, p. 451), ainda que houvesse um calendário religioso romano, e que seu cumprimento, principalmente a observância do Culto do Imperador, significasse lealdade à Casa Imperial, as tropas baseadas nas províncias, graças à proximidade e relacionamento com as populações locais, desenvolveram práticas religiosas, cultos, rituais e até mesmo divindades com características únicas e regionais. Da mesma forma, a mobilidade constante das tropas garantiu igualmente que práticas religiosas, bem como teônimos e epítetos de divindades viajassem de uma província para outra, corroborando, assim, na variabilidade e particularidades regionais. Dentre alguns exemplos estão o culto às divindades femininas e divindades femininas plurais, dos quais destacamos as Matronae Aufaniae, muito populares entre os legionários da I Legião Minerva, baseadas em Bonn, na Germânia Inferior, e o culto à deusa Coventina em Carrawburgh, nas proximidades da Muralha de Adriano.

            Definimos como divindades femininas plurais aquelas divindades que são cultuadas de forma pluralizada e aparecem em duplas, trios ou grupos maiores tanto na epigrafia quanto na iconografia. Essas divindades foram identificadas em todo o território europeu da Antiguidade e, dependendo da região em que são cultuadas, assumem ou recebem diferentes títulos (Matres, Matronae. Nymphae, Deae, Proxumae, Parcae, entre outros), epítetos (Aufaniae, Ollotatae, Pannoniae, Dalmatae, entre outros), no caso da epigrafia, e diferentes estilos escultóricos e materiais de produção, no caso da iconografia. Tais diferenças dependem das crenças, etnias, status social e financeiro, motivações e necessidades de seus dedicantes, da disponibilidade de materiais na região onde a peça foi produzida, bem como da etnia e técnica aplicadas pelo seu escultor.

 

As Matronae Aufaniae

Graças à concentração de altares votivos, acredita-se que às Matronae Aufaniae foram

dedicados dois templos ou santuários na Germânia Inferior – um em Bonn e outro em Nettersheim. Os sítios, entretanto, possuem características distintas, sendo o primeiro situado próximo a uma área pantanosa e o segundo em uma colina conhecida como Gorresburgh (GARMAN, 2008, p. 51).

            Como nos mostram as inscrições, em Bonn os principais dedicantes às Matronae Aufaniae são os legionários da I Legião Minerva, que ocupou a região entre 80 e 230 d.C. Todavia, outros dedicantes se identificam como beneficiarii consularis, questores, decuriões, ou, simplesmente, portam o tria nomina, o que nos garante sua cidadania. A monumentalidade e os ricos ornamentos dos altares também atestam os altos status dos dedicantes, pois tais peças só poderiam ser pagas por pessoas de posses.

            O epíteto AUFANIAE pode ser traduzido como “de locais pantanosos” – *Au- significa “origem”, “proveniente de”; *fan significa pântano (NEUMANN, 1987, p. 114). Esse significado é bastante provável no caso do sítio em Bonn, pois a I Legião Minerva estava assentada entre o rio Reno e uma área pantanosa. Dessa forma, as dedicações, em sua maioria de legionários, eram realizadas em favor das divindades dos “locais pantanosos”.

Já em Nettersheim, onde o templo estava situado em região elevada, uma explicação possível para a manutenção do epíteto AUFANIAE e consequentemente do culto a essas divindades, reside na mobilidade do Exército e a popularidade desse grupo de deusas entre os legionários. Segundo Lehner (1919, p. 301-321), isso pode ser atestado por uma inscrição datada do ano 196 d.C. (abaixo), em que o beneficiarius consularis menciona ser também membro da I Legião Minerva.

 

Matronis | [Auf]anis. | Iustinius | [Can]didus, | [mil(es) le]g(ionis) I M(ineruiae),

P(iae), F(idelis) b(ene)f(iciarius) | [co(n)s(ularis), pr]o se et suis, u(otum) s(oluit) | [l(ibens)

m(erito), Dextr]o II et Prisco co(n)[s(ulibus)]

Para as Matronae Aufaniae Iustimius Candidus soldado da I Legião Minerva Pia

Fidelis e beneficiarius consularis cumpriu um voto de bom grado por si e pelos seus sob o

consulado de Dextro II e Prisco

(CIL[2] XIII, 11991 = AE[3] 1911, 0158)

 

            Dedicações às Aufaniae também foram encontradas em Mogúncia, Rheinland-Pfalz, na Germânia Superior (CIL XIII, 6665), Colônia, Zülpiche (CIL XIII, 7897; CIL XIII, 7920 a; CIL XIII, 7921; AE 1981, 677), Xanten (AE 1977, 566), Nimègue, Holanda (CIL XIII, 8724), Bürgel (CIL XIII, 8530), Jülich (AE 1955, 36) e Nettersheim-Zingsheim (Finke 256).     Devido às evidências epigráficas, acreditamos que, assim como em Nettersheim, a dispersão do epíteto ocorreu graças à mobilidade do Exército e seus acompanhantes, aos contatos com as populações provinciais e à popularidade das Aufaniae entre esses indivíduos.

            Como abordado em meu artigo, O Triplismo em revisão. Estudos de caso: Hispânia, Gália e Britânia Romanas, de 2018 para a revista Brathair, inscrições mencionando o epíteto Aufaniae também foram encontradas em outras províncias, tais como Hispânia e Gália, todavia, com características bastante diversas, o que os identifica como cultos locais e bastante diversos daqueles das Germânias.

Diferentemente das inscrições da Germânia, em uma inscrição de Carmona, na Bética, província da Hispânia, verificamos a substituição do título Matronae por Matres, o que confere ao epíteto, ainda que de origem extrapeninsular, características locais (PEDREIRA, 2018, p. 76). Blasco (2015, p. 163) destaca uma possível hipótese em favor da origem extrapeninsular do dedicante, Marcus Iulius Gratus que, devido à dedicação às Aufaniae, se trataria de um legionário da Germânia em expedição ou estacionado na Hispânia.

Entendemos que o dedicante se apropriou do epíteto AUFANIAE e dele se utilizou da forma que sabia, ou ainda da forma que era comumente aplicado na localidade, tendo em vista que o título Matronae, não era utilizado na Hispânia. Ademais, deve-se considerar que tanto o material utilizado para sua produção, mármore da Bética; o estilo do altar, sem adornos ou relevos, apenas com a inscrição; o próprio lapidário que produziu a peça; da mesma forma que o local de culto, seriam provenientes da Hispânia, tornando o culto às Matres Aufaniae um culto local.

 

Matribus Au/[f]aniabus M(arcus) /Iul(ius) Gratus

Marcus Iulius Gratus para as Matres Aufaniae

(CIL II supl. 5413)

 

            Uma dedicação às Aufaniae também foi encontrada em Lion, na Gália Lugdunense. Nesta província, no entanto, verificamos uma tripla dedicação, com características bem diversas do exemplo anterior. Nesse caso particular, os três grupos de divindades cultuados – AUFANIAE, PANNONIAE e DALMATAE – são provenientes das Germânias, sendo as Matronae Pannoniae e Dalmatae originárias, provavelmente da Panônia e da Dalmácia, respectivamente (PEDREIRA, 2018, p. 78).

 

Pro salute dom(ini) / n(ostri) Imp(eratoris) L(uci) Sept(imi) Severi / Aug(usti) totiusq(ue)

domus / eius Aufanis Ma/tronis et Matribus / Pannoniorum et / Delmatarum / Ti(berius)

Cl(audius) Pompeianus / trib(unus) mil(itum) leg(ionis) I Min(erviae) / loco

exculto cum / discubitione et tabula / v(otum) s(olvit)

Pela saúde de nosso senhor imperador Lucius Septimius Severus e toda a casa de Augusto

seu Claudius Pompeianus tribunus militum da I Legião Minerva cumpriu um voto para as

Matronae e Matres Aufaniae, Pannoniae e Delmatae

(CIL XIII, 1766 193)

 

De forma distinta do culto às Aufaniae na Bética, que receberam o título Matres, em Lion, o título usual Matronae foi mantido para esses três grupos de divindades plurais. A explicação, provavelmente, reside em seu dedicante, T. Claudius Pompeianus, Tribunus Militum da I Legião Minerva, que em expedição às Germânias trouxe consigo a prática de culto a essas divindades, o que demonstra a origem estrangeira das mesmas (PEDREIRA, 2018, p. 78).

 

            Interessante destacar que a I Legião Minerva, fundada pelo imperador Domiciano em 82 d.C. e que ficou estacionada em Bonn na Germânia Inferior, teve diversas vexillationes (destacamentos) que atuaram em outras regiões do Império, tais como a Panônia, a Dácia (entre 101 e 106 d.C.) e Lugdunum (Lion), na Gália Lugdunense (entre 198 e 211 d.C.).

A I Legião Minerva também teve um importante papel na subida de Septímio Severo ao trono no século III, o que explica a dedicação de T. Claudius Pompeianus. Como nos mostra Birley (1998), antes de chegar a imperador, Septímio Severo foi governador da própria Gália Lugdunense em 184 d.C. e mais tarde da Panônia Superior, onde recebeu o comando de três legiões a fim de defender as fronteiras, e só saiu em 193 d.C. para assumir o trono, após uma disputa conturbada. Uma hipótese possível é que, T. Claudius Pompeianus tenha servido o Exército na Panônia sob o comando de Septímio Severo e, tendo por ele grande lealdade, utilizou-se, nessa inscrição, de divindades de regiões onde o Imperador teria atuado a fim de pedir proteção para o mesmo.

Através das inscrições verificamos a intensa contribuição do Exército Romano na disseminação de títulos, epítetos e cultos das divindades femininas plurais; ao mesmo tempo as inscrições também evidenciam as distinções na forma de utilizar tais elementos, que ainda que sejam os mesmos, resultam na criação de cultos e divindades completamente diferentes de uma região para a outra.

 

Coventina, Ollototae e Transmarinae

            Assim como nas demais províncias, na Britânia, o emaranhamento de práticas está evidente tanto na epigrafia, quanto na iconografia, devido, principalmente às variações, associações e confluências entre epítetos, teônimos e atributos, também com outras divindades. Nessa província, entretanto, o epíteto AUFANIAE não foi identificado, sendo a Britânia palco de um outro fenômeno bastante particular e igualmente interessante.

            A Britânia se caracteriza por ter sido uma província de ocupação militar e, diferentemente das demais, de onde algumas tropas eram recrutadas, os legionários que ali se

fixaram eram provenientes das outras províncias – Gália, Hispânia e Germânias, sobretudo dos Países Baixos – onde o culto às divindades femininas plurais era muito difundido. A maioria desses legionários se fixou nas proximidades da Muralha de Adriano e em suas dedicações buscavam proteção para as batalhas, auxílio nas campanhas e no pós-morte.

            Apesar da pouca ocorrência de epítetos, dois deles se tornaram característicos da Britânia – OLLOTOTAE e TRANSMARINAE – não sendo identificados em nenhuma outra província, evidenciando um culto às divindades estrangeiras ou de além-mar. Essa característica corrobora a hipótese de que os cultos às divindades femininas plurais viajaram pelas regiões do Império Romano juntamente com o Exército e foram trazidos de outras províncias para a Britânia.

 

I O M et Matribvs Ollototis sive Transmarinis Pomponivs Donatvs B F Cos pro salvtte sva et svorvm V S L M

(RIB[4] 1030)

 

As inscrições que aludem às divindades estrangeiras são, quase que em sua totalidade, dedicadas por membros do Exército e depositadas em regiões próximas à Muralha de Adriano, como o caso da dupla dedicação acima mencionada (para Jiulius Optimus Maximus e para as Matres Ollototae ou Trasnmarinae), em que a epígrafe foi produzida a pedido de um beneficiarius consularis e depositada, ao que tudo indica, no forte de Binchester (PEDREIRA, 2018, p. 81).

 

             Ao todo foram encontradas 14 epígrafes, todas na região norte da Britânia, que fazem referência às Matres de outros locais. Quatro delas são claramente dedicadas às Matres de outras províncias, tais como Itália, Gália, Germânia, África, além da própria Britânia (RIB 88; RIB 653; RIB 3332; RIB 2064), e uma dedicada às Matres de todas as populações (RIB 1988).

 

Cives Galli de(…)ae Galliae concordesque Britanni

Os cidadãos de Gália e Britânia em concordância dedicaram para as Galliae

(RIB 3332)

 

            A inscrição acima, dedicada às Deae Galliae, encontrada no forte de Vindolanda, apresenta uma dedicação em conjunto, entre habitantes da Gália e da Britânia, demonstrando que o culto às Matres e outras divindades femininas plurais era realizado e conhecido em ambas as províncias. A presença de cidadãos da Gália na região sugere também a existência de um fluxo, não apenas de legionários, mas de outros indivíduos entre as províncias, possivelmente acompanhantes do Exército, ou ainda, veteranos originários da Gália que decidiram permanecer na Britânia ao fim do serviço militar.

Graças às evidências epigráficas acreditamos que os legionários e outros membros do Exército ali estacionados, bem como indivíduos itinerantes que acompanhavam as tropas, buscavam homenagear e prestar cultos pedindo proteção às divindades de suas terras de origem ou ainda de outras regiões pelas quais passaram em suas campanhas. Ao mesmo tempo se apropriavam eles de elementos locais, agregando-os na produção de novos cultos e novas divindades, que são emaranhados, como veremos no caso da deusa Coventina.

Coventina, deusa local da região norte, onde foi fundado o forte de Brocolitia (Carrawburgh), ganhou grande parte das dedicações das tropas ali estacionadas e, em algumas delas – bem como na iconografia que recebeu – recebe o título Nymphae. Uma fonte e um poço preexistentes e a proximidade com um santuário dedicado às Nymphae e ao Genius Loci na região (ALLASON-JONES, 1996; 2004), podem ter contribuído para a associação de Coventina com as Nymphae e com o culto das águas.

Para compreendermos Coventina certa análise de seus dedicantes, assim como de seu teônimo em si, é necessária. Seus dedicantes eram basicamente membros do Exército Romano, vindos da Germânia – Batavos, Cubernos, Frisiavones, Frisios – como já mencionamos, e estacionados no forte de Brocolitia. Ao mesmo tempo, várias grafias diferentes foram encontradas para o teônimo Coventina (Covetina, Covetine, Coventine, Covontine, Coventinae, Covventinae, Convetinae, Conventinae) (PALACIOS, 2017, p. 168), ao que Raybould (1999, p. 28), afirma ser uma mistura de experiências célticas e germânicas, em um contexto de comunicação oral.

Corroborando essa ideia, Palacios (2017, p. 169-172), a partir de uma discussão sobre a etimologia do teônimo, aponta duas hipóteses: a primeira se baseia em estudos acerca das partículas que compõem o teônimo, ou seja, *co, *con, *com ou *kom; -venta-, que pode ser encontrado em vários nomes de lugares na Britânia (Venta Icenorum, Venta Belgarum, Venta

Silurum) e os sufixos –ino, -ina, comuns tanto no céltico quanto no latim; a segunda se baseia

em uma origem germânica – o que faz sentido se pensarmos que seus dedicantes eram provenientes das Germânias – devido à existência de duas inscrições encontradas na Germânia Superior, Coventalis (AE 2003, 1265), em Rheinzebern, e Coventi (CIL XIII, 6028), em Gundershoffen.

Defendemos que nenhuma das duas hipóteses supracitadas, a de Raybould (1999) e a de Palacios (2017), devem ser descartadas, pois, se pensarmos na Britânia dos séculos II e III d.C., sobretudo nas regiões de ocupação militar, verificamos um emaranhado de populações, indivíduos originários de Gália, Hispânia e Germânias que trouxeram consigo suas crenças, divindades e formas de culto, e na Britânia entraram em contato com outras crenças, divindades e formas de culto. Webster (1986, p. 78) acredita, por exemplo, que a fonte do Poço de Coventina já era adorada antes da construção da Muralha e que os dedicantes da deusa podem ter encontrado os vestígios de um santuário local e o adotaram.

Concordamos com Raybould (1999, p. 28) de que o contato e a comunicação entre diferentes populações orais podem ter criado o teônimo, e devido à ausência de um padrão para sua grafia, várias formas foram utilizadas. Contudo, reafirmamos a importância de pensar a inovação, o emaranhamento cultural, ao invés da análise de suas origens em separado. Dessa forma, classificamos o culto à Coventina, bem como a própria deusa, como locais por terem sido eles criados e desenvolvidos na Britânia, produtos do emaranhamento entre elementos diversos, provenientes de várias regiões.

            Aproximando-nos da conclusão constatamos que, graças ao papel de difusor da cultura desempenhado pelo Exército Romano e seus acompanhantes, os cultos às divindades femininas plurais moveram-se de uma província para a outra e, mesmo que a crença em deusas-mães e divindades femininas fosse comum a diversas populações, a manutenção e utilização de teônimos, títulos e epítetos similares não deixa dúvidas de que estes foram transportados enquanto eram praticados, deixando rastros em todas as regiões. Todavia, de forma alguma defendemos que esses cultos e divindades viajantes chegaram inalterados aos seus muitos destinos, ao invés, foram adaptados e ressignificados, receberam contribuições de crenças e práticas regionais, assim como, novos teônimos, títulos e epítetos relativos à topografia e às etnias locais. Foram eles utilizados na produção de novas divindades femininas plurais que são emaranhadas. A partir delas verificamos e afirmamos a variabilidade regional.

 

Referências bibliográficas

 

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Recebido em 21/05/2022.

Aceito em 20/06/2022.



 



[1] Graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Mestre em História pelo Programa e Pós-graduação da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF) e Doutora em História pelo mesmo Programa. Membra e pesquisadora do Grupo INSULAE – Grupo de estudos sobre Britânia, Irlanda e Ilhas do Arquipélago Norte, na Antiguidade e no Medievo. Professora concursada da SEEDUC-RJ. Brasil. E-mail: erikavitalp@yahoo.com.br | https://orcid.org/0000-0001-5980-1388.

[2] Corpus Inscriptionum Latinarum.

[3] L’Année Epigraphique.

[4] Roman Inscriptions of Britain