História pública, racismo e intolerância religiosa: desafios e possibilidades. Uma conversa com a historiadora Juliana Teixeira Souza

                                                                                            

  Juscelino Barros[1]

 

Nos últimos anos o debate em torno da função do historiador nos espaços públicos tem se tornado cada vez mais intenso. Especialmente devido aos constantes usos do passado nas mídias por parte de grupos reacionários, em sua maioria não especializados em história, se utilizando de narrativas históricas para fins ideológicos. Tais ações têm resultado numa crescente negação e minimização de problemas tais como o racismo e a intolerância religiosa sofrida por grupos de matriz africana. Tais discursos possuem um forte efeito capilarizador na sociedade, visto que o caminho da negação destes problemas não tem incidido sobre as pessoas ligadas às classes privilegiadas do Brasil que, por sua vez, detêm o monopólio dos meios de comunicação. Infelizmente os efeitos desses discursos têm afetado sobretudo minorias e grupos marginalizados que necessitam em grande medida de políticas públicas de inclusão, bem como de ações afirmativas que ajudem a reparar esses problemas estruturais.

Neste sentido, essa entrevista visa apresentar um diálogo com uma historiadora pública, negra, professora universitária, com algumas considerações a partir de sua experiência no ensino superior sobre as barreiras que se impõem no enfrentamento do racismo e da intolerância religiosa e sobre possibilidades de proposição para a mudança do nosso cenário. A iniciativa é fruto de uma sugestão feita pela professora Viviane Trindade Borges, que ao ministrar a disciplina História Pública na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), no programa de pós-graduação, estabeleceu como desafio publicar uma entrevista sobre um tema ligado às pesquisas individuais. O tema do racismo e da tolerância me toca profundamente, dado o fato de que também sou um indivíduo negro.

A professora Juliana Teixeira Souza[2] lecionou algumas disciplinas na graduação e na pós-graduação da UFRN: História da África, História do Brasil Republicano, História do Brasil Imperial, Os excluídos da História do Brasil Republicano, Ensino de História e a questão das temporalidades e Teoria da História. Participa do grupo de Pesquisa “Espaços, poder e Práticas Sociais”. Participa regularmente dos processos de avaliação do PNLD.

Essa entrevista foi realizada no dia 28/04/2022, tendo aproximadamente 1 hora e meia de gravação, sendo transcrita e editada. A professora Juliana Teixeira foi minha professora em 2018, em uma disciplina sobre a temática da Escravidão no Século XIX, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Depois do momento em que a conheci, me senti profundamente tocado por suas palavras. Espero que essa entrevista possa trazer informações relevantes e contribuir com a reflexão sobre a temática desses temas tão sensíveis e necessários ao nosso país e tempo.

 

1ª parte: Um panorama sobre a História Pública no Brasil

Juscelino Barros: Como você define História Pública?

 

Juliana Teixeira: É um dos novos campos de pesquisa da História. No Brasil, há aproximadamente uma década, ou um pouco mais, é evidente o empenho de um número significativo de historiadores em transformar e consolidar a História Pública como um campo de pesquisa. O que isso significa? Primeiramente, que é evidente o esforço desses profissionais na construção de uma identidade para o grupo. Ou seja, há profissionais que se identificam como especialistas do tema por debaterem objetos de pesquisa e problemas comuns, além de compartilharem referenciais teóricos, e se veem tão diferentes dos demais especialistas da área de conhecimento, que decidiram se reunir numa organização própria, que é a Rede Brasileira de História Pública. Além de publicações dedicadas ao tema, aspecto que buscam explicitar já nos títulos e subtítulos de seus livros, esses especialistas também investem na publicação de dossiês dedicados à História Pública em vários periódicos de nossa área, como a Revista Estudos Históricos, Transversos, Percursos, Canoa do Tempo, História Hoje, Tempo e Argumento. Outra ação importante para a formação de um campo de pesquisa é a participação coordenada em eventos, estratégia também efetivada pelo grupo. Só no último Simpósio Nacional de História, ocorrido em 2021, havia pelo menos quatro Simpósios Temáticos sobre a História pública, sendo um ST já ocupando-se em fazer um balanço da produção desse campo, verificando o estado da arte. Por fim, para a constituição de um campo de pesquisa também é essencial a organização de eventos próprios, o que também já existe, como os Simpósios Internacionais de História Pública, já ocorridos na USP, UFF e URCA. Quanto aos objetos de pesquisa, os interesses desses historiadores são os mais diversos. Confrontar os negacionismos, pensar as pautas dos movimentos sociais e grupos marginalizados, discutir sobre políticas públicas voltadas para o ensino e a preservação do patrimônio histórico e problematizar os usos do passado são apenas alguns dos mais recorrentes. O espectro é muito amplo, mas acredito ser possível afirmar que a questão-chave é a relação da História com a sociedade, entendendo como a história dialoga, é mobilizada e consumida pela sociedade.

 

Juscelino Barros: Você se considera uma historiadora pública?

 

Juliana Teixeira: Eu me considero uma historiadora pública, muito embora não me identifique como uma especialista em História Pública. Deixe-me me explicar para não parecer contraditória, porque, na verdade, isso tem relação com a forma como enxergo meu ofício. Depois que fui aprovada em concurso e passei a trabalhar como docente numa universidade federal, em razão de minha visão de mundo, minhas convicções e posicionamentos políticos, me sinto impelida a não perder de vista minhas responsabilidades como servidora pública, considerando as especificidades da função social da história. Isso significa que, como professora, acredito que é imperativo pautar temas de relevância social, discutir os problemas da sociedade atual. Jamais perco de vista que, em meu principal espaço de atuação profissional, eu formo professores que vão atuar na Educação Básica, que estarão na linha de frente de uma luta muito e cada vez mais disputada que é a formação de cidadãos num país marcado pela desigualdade e exclusão, sempre assombrado pelo passado autoritário. Então, em minha atuação profissional cotidiana, em sala de aula, nunca faz parte do exercício cotidiano confrontar os negacionismos, pensar as pautas dos movimentos sociais e grupos marginalizados, problematizar os usos do passado e discutir sobre políticas públicas de ensino. Portanto, pensar em como a história dialoga, é mobilizada e consumida pela sociedade é invariavelmente o meu ponto de partida para todo planejamento de aula.

 

2ª parte: Lidando com o racismo e a intolerância religiosa

Juscelino Barros: Conte um pouco sobre sua relação, seja pessoal ou acadêmica, com os seguintes temas: racismo e intolerância religiosa sofrida por grupos de matriz africana.

 

Juliana Teixeira: Por ser negra, e também mulher da favela (onde nasci, cresci e me formei, e de onde só saí depois de ingressar no doutorado), passei na universidade por situações em que o racismo se manifestou de forma muito sutil, mas indisfarçável, como quando um professor, ao saber de meu interesse em ingressar na pós-graduação, me perguntou se eu já não havia ido longe o suficiente. Outra situação foi quando me inscrevi para um concurso público e uma professora repetidamente me dizia que o concurso era para doutores, depois de se mostrar nitidamente incomodada com meu interesse e perguntas sobre aquele concurso, já que na sua percepção parecia evidente que eu não cumpria com o principal requisito aos candidatos. Por fim, já impaciente, eu disse que era doutora, mas não voltei para fazer o concurso, porque fiquei me perguntando: que chance eu tenho de ser aprovada num concurso quando as pessoas explicitam, de antemão, que minha aparência não corresponde às expectativas do candidato que procuram. Fiquei tão traumatizada com a situação que, no concurso seguinte em que me inscrevi, em outra instituição, na universidade em que atuo hoje, apareci com cabelos esticados com escova e chapinha, com receio de que opiniões sobre minha imagem pudessem comprometer a avaliação sobre meu desempenho. A banca do concurso em que fui aprovada não fez nenhum comentário sobre aparência de ninguém, não me deu motivo algum para ter essa preocupação, mas a experiência anterior não me saiu da cabeça e a verdade é que, por medo do racismo, eu mudei minha aparência. Já como professora, uma das situações mais desconfortáveis que vivenciei nos idos de 2010. Tendo chegado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte há poucos meses, um colega de departamento me surpreendeu ao afirmar, com muita convicção que “o negro não foi uma questão no Rio Grande do Norte”. A conversa era sobre os intelectuais negros Eloy Castriciano de Souza e Henrique Castriciano de Souza[3], irmãos da poetisa Auta de Souza, que tiveram relevante atuação no cenário político e cultural local nas primeiras décadas do século XX, integrando o seleto grupo de sócios fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte - IHGRN. Investigar as relações raciais na história local a partir da trajetória desses irmãos me parecia uma ideia promissora, mas o colega foi categórico e afirmou que nem os intelectuais negros se interessaram em pensar a participação do negro na formação sociedade norte-rio-grandense. Noutra ocasião, em 2016, numa reunião da área de conhecimento Mundo Moderno do Departamento de História da UFRN, fiquei chocada ao ouvir a crítica ao plano de ensino que havia apresentado, sob o argumento de que o objetivo do componente curricular que eu iria ofertar, propondo “valorizar a história de luta e o patrimônio cultural dos africanos e afro-brasileiros”, seria inadequado por pretender “ensinar os alunos a amar” o tema de estudo que, no caso, era a população negra. A objeção insinuava, e de forma muito franca, que a legitimidade daquela proposta de ensino estava comprometida pelo interesse de promover crenças e paixões pessoais, opinião que não foi contestada pelos demais colegas presentes na reunião. O plano foi retirado de pauta e tive de apresentar uma segunda versão. Esses episódios são a ponta de um iceberg que não pode ser ignorado, que é a persistência do preconceito racial, ainda que velado, nas universidades. Quanto à intolerância religiosa, o maior desafio tem sido lidar com o preconceito em sala de aula. Eu leciono sobre História e Cultura afro-brasileira na universidade e, dando aula sobre religião, já tive aluno dizendo que iria se retirar de sala de aula se eu continuasse a falar no assunto. Eu procurei lidar com a situação com muita cautela, perguntando para a pessoa os motivos do desconforto com o tema e, por caminho que eu não havia planejado, consegui chegar aonde eu queria, que era mobilizar toda a turma num debate que articulasse a discussão acadêmica, histórica e antropológica sobre intolerância religiosa, de uma forma que todas as opiniões fossem ouvidas e respeitadas. Acredito que muitos estereótipos tenham sido desconstruídos naquela aula, pois a pessoa não se retirou da sala. Mas nesses anos de magistério, a experiência mais tocante para mim foi quando, no fim do semestre, um aluno de meia idade veio até minha sala e apertou minha mão, agradecendo por minhas aulas terem mostrado para ele que apesar de se considerar uma pessoa progressista, ser um eleitor de partidos de esquerda, ele descobriu serem racistas muitas das ideias pré-concebidas que ele tinha sobre as razões dos cidadãos negros serem a parcela mais pobre da população. Fiquei muito tocada com a humildade dele em reconhecer isso que estava errado e, obviamente, como professora, me senti plenamente realizada. 

 

Juscelino Barros: A intolerância religiosa sofrida por adeptos de religiões africanas a seu ver tem relação direta com o racismo?

 

Juliana Teixeira: Sobre essa relação, não resta a menor dúvida. Por quase 400 anos, a escravidão foi uma instituição legalmente e culturalmente aceita nesse território que foi a América portuguesa e posteriormente se tornou o Brasil. E muito embora a referência legal para a escravidão na Europa Moderna, e posteriormente na América colonizada, fosse o Direito Romano, foi a Igreja quem legitimou essa instituição no século XV, por meio das bulas papais que autorizavam a escravização perpétua e comercialização da população africana, com o fim de convertê-la à fé cristã. Até o século XIX, os povos africanos tiveram sua humanidade questionada, e foram considerados sem história, sem cultura e sem religião, e no século XX, mesmo intelectuais identificados com o campo político progressista não hesitaram em classificar os africanos como povos “bárbaros” e de “nível cultural ínfimo”, caso de Caio Prado Júnior em Formação do Brasil Contemporâneo[4]. Atualmente, já dispomos de um volume considerável de estudos evidenciando os fundamentos profundamente racistas do pensamento social brasileiro na primeira metade do século XX. Essas ideias e visões de mundo circulam na sociedade como um todo, especialmente quando são produzidas por sujeitos que ocupam espaços de poder que potencializam as perspectivas de difusão e suas ideias, seja o Estado, a imprensa, as universidades, as escolas etc. Os africanos são sempre representados como esse Outro estereotipado e distorcido, e nesse cenário é óbvio que suas manifestações culturais, e em especial as práticas religiosas, se tornam alvo de todo tipo de discriminação, especialmente por parte dos agentes do poder público, sendo duramente condenadas e perseguidas. Séculos de demonização e marginalização cobram seu custo, especialmente num país em que a instituição da escravidão, antes mesmo do seu fim, foi sendo substituída por outras estratégias de dominação que visavam naturalizar e legitimar a exclusão da população negra por meio de sua desqualificação, de sua inferiorização. Como historiadores, não podemos perder de vista que a ideia de liberdade e igualdade que muitos compartilham hoje é relativamente recente. Foi preciso o horror do Holocausto ocorrer no continente supostamente mais civilizado do mundo para que intelectuais e a comunidade científica se mobilizassem para decidir se, afinal, a humanidade era ou não constituída por diferentes raças. O genocídio sistemático das populações nativas da África, América e Ásia jamais mobilizariam esse tipo de iniciativa. O desafio é que, apesar do conceito biológico de raça ter sido invalidado, o racismo como fenômeno racial persiste, na medida em que a noção de raça continua sendo largamente utilizada pelas pessoas, de forma velada ou explícita, como critério de diferenciação entre os diferentes grupos de sujeitos.

 

3ª parte: Riscos, limites e possibilidades de proposições no contexto de enfrentamento do racismo e da intolerância religiosa no Brasil

Juscelino Barros: Quais são os limites e os riscos na atuação pública dos historiadores e das historiadoras que lidam com o tema do racismo e da intolerância religiosa sofrida pelos grupos afro-brasileiros?

 

Juliana Teixeira: Um limite difícil a ser contornado é que, apesar de dispormos há várias décadas de um conhecimento denso e qualificado sobre o racismo e a intolerância religiosa, nós, historiadores, continuamos consubstanciando esse conhecimento predominantemente na forma de livros, artigos publicados em revistas acadêmicas e comunicações em eventos científicos. Isso ocorre porque são essas produções que recebem pontuação mais alta em nossos currículos, e todos precisamos de currículos altamente pontuados para conseguir empregos, participar de concurso público, avançar na progressão de carreira e participar de editais de financiamento público. Há uma outra questão simbólica em jogo na medida em que é esse o tipo de produção mais valorizado pelos pares, e investir nisso é indispensável para aqueles que buscam visibilidade e prestígio dentro do campo, sem contar que essa visibilidade e prestígio geram demanda por participação em publicações e eventos, que por sua vez aumentam a pontuação do currículo e favorecem na concorrência via editais de financiamento. Ou seja, é um círculo que se retroalimenta e esse círculo é determinado pelos interesses do mercado, já que em última instância estamos nos referindo ao acesso e controle de postos de trabalho, hegemonia do mercado editorial e financiamento público para projetos de pesquisa, que a rigor não precisam ter relevância social, nem tampouco dialogar com a sociedade de forma mais direta. A atuação dos profissionais que se identificam com o campo da História Pública, como dos demais profissionais da História que atuam nas universidades, não escapa a essa lógica. Vivemos numa sociedade capitalista e penso que negar a forte influência do mercado na nossa atuação profissional é muita ingenuidade, ou mera impostura. O que quero dizer com isso é que dialogar com a sociedade com o fim de contribuir de uma forma mais efetiva e propositiva para o enfrentamento ao racismo e à intolerância religiosa não está no topo das preocupações da maior parte dos historiadores, nem mesmo daqueles que se identificam como pesquisadores no campo da História Pública e se dedicam a estudar temas vinculados à História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, porque esse diálogo não apenas é dispensável para o êxito profissional em nosso campo, como pode até atrapalhá-lo, já que demanda um investimento de tempo e esforço que poderia ser dedicado, por exemplo, à produção de textos para revistas acadêmicas e comunicações em eventos científicos. E isso sem contar que a escolha política de priorizar a luta contra o racismo e a intolerância religiosa, de se assumir como militante ao empunhar bandeiras históricas dos movimentos sociais, ainda pode levar alguns pares a lhe verem com desconfiança, como se explicitar nosso lugar social e nossas opções políticas fosse comprometer a qualidade do nosso trabalho, distorcendo nossa capacidade de análise ou algo do tipo. Me parece que esses são alguns dos problemas que limitam nossas ações. Quanto aos riscos, na minha avaliação pessoal, é o mau uso dos poderes e autoridade que nos são investidos em razão do lugar que ocupamos na sociedade, como historiadores, como pesquisadores da área das Ciências Humanas, das Ciências Sociais, posição que faz com que a sociedade nos identifique como pessoas qualificadas a emitir opiniões balizadas e verdadeiras sobre os fenômenos sociais. Apesar da maioria dos colegas preferir evitar de comentar sobre esse tipo de coisa publicamente, não vou esconder que me causa tremendo desconforto ver alguns profissionais de História se utilizarem os espaços de poder que ocupam para minimizar o problema da intolerância religiosa e do racismo no Brasil. Me refiro, por exemplo, a José Murilo de Carvalho, professor titular da UFRJ, que não teve o menor constrangimento de lamentar que a disciplina da família branca tenha sido minada pela presença de escravizados dentro de casa, como escreveu no livro Os bestializados[5], ou Ronaldo Vainfas, professor titular da UFF, que deu uma entrevista à imprensa portuguesa afirmando que o racismo no Brasil se limita a um tipo de “discriminação quotidiana, que passa muito por uma cultura de deboche, de piadas”[6]. O risco, nesse caso, é reforçar o estereótipo negativo que pesa sobre a população negra, minimizar o drama do sofrimento causado pelo racismo e alimentar o discurso que insiste em negar o peso da discriminação racial na perpetuação da desigualdade e exclusão em nosso país. Nossa cultura de discriminação produz miséria, violência e morte. Então, admiti-la explicitamente apenas como piada é um acinte.

 

Juscelino Barros: A seu ver, em que medida nós profissionais da Clio, podemos colaborar com o enfrentamento da intolerância religiosa no Brasil, especialmente aos indivíduos ligados a religiões de origem africana?

 

Juliana Teixeira: Como cientistas que se ocupam, por ofício, de estudar e compreender as relações humanas, uma forma elementar de colaborar para o enfrentamento da intolerância religiosa e do racismo, em suas mais diversas formas de expressão, é empreendermos investigações metodologicamente orientadas para conhecer esse fenômeno: suas raízes históricas; as causas de sua permanência e as mudanças ocorridas no correr do tempo; as estratégias mobilizadas pelos sujeitos que se empenham em sua produção e difusão; as consequências sofridas pela população negra; seu impacto na política, economia, cultura e relações sociais; e ainda as estratégias exitosas, ainda que parcialmente, no enfrentamento do problema da intolerância religiosa e do racismo em diferentes lugares. Realizar investigações científicas sobre o problema, metodologicamente orientadas e capazes de produzir conhecimento verdadeiro com base em evidências verificáveis, é fundamental não apenas para que possamos melhor conhecer esse problema, mas para que também possamos construir projetos de futuro que viabilizem a superação dos desafios que o problema nos impõe. Daí a importância da História Pública, porque de nada adianta produzir esse conhecimento se ele ficar confinado dentro dos muros da universidade. Precisamos confrontar publicamente o discurso que insiste em negar a intolerância religiosa e o racismo em nossa sociedade; precisamos dialogar com os movimentos sociais e conhecer suas demandas e aprendizados acumulados por meio da experiência de luta política; precisamos discutir sobre políticas públicas voltadas para o ensino e a preservação do patrimônio histórico afro-brasileiro, sem nos limitarmos a opinar e criticar o que está posto, mas sim procurando assumir uma postura mais propositiva, sugerindo estratégias de ação fundamentadas em estudos e debates qualificados; precisamos nos comprometer com a divulgação científica, em produzir conhecimento em diferentes formatos escritos e audiovisuais, com a colaboração e profissionais de outras áreas, que possam ser difundidos e consumidos por toda sociedade. E avalio que precisamos, com urgência, parar de enxergar o ensino na Educação Básica como um campo de atuação menor e menos prestigiado dos profissionais de História, porque esse é segura e reconhecidamente um dos mais importantes e estratégicos espaços de luta contra a intolerância religiosa e o racismo no país. Os processos de aprendizagem desenvolvidos no espaço escolar têm potencial para resultar em experiências de aprendizagem profundamente significativas, que vão impactar no processo de formação das crianças e jovens, formando e informando suas ideias, visões de mundo e representação sobre a diversidade humana, atendendo à necessidade imperativa de tornar essa diversidade reconhecida e valorizada. No fim das contas, aprender a reconhecer e valorizar a diversidade é condição indispensável para a luta contra a intolerância religiosa e o racismo.

 

 

Recebido em 09/05/2023.

Aceito em 17/08/2023.



[1] Mestre em História. Doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/FAED). Brasil. E-mail: juscelino.bdsf@edu.udesc.br | https://orcid.org/0000-0002-8193-829X

[2] Doutora em História. Professora titular do departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail:  juliana.teixeira.souza@ufrn.br

[3] Nascido em Pernambuco, Eloy de Souza (1873-1959) era bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, realizou estudos sobre o problema da seca no Nordeste, foi redator do jornal República (RN) e escreveu para diversos jornais do país, tornando-se uma das principais referências do jornalismo político local. Eloy de Souza foi deputado da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte entre 1895 e 1897, deputado federal pelo Rio Grande do Norte entre 1897-1914 e 1927-1930, e exerceu mandato de senador entre 1914-1927 e 1935-1937.  Seu irmão, Henrique Castriciano de Souza (1874-1947), bacharelou-se em Direito no Rio de Janeiro, foi jornalista e literato, fundou a Escola Doméstica de Natal (1914), foi eleito deputado estadual e vice-governador do estado do Rio Grande do Norte entre 1915 e 1924.

[4] PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo, Brasiliense, 2000, p. 280. O livro foi originalmente publicado em 1942, e Caio Prado Jr. estava vinculado ao Partido Comunista desde os anos 1930.

[5] CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 159. O livro foi originalmente publicado em 1987, e José Murilo de Carvalho se tornou professor titular do curso de História da UFRJ em 1997.

[6] FERREIRA, Leonídio Paulo. “No Brasil nunca houve um Ku Klux Klan”, Diário de Notícias, Lisboa. Disponível em: https://www.dn.pt/mundo/no-brasil-nunca-houve-um-ku-klux-klan-8776741.html. Acessado em 20 abr. 2022. A entrevista com o historiador Ronaldo Vainfas, professor titular do curso de História da UFF, foi feita no Rio de Janeiro.