História pública e divulgação científica na luta do PCESP pela educação democrática: entrevista com Renata Aquino

 

                                                                                               Silvia Vitorassi[1]



 

Esta entrevista foi desenvolvida na disciplina de História Pública, Narrativas Históricas e Vetores de Memória, do curso de Doutorado em História da UDESC, ministrada pela professora Dra. Viviane Trindade Borges[2]. A disciplina foi ministrada no contexto de retorno às aulas presenciais após o período de aulas remotas, causado pela pandemia da Covid19. Além disso, foi ministrada num formato novo dentro do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) sendo concentrada em apenas um mês[3].

O motivo que me levou a entrar em contato com a Professora Renata Aquino foi o fato de já conhecer um pouco a trajetória do PCESP através das redes sociais. Renata Aquino é Professora de História, bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (2016), Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores (UERJ), na linha de pesquisa Ensino de História e Historiografia. Pesquisadora dedicada ao ensino de história, teoria da história, movimentos conservadores na educação, neoliberalismo e tecnologia[4].

Sendo assim, às 10h20min do dia 21/03/2022, nos reunimos em uma videochamada através da plataforma Google Meet[5], para a realização da entrevista. Contemplando um roteiro definido previamente, as perguntas giravam em torno de eixos como: História Pública (CAUVIN, 2019); Divulgação científica (LEAL; TAVARES, 2019); Pluralidade de ensino e educação democrática.

Trago abaixo o resultado deste encontro, que foi muito proveitoso e trouxe reflexões importantes sobre as possibilidades de divulgação científica, as demandas em fazer História Pública e também a busca do grupo PCESP em lutar contra o avanço do movimento “Escola Sem Partido”.

 

Silvia Vitorassi: Para começar, eu gostaria que você falasse um pouco sobre a sua trajetória dentro do Professores contra o Escola Sem Partido e como o grupo funciona (onde e como surgiu e quem são as pessoas envolvidas).

 

Renata Aquino: Obrigada pelo convite, Silvia. Obrigada pelo reconhecimento ao grupo PCESP e pela nossa atuação nesses últimos anos. O grupo começou no final de 2015 e eu estava terminando a faculdade de História, na verdade começou com outro grupo. Em 2015 eu participava do grupo de estudos do Fernando Penna[6] sobre Ensino de História e Teoria da História na UFF, comecei a participar dos encontros desse grupo em 2014. Era um grupo que juntava muito ensino e teoria da História, nós estávamos escrevendo sobre as relações entre agência histórica e o interesse dos alunos pela disciplina escolar de História e a concepção de tempo que aparecia nas aulas, na fala dos professores e nos escritos e falas dos alunos – que nós mais ou menos conseguimos capturar com determinadas metodologias.

Por muito tempo discutimos agência histórica e estávamos acompanhando as aulas de uma professora que fazia muita relação com o tempo presente, falava muito de notícias, etc., e isso parecia ser interessante. Nessa época começamos a ler Hannah Arendt[7] e tivemos contato com coisas sobre História Pública – só Hannah Arendt nesse momento, fomos ler mais coisas quando entrei no mestrado –, mas então, estávamos ali entre 2014-2015, especialmente eu e Fernando, pensando muito em coisas sobre como era importante para o ensino de história e significativo para os alunos verem a importância da disciplina naquilo que eles estão discutindo, deixar claro as relações entre a sala de aula e o mundo público, na esfera pública.

Nesse momento a nossa referência era basicamente arendtiana para pensar em esfera pública, apesar do texto famoso dela A crise na educação[8] – que tem “zilhões” de problemas –, é curioso como outras produções dela, ao nosso ver na época e em partes até hoje em dia, mas isso é outra história, serve bem para pensar algumas questões de ensino de história; chegamos a desenvolver isso em textos. Estávamos muito com isso na cabeça e, em 2015, não tenho certeza, mas acho que foi por meio de um e-mail, naquele grupo de e-mails do GT de Ensino de História da ANPUH Nacional, o Fernando tomou conhecimento do movimento “Escola Sem Partido”, achou curiosíssimo, foi olhar o site, ficou chocado com a coisa e falou disso no encontro do grupo.

E aí começamos a acompanhar, o Fernando começou a falar disso nas aulas dele de Prática de Ensino de História na UFF e então outros alunos que não faziam parte do grupo de estudos, mas tinham aula com ele em PPE – na UFF é Pesquisa e Prática em Ensino de História, nós chamamos de PPE – também se interessaram. Naquele ano começou uma greve de professores federais e quando entrou o segundo semestre de 2015 o Fernando pegou isso para discutir.

Já tinha projeto de lei na época na Câmara dos Deputados e também já estava se espalhando, pois naquele tempo em 2015 estavam acontecendo todas aquelas questões em torno das discussões locais, municipais, estaduais, sobre o Plano Estadual e Municipal de Educação, que era uma consequência da aprovação, no ano anterior, do Plano Nacional de Educação.

Passamos a discutir essas coisas como atividade de greve, eu que tinha tido contato pelo grupo de estudos do Fernando, mais uns alunos que faziam a disciplina com ele e mais um amigo meu que eu chamei para ir, ele gostou das conversas e também foi participando, e a partir daí fomos criando um movimento, que na época chamamos de “Movimento de Liberdade para Ensinar”, depois ficamos incomodados com ensinar e mudamos para educar, criamos uma página no Facebook, a qual usávamos para divulgar notícias sobre o “Escola Sem Partido” – naquela época era de vez em quando que apresentavam um projeto novo – ou então estudando o site deles.

Naquele ano mesmo já tinha um projeto na Câmara Municipal do Rio de Janeiro por causa da relação que os projetos têm, muito umbilical, com a família Bolsonaro[9]. Como o Rio de Janeiro tem um vereador da família Bolsonaro, no final daquele ano em dezembro teve uma audiência pública sobre o projeto “Escola Sem Partido” que estava na Câmara do nosso município, e nós fomos lá assistir a audiência. Acho que esse foi o primeiro evento institucional, político, em torno do “Escola Sem Partido” que nós fomos assistir presencialmente. A coisa ganhou mais visibilidade a partir dali e nós começamos a ser chamados para entrevistas – e aí é uma coisa muito importante para a história do PCESP, especialmente ali no início –, quando nós falávamos disso na faculdade, quando o Fernando levava esse tema para outros espaços, geralmente achavam que estávamos basicamente “dando palco para maluco”, pois era algo que ninguém acreditava que ia passar.

Hoje em dia eu tenho um vocabulário para isso, na época não, mas, era muito uma questão de: “as instituições vão barrar isso” e, se ele não for aprovado institucionalmente não vai virar prática social. Hoje eu vejo também que nós estávamos atrasados em todos os movimentos de pesquisadores e intelectuais que acompanhavam o movimento antigênero, que já era uma questão naquele momento. Ali já estava surgindo essa consciência de que era uma questão transnacional também. Em 2015, o “Escola Sem Partido” já estava adotando esse discurso sobre gênero, tanto que a minha entrada para estudar o ESP foi pela questão de gênero, até hoje é o que eu mais gosto de estudar no movimento.

Então o Fernando criou a página no final do ano – ou início de 2016 –, Professores Contra o Escola Sem Partido (PCESP). Ele queria uma coisa que no nome, e foi bem esperto nisso, as pessoas que procurassem o “Escola Sem Partido” no Facebook também chegassem até nós. Então é por isso que tem o “Escola Sem Partido” no nosso nome, isso vem de uma estratégia de inserção nas mídias digitais, tentando “pescar” a atenção de quem estivesse ali procurando o movimento – e sempre foi muito focado no Facebook, o Instagram e o Twitter foi um pouco depois.

E nisso de sermos o grupo que estava cobrindo mais de perto, começamos a ser chamados para entrevistas e, com o grupo ampliado dificultava um pouco, pois as pessoas discordavam em como fazer. Eu não tinha nenhuma experiência em movimento estudantil, acompanhava a política e tinha algumas ideias, mas não era uma pessoa ativa politicamente para além de Facebook e de acompanhar as notícias. Vários dos meus colegas também eram assim. Depois de 2016 é que recebemos uma amiga que já era mais mobilizada em sindicato e muito mais esperta politicamente, era professora do município e do estado há algum tempo, a Fernanda Moura[10]. Ela entrou posteriormente no grupo.

Nesse primeiro momento nos separamos do MLE (Movimento de Liberdade para Educar) e viramos PCESP (Professores Contra o Escola Sem Partido), éramos eu, Fernando Penna, Diogo Sales, Fabiane Melo, Karina Martins – ela entrou mais ao longo de 2016 – e o Maurício também, ele estava saindo da faculdade, mudando e não participou tanto, mas no início estava, e a Elisa Garcia que era bem ativa no início, mas saiu por causa de um intercâmbio, mas era muito companheira.

Em 2016 focamos em seguir fazendo isso, porque assim, é muito curioso pensar que naquele momento, qual era o trabalho a ser feito sobre o “Escola Sem Partido”? Era descobrir o que ele era. Nós da parte progressista, que não vínhamos de grupos de direita, conservadores, era desvendar o que era aquilo. E para a imprensa era mostrar que isso não é uma coisa razoável, não são pais discutindo ética ou neutralidade, é outra coisa.

Nosso trabalho era muito esse de denunciar, porque quando entramos na discussão pública sobre o ESP ele já estava estabelecido, como por exemplo, alguém que era entrevistado de vez em quando, o enquadramento de “doutrinação” já era algo que o movimento tinha emplacado, as entrevistas usavam isso e no máximo usava entre aspas e até falavam que “o movimento afirma que existe doutrinação”, mas, também havia uma dezena de notícias que usavam isso no título sem colocar aspas, uma forma de legitimar esse enquadramento.

Nos colocamos ali para tentar jogar isso “para o lado” e tentar uma forma de desmontar esse enquadramento, mostrar que ele era problemático por milhões de questões. Esse era o nosso trabalho e também o de convencer que ele era um perigo e algo que as pessoas deviam se mobilizar para deter o quanto antes.

 

Silvia Vitorassi: Sabendo que o PCESP tem podcast, site e redes sociais e, como o foco desta conversa é a História Pública, você pode falar um pouco como gerenciam a produção de conteúdo e a divisão de tarefas?

 

Renata Aquino: Isso mudou bastante ao longo do tempo, acho que foi o que mais mudou. Em resumo, acabava tendo muito a ver com quem estava administrando as redes em cada momento e isso muda bastante ao longo do histórico do grupo. O Instagram e o Twitter começaram quando o Diogo Sales estava mais ativo, ele foi ativo durante sua permanência, mas desde que ele saiu a dinâmica mudou bastante.

Em 2016-2017 a companheira do Diogo também começou a participar e ela também é formada em História, mas é professora de inglês, a Luiza Brandão. Os dois tinham um “timing” muito sintonizado com as redes sociais, de humor, de “memes”[11]. Eles eram bem bons nisso e como eram companheiros, faziam juntos. Nesse tempo, 2017... não lembro bem na verdade, mas em 2019-2020 eram eles dois que estavam administrando Instagram e Facebook, o Twitter eu acho que foi ideia do Diogo. Eu ficava mais no Facebook, eu e Diogo dividíamos de 2016 até 2020.

Hoje em dia – o Diogo saiu em 2020 e a companheira dele também – o grupo está um pouco mais parado, mas as pessoas ativas mesmo, que administram as redes, cuidavam do podcast, somos basicamente eu e Fernanda Moura. A Fernanda fica no Instagram, e do Instagram vai para o Facebook, aquela coisa de compartilhar[12], e eu fico no Twitter.

E isso tem muito a ver também com o nosso uso pessoal das redes sociais, porque em 2020 e 2021 nós desistimos, eu e Fernanda, decidimos não tentar realmente “bombar” as redes, pois não tínhamos condições de acompanhar o tempo das redes sociais. Foi uma decisão por questões de “não dá” ou “é uma coisa que faz mal”, não dá para acompanhar e é melhor nos preservarmos não tentando.

Postamos de vez em quando e acho que hoje a principal atuação do movimento, acho não, tenho certeza: a principal coisa que a gente faz é que todos nós pesquisamos esse tema, eu e Fernanda mais de perto, o Fernando Penna acompanha, mas hoje em dia ele está voltado para o Ensino de História, está querendo discutir questões éticas de Ensino de História, tem várias lives dele com a Associação Brasileira de Ensino de História[13], ele está indo mais por esse caminho.

Como eu e a Fernanda pesquisamos isso, e por ter pesquisado muito a fundo, uma coisa muito importante que fizemos foi mapear os projetos. Ela começou na dissertação, a qual defendeu no final de 2016 no ProfHistória[14] da UFRJ. Depois que defendeu a dissertação, ela, eu e o Diogo Sales de vez em quando fazíamos uma maratona de atualizar uma planilha, até 2018, para ver onde tinha projeto. O esquema que tínhamos eram as nossas redes de conhecidos formadas a partir do grupo, mas especialmente era o “alertas Google”[15], nós configuramos um alerta para que recebêssemos notificação toda vez que saísse alguma coisa do ESP na mídia.

Muitos dos alertas eram notícias de jornais locais pequenos que diziam “vereador fulano apresentou um projeto de “Escola Sem Partido” em tal lugar” ou “deputada fulana apresentou o projeto para combater a “Ideologia de Gênero” de acordo com os princípios do “Escola Sem Partido” no nosso estado” ... É interessante notar que isso funcionava enquanto o “Escola Sem Partido” era notícia, para você ver como ele foi uma coisa chamativa.

O nosso argumento é que o ESP virou um palanque, virou realmente, fez parte de uma estrutura de oportunidade política – um palavreado dos estudos dos movimentos sociais – para quem quisesse receber atenção da mídia. Eu acho que isso fica muito claro numa recomendação que o Ministério Público mandou para a Câmara de Taubaté se não me engano, que foi quando um vereador apresentou o projeto do ESP, e nessa recomendação o MP falava que eles não podiam aprovar, que se continuassem tramitando o projeto poderiam ser processados por mau uso de dinheiro público – já que toda sessão tem uso de dinheiro público –, porque eles estavam discutindo uma matéria que tinha sido amplamente desmontada e que era reconhecidamente sem esforço legal. Acho um episódio interessante...

Então esse mapeamento que nós fizemos, todo o know-how[16] e as coisas que aprendemos, hoje em dia somos representantes do PCESP numa articulação de uma série de entidades, do campo feminista, do campo educacional principalmente, direitos humanos, antirracista, enfim, mais de cem entidades, e a gente se reúne de acordo com as demandas do momento desde 2018, para organizar uma ação de incidência no Supremo Tribunal Federal, para que votasse as ADI’s (Ação Direta de Inconstitucionalidade) e ADPF’s (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) que estavam lá sobre leis antigênero e sobre o ESP.

Como somos professores, auxiliamos de forma técnica, em termos de conhecer melhor os temas e as produções. Assim como o PCESP, essa articulação não fica só em censura, mas acaba pegando também temas como escola militarizada, questões racistas nas escolas, questões de laicidade. É uma articulação a qual nos reunimos de uma a duas vezes por mês, mas também outras ações que eventualmente essa articulação propõe e acabamos participando com o PCESP.

O podcast, quando começamos quem editava e fazia o trabalho braçal – que é enorme! – era o Diogo Sales. Quando ele saiu eu demorei um tempo ali para pegar o “jeito da coisa” e aprender a usar software de edição – ele já tinha ensinado algumas coisas, mas fazer sozinha é diferente. Eu fui fazendo e mantive durante algum tempo, mas não consegui manter o ritmo. Foi uma escolha nossa não tentar acompanhar o ritmo do que seria um bom desempenho em redes sociais para levantar as nossas demandas, porque as chances de elas ficarem bagunçadas, enquanto tínhamos outras coisas para priorizar, também era uma questão.

Além disso, também tinha a questão de não querer entrar no tempo das redes: a gente não quis e preferimos seguir dessa forma, de não submeter a nossa forma de atuar a isso. Preferimos atuar localmente, atuamos muito nessa articulação e mantemos as redes vivas aqui e ali, mas uma atuação mais efetiva e interessante teria que ter um nível de esforço e de trabalho que não recompensa. Em termos políticos é uma aposta, em termos financeiros não recompensa e toma muito tempo. Então tivemos que fazer várias escolhas e decidimos nos afastar um pouco.

Hoje em dia eu fico no Twitter e de vez em quando faço uma thread[17], retuíto coisas interessantes, mas, as redes sociais não são mais nosso foco. O nosso foco é essa articulação e manter o nosso site no ar, porque lá a gente já reunia muita coisa interessante.

 

Silvia Vitorassi: E quando começaram nesse modelo de divulgação científica, tiveram que lidar com questões técnicas? Alguém do grupo dominava esses formatos ou foi preciso uma “formação complementar”?

 

Renata Aquino: Não teve formação técnica, foi tudo no “feeling”, tudo na disposição de quem se sentia ali um pouco mais capaz de aprender como editar um áudio, como editar uma foto, todos acabaram tentando aprender a usar o Canva[18], principalmente o Diogo, eu e a Fernanda. Produção de memes quem fazia eram o Diogo e a Luiza. Nenhum de nós tinha nenhum tipo de formação técnica, o que aconteceu foi que a nossa relação com a tecnologia era muito de “é isso que os movimentos fazem atualmente”, tem que ter a página no Facebook, no Instagram, tem que ter uma presença nas redes sociais para divulgar nosso trabalho, então seguimos esse caminho. Fomos pensar sobre isso quando apareceram aquelas discussões sobre o tempo acelerado das redes, como é difícil não ter uma rede, etc., até nos afastarmos deliberadamente.

Mas, até chegar esse momento e enquanto tinha mais gente no grupo, tentamos manter uma presença a muito custo, era uma coisa bem sofrida, ainda mais que naquele momento o ESP era algo muito mais presente, continua hoje em dia, mas está no governo, nas estruturas e pode funcionar de maneira um pouco mais furtiva. É bem diferente, muito diferente, de como ele funcionava naquele tempo. Naquele tempo éramos muito drenados, sentíamos que gastávamos energia não só para existir nas redes mas para combater o ESP.

Então era desgastante, profundamente desgastante. Cada coisa que irritava, cada vídeo de perseguição, cada vídeo de pessoas falando, compartilhando e comentando, era aflitivo. Acho que não é por acaso que hoje em dia uma das coisas que eu quero estudar é a relação entre mídias sociais e movimentos sociais. Enfim, o que eu queria comentar é que não tínhamos nenhuma formação e foi tudo no braço e de iniciativa própria, foi algo que nos deixou por muito tempo tendo uma relação pouco elaborada com essa existência da tecnologia, essa existência nas redes sociais.

Hoje nós lemos coisas que pensam sobre como as redes sociais também são um agente nessas interações, não é só o ambiente. Então certamente o fato de que esse momento se deu com as redes sociais como agente envolvido, foi algo que moldou essa ação política e social, tanto nossa como do ESP.

 

Silvia Vitorassi: Uma coisa que discutimos na disciplina é que enquanto historiadores, nós hoje, com essa questão dos movimentos das redes sociais, nos sentimos até um pouco perdidos na produção de conteúdo. Enquanto grupos os quais denominamos conservadores estão produzindo conteúdos técnicos muito mais à frente, nós que estamos na História, fazendo pesquisa séria, acabamos tendo essa dificuldade técnica, por isso a pergunta também, para entender como hoje isso está acontecendo dentro do PCESP...

 

Renata Aquino: Eu gosto de comentar sobre isso, pois achávamos que o nosso lado não estava presente, e então tentamos nos fazer presentes nas redes sociais, fazendo memes, vídeos, podcast, posts no Instagram, story[19], resenhando livro... E o que fica é que historiadores tem que ser presentes, mas, eu acho que não podemos ter um olhar ingênuo para a tecnologia e nem adotar, a meu ver, uma postura voluntarista nessa questão de se fazer presente. Essas redes têm alguns vieses que desfavorecem as nossas causas, sem falar que nós não temos o financiamento que muitos deles têm para fazer essas coisas circularem.

 Depois desse tempo todo, desses anos fazendo esse tipo de militância, hoje em dia no retrospecto – e isso é algo que discuti muito em uma disciplina da pós com o professor Rodrigo Turin[20] –, tudo bem: nós historiadores temos que fazer outras coisas, ser presente, fazer divulgação científica e nós nos víamos como tal, ou melhor, víamos mais como uma forma de enquanto pessoas formadas em universidades públicas, retribuindo à sociedade o que havíamos estudado, adquirido e desenvolvido, retornando a luta pelo direito à educação e fazendo essa interligação.

Vivíamos irritados com pessoas que “não faziam direito” o debate sobre o ESP, tentávamos usar o nosso conhecimento e todas as habilidades de retórica, de escrita, de sistematização de informações, delineamento de contextos, para denunciar o ESP e, quando passamos a ter oportunidade, entrar nessa articulação e usar esse conhecimento para algumas coisas mais ativas.

Com relação a História Pública, História acadêmica, era assim que nos víamos, fazendo uma ligação entre ela e a sociedade em geral. E eu queria destacar isso, pois nós não falávamos tanto em história, mas, mais de saber ler texto, identificar contexto – uma das habilidades enquanto historiadores das que mais utilizamos, embora uma pessoa que visse uma fala nossa pudesse imaginar que éramos da educação –, usávamos nossas habilidades historiográficas em outras coisas.

 

Silvia Vitorassi: Falar sobre Escola Sem Partido traz diversos desafios. Já tiveram que enfrentar ataques, comentários e denúncias? Como o grupo responde a este tipo de problema?

 

Renata Aquino: Recebíamos muitos desaforos na página do Facebook, comentários falando coisas horríveis. No início do grupo alguns eram mais chamativos e o Fernando costumava printar e usar nas falas públicas dele sobre isso, usava nos slides. Da nossa parte, acho que no início de vez em quando respondíamos, aquelas coisas de entrar em discussão, mas relativamente cedo vimos: não engaja, não responde comentário, criamos um conjunto de regras e excluíamos. Claro que tinha a questão de que éramos poucas pessoas e quando tinha algo que “bombava” muito era difícil manter o rastro e conseguir apagar tudo, ou então ocultar comentários, mas relativamente cedo paramos de responder.

Em termos de ataques não, teve uma ou duas vezes em que o criador do ESP printou algo nosso e falou, mas nenhuma ameaça direta, nada explícito. Teve coisas como nos chamar de vampiros, coisas que aconteciam em redes sociais na época, como: chamar de comunista, de doutrinador, que é horrível e eu não quero normalizar isso, mas é algo que nunca me senti em perigo.

Em um ou outro momento senti medo do Miguel Nagib[21], criador do ESP, já que ele é advogado e incentivava isso e poderia desenvolver uma paranoia de querer processar a gente, ele sabia como fazer, mas nunca aconteceu. Principalmente comigo e com as nossas páginas que eu sempre acompanhei, nunca tivemos nenhum ataque mais frontal.

 

Silvia Vitorassi:  E para encerrarmos, gostaria de pedir que você comentasse um pouco sobre como enxerga a situação do movimento (PCESP) na atualidade e como avalia o impacto do ESP no desenvolvimento do ensino plural e democrático.

 

Renata Aquino: Da parte do PCESP, eu percebo que ele foi efetivo. Volta e meia recebemos comentários de pessoas que acompanharam o nosso trabalho e que isso ajudou elas de alguma forma. Ele também foi significativo pelo fato de termos sido chamados para entrevistas, e essas entrevistas passaram a ter o ponto de vista contrário ao ESP, uma forma de resposta, e eu acho que é alguma coisa, embora seja uma dinâmica política que tem a ver com o tempo das redes sociais – dois movimentos em disputa e que ficam elevando o tom, mas o ESP passou a ter uma forma de resposta e alguém tentando desconstruí-lo.

Além disso, o ESP passou a ter um contraponto ao qual as pessoas podiam recorrer, foi importante existir um grupo que articulasse a crítica. Estudamos muito o ESP, até hoje eu conheço “de cabeça” três versões diferentes do projeto de tanto que estudamos e falávamos sobre na época. Nós conseguimos organizar o debate e isso é algo fundamental em um mundo com tanta produção de conteúdo, de texto, de imagem, de vídeo, de podcast. Em um mundo tão tomado por excessos, um grupo conseguir organizar uma discussão é uma coisa fundamental, e isso nós fizemos de forma muito significativa.

A ideia da Fernanda que o grupo desenvolveu junto e nós continuamos, eu e ela em 2020, de mapear os projetos, foi fundamental para organizarmos as ADPF’s no STF, as ADI’s e mandar para pontos locais para que esses projetos tivessem o devido combate.

Sobre o “Escola Sem Partido” e o que ele deixa para a educação é que foi um movimento social de muito sucesso, só não teve mais sucesso pois o criador dele é um cara “meio mimado” e o governo não foi tão longe quanto ele gostaria. O Miguel Nagib não tinha entendido como é a dinâmica do bolsonarismo, desse tipo de movimento político e se retirou do movimento dizendo que tinha sido usado como cabide de oportunidade política, e foi mesmo, mas, eu discordo do Nagib de que os princípios deles não foram levados à frente. Foram. Vários apoiadores, representantes do ESP que estão nas estruturas do MEC, hoje o MEC tem um gabinete paralelo, tem a Damares Alves[22], uma Ministra extremamente forte e que está aí quando até o Sérgio Moro saiu.

O ESP teve sucesso, conseguiu emplacar os enquadramentos deles de mundo, o termo doutrinação, ideologia de gênero – não é criação deles, mas ajudaram a impulsionar no país –, que eles adotaram e também serviu para melhorar o desempenho político deles, criaram vários projetos de lei e acho que ainda tem algumas leis antigênero em vigor, em lugares pequenos e que não teve o devido combate, enfim.

E a coisa mais preocupante e que fala mais com a sua pergunta é que eles conseguiram criar esse clima de autocensura, porque eles incidiram numa categoria, numa classe de profissionais fragilizada, infelizmente acostumada a ser desrespeitada, então professores acabam sendo estruturalmente muito propensos a se sentirem ameaçados por qualquer coisa. Nós na articulação até colocamos na nova versão do Manual de Defesa Contra Censura nas Escolas[23] porque é uma forma de censura, a pessoa que se autocensura para evitar problemas com pais, mães, coordenação. Ao meu ver, pelas coisas que eu estudo e me interesso, o principal legado é esse, além de implantar o medo na cabeça dos professores de darem aula de acordo com seu conhecimento, com a Constituição, afinal o movimento passou anos criminalizando essas coisas que deveriam ser básicas. Acho que é o principal sucesso do movimento que continua aí e que nós vamos demorar um tempo para desmontar.

 

Referências bibliográficas

LEAL, Bruno; TAVARES, Ana Paula. Introdução: os lugares do historiador divulgador. História pública e divulgação de história. São Paulo: Letra e voz, 2019.

CAUVIN, Thomas. A ascensão da História pública: uma perspectiva internacional. Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 11, n. 23, p. 8 - 28, maio/ago. 2019.

 

 

Recebido em 05/05/2022.

Aceito em 05/08/2022.

 

 

 

                                                           



[1]  Mestra em Ensino de História e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Brasil. E-mail: vitorassi.silvia@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-3446-4984

[2] Professora Associada da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), membro do Laboratório de Patrimônio Cultural (LabPac/UDESC), atuando no curso de graduação em História e como docente permanente no Programa de Pós-Graduação em História da UDESC e no Mestrado Profissional em História - ProfHistória. Coordenadora do programa de extensão Arquivos Marginais. Representante no Brasil da Red Iberoamericana de Historia de la Psiquíatria e membro da Rede Brasileira de História Pública. (https://www.udesc.br/faed/ppgh/corpodocente/vivianetrindadeborges). Acesso em 31/03/2022.

[3] As aulas aconteceram entre os dias 07 e 25 do mês de fevereiro de 2022, no turno matutino. Por ser concentrada e ser uma disciplina optativa, ela foi construída com a participação de outros professores e pesquisadores que falavam para a turma via videochamada, além de ter um volume menor de textos obrigatórios e mais debates em sala de aula.

[4] Informações coletadas em seu Currículo Lattes (http://lattes.cnpq.br/5282255854396480). Acesso em 31/03/2022.

[5] Google Meet é um serviço de comunicação por vídeo desenvolvido pelo Google. É um dos serviços que substituem a versão anterior do Google Hangouts.

[6] Diretor da Faculdade de Educação da UFF e professor do Programa de Pós-Graduação em História Social da FFP UERJ. http://lattes.cnpq.br/9967596498287478. Acesso em 14/04/2022.

[7] Filósofa alemã de origem judaica.

[8] Texto publicado em meados do século XX, no qual a autora discute, entre outras questões, o excesso de autonomia dado às crianças.

[9] Jair Bolsonaro, atual presidente do Brasil no mandato 2019-2022 e alguns dos seus filhos, também envolvidos com a política: Flávio Bolsonaro (Senador), Carlos Bolsonaro (Vereador) e Eduardo Bolsonaro (Deputado Federal).

[10] Fernanda Pereira de Moura é Mestra em Ensino de História pela UFRJ e atualmente é doutoranda em Educação pela PUC-Rio. http://lattes.cnpq.br/6515375673662756. Acesso em 14/04/2022.

[11] Meme de internet, expressão que designa uma imagem, vídeo ou gif relacionado a humor.

[12] Ambas redes sociais são administradas pela mesma empresa e, por isso, ao postar no Instagram você pode compartilhar o mesmo conteúdo no Facebook.

[13] ABEH é uma associação de direito privado sem fins lucrativos e que congrega os pesquisadores de Ensino de História. http://abeh.org.br. Acesso em 14/04/2022.

[14] Mestrado Profissional em Ensino de História.

[15] Serviço do Google que retorna resultados de uma pesquisa ao e-mail quando for encontrada uma citação de um termo pré-determinado.

[16] Habilidade adquirida pela experiência.

[17] Expressão utilizada no Twitter, em tradução livre “o fio”. Essa rede limita as postagens a 280 caracteres e, para contar uma história ou fazer uma postagem mais longa, os usuários postam diversos tweets que se conectam pelo tema e em sequência, isso é uma “thread”.

[18] Plataforma de design gráfico para criar materiais para redes sociais, apresentações, pôsteres e conteúdos visuais no geral.

[19] Vídeos de 15 segundos que ficam visíveis por apenas 24h no Instagram.

[20] Doutor pela UFRJ e atualmente é professor da UNIRIO, com experiência em Teoria da História, História da Historiografia, História Intelectual e História da Antropologia. http://lattes.cnpq.br/5721938287561420. Acesso em 14/04/2022.

[21] Miguel Francisco Urbano Nagib é advogado e fundador do programa “Escola Sem Partido”, iniciado em 2004 com um texto que serviu de inspiração a diversos projetos de lei homônimos pelo Brasil.

[22] No momento de realização da entrevista é a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos e pastora evangélica.

[23] Manual lançado em novembro de 2018 e disponível nos sites: http://www.manualdedefesadasescolas.org.br e http://www.manualcontraacensura.org.br. Acesso em 14/04/2022.