Cristãos e judeus: questionamentos teórico-metodológicos sobre fronteiras de identidade na Antiguidade

Christians and Jews: theoretical and methodological questions on identity boundaries in Antiquity

 

Pedro Luís de Toledo Piza[1]

 


Resumo

As relações entre cristãos e judeus nos primeiros séculos d.C. encontram-se entre os temas que mais movem pesquisadores e estudiosos de cristianismo antigo. Nesse sentido, os estudos de como se desenvolve a fronteira de identidade que separa ambos os grupos sociorreligiosos são fundamentais mesmo para pesquisadores que se voltam para outros temas e problemas, uma vez que necessitam delinear com qual grupo e quais pessoas estão trabalhando. O presente artigo pretende ser um insumo para que esses pesquisadores possam ter diante de si um quadro geral de como se dão tais relações e quais são os questionamentos teórico-metodológicos fundamentais postos pela historiografia e por uma breve análise de fontes-chave.

Palavras-chave: Cristianismo antigo; Judaísmo; Fronteiras de identidade.

 

Abstract

Relations between Christians and Jews in the first centuries CE attract many researchers and scholars of Early Christianity. Studies on the development of an identity boundary between these socioreligious groups are fundamental, even for researchers dedicated to other questions and problems, since they frequently need to outline the groups and people they are researching. This article hopes to be an input for these researchers having a general framework of how such relations are articulated and what are the fundamental theoretical and methodological questions brought up both by historiography and a brief analysis of some keysources.

Keywords: Early Christianity; Judaism; Identity Boundaries.

 

 


 

 

 

Introdução

            Para qualquer pesquisador que se volte para o estudo do cristianismo entre o século I e o começo do século IV d.C., um dos temas mais capciosos e difíceis de se trabalhar vem a ser o das diversas relações entre cristãos e judeus; relações de negociação e conflito, de oposição e interação e, não pouco frequentemente, relações de correligionários e membros de um mesmo grupo local ou supralocal. Uma vez que frente a um problema tão fundamental no período analisado acabam se encontrando não apenas pesquisadores especializados em estudar as diversas identidades cristãs e judaicas, mas também estudiosos que optam por outros enfoques, o presente texto se propõe a apresentar questionamentos básicos a respeito da existência ou não de fronteiras de identidade[2] entre os referidos grupos sociais, o que envolve pensar nas opções metodológicas mais interessantes para se abordar o tema. Esses questionamentos serão feitos sobretudo a partir de análises breves de documentos que considero especialmente relevantes para a construção de uma memória histórica a respeito, dentre os quais se encontram evangelhos, obras de gênero histórico e textos apologéticos.

 

Cristianismo e judaísmo em escritos cristãos dos primeiros séculos d.C.

Dentre as primeiras narrativas sobre Jesus, certamente os evangelhos ditos de Mateus e de João são os mais severos para com os judeus. Em Mateus 8,10-12, por exemplo, Jesus, diante da demonstração de fé de um centurião romano, profetiza a exclusão dos “filhos do Reino” do banquete escatológico, enquanto nações vindas de todas as direções reclinam-se à mesa com Abraão, Isaac e Jacó (uma imagem certamente dolorosa para muitos judeus). A razão para tal exclusão, na narrativa, é dada pelo próprio Jesus mais tarde, quando se encontra confrontando as autoridades do Templo de Jerusalém. Após relatar uma história na qual um proprietário procura a todo custo receber o pagamento de violentos arrendatários e que perde (previsivelmente) seu próprio filho em suas mãos, eis que ele pergunta provocativamente aos sacerdotes o que deveria fazer esse homem. Com a resposta óbvia de que deveria executar a lei de Talião, ele lhes retorna:

Nunca lestes nas Escrituras:

A pedra que os construtores rejeitaram

transformou-se em pedra angular;

isso é obra do Senhor

e é admirável aos nossos olhos?

Por isso vos digo que vos será tirado o Reino de Deus e será dado a um povo (ἔθνει) que produza os seus frutos. E quem cair em cima dessa pedra se despedaçará; e a pedra esmagará aquele sobre quem ela cair. (Mateus 21,42-44)

 

Os contendores de Jesus percebem na hora a que ele está se referindo e querem prendê-lo. Não conseguem em um primeiro momento, mas fazem-no depois. E, após levá-lo ao prefeito Pôncio Pilatos (errônea ou genericamente referido como governador), concretizam diante do último a rejeição à qual Jesus se referira: “O sangue dele [fica] sobre nós e sobre os nossos filhos” (27,25). Em Mateus, portanto, não existe conciliação possível entre os discípulos de Cristo e o povo que o rejeitou, mesmo que o autor aceite a existência de uma etapa da missão exclusivamente voltada para Israel (cf. 10,5-6). Por mais que esse evangelho prescreva que toda a Lei judaica continua válida até em seus menores risquinhos (5,17-19)[3], aparentemente ela será doravante seguida por outro povo, ou melhor, outros povos, pois os “filhos do Reino” rejeitaram-na ao rejeitarem aquele que veio para dar-lhe pleno cumprimento.

Se Mateus é severo para com os judeus, o Evangelho de João o é em dobro. Nele, a rejeição a Jesus já é anunciada logo ao início, quando fala do Logos que “veio para o que era seu e os seus não o receberam” (João 1,11). Diferentemente do evangelho precedente, que preferia personificar em sujeitos ou facções específicas a oposição dos “filhos do Reino” ao Cristo, João com frequência generaliza tal oposição de forma flagrante. Desse modo, Jesus é representado quase que o tempo todo discutindo violentamente com “os judeus”. Ainda que o autor do evangelho demonstre em diversos pontos do texto ter ele mesmo uma ascendência judaica[4], o modo como representa o povo judeu em sua obra é inteiramente marcado pelo desprezo. Discordando do Jesus de Mateus, o Logos encarnado de João não enxerga os judeus como “filhos do Reino”; eles são, ao invés, “filhos do diabo”, uma vez que persistem na mentira e no homicídio, como seu pai. Por essa mesma razão, o Cristo joanino não aceita ser identificado com eles:

Disse-lhes Jesus: ‘Se Deus fosse vosso pai, amar-me-íeis. Eu vim de Deus e vou [para Deus]. Pois não vim por mim mesmo, mas foi ele que me enviou. Por que razão não percebeis o meu discurso? Porque não conseguis ouvir a minha palavra. Vós sois [filhos] do diabo, vosso pai; e quereis pôr em prática as vontades do vosso pai. (João 8,42-44)

 

A citação é sintética da forma como o autor do evangelho[5] concebe as diferenças entre os seguidores de Cristo e os judeus. A fronteira é nítida e, pode-se dizer, de ordem cosmológica: os primeiros são “filhos de Deus” (1,12), os últimos “filhos do diabo”; consequentemente os primeiros estão do lado da verdade, enquanto os últimos são mentirosos como seu pai. Difícil conceber qualquer comunhão ou contato entre os dois grupos a partir desse texto. É provável que uma visão tão dualista, tanto das relações entre cristãos e judeus quanto da própria realidade, fosse oriunda de alguma experiência traumática na vida do autor. Muitos comentadores a veem refletida no episódio em que um cego é curado por Jesus, torna-se seu discípulo e, consequentemente, acaba expulso da sinagoga por sua pertinácia (cf. 9,22.34). É provável que o autor tenha passado por experiência semelhante, embora tenhamos unicamente seu ponto de vista do que teria acontecido, e ainda assim narrativamente disfarçado.

            A oposição judaica aos cristãos desde os primórdios da primeira igreja, em Jerusalém, também aparece representada nos Atos dos Apóstolos. O primeiro cristão a ser morto por afirmar sua fé o é por uma turba de judeus enfurecida com sua pregação perante o Sinédrio (cf. Atos dos Apóstolos 7,54-60). Antes dele ainda, os doze apóstolos encontram-se mais de uma vez diante das autoridades religiosas do Templo, sendo pressionados por eles a abandonar a pregação que, segundo a narrativa, vinham executando por toda Jerusalém (cf. Atos dos Apóstolos 4,18-22; 5,27-30). Posteriormente, toda a missão de Paulo e seus companheiros é ditada pela dinâmica de procurar primeiro os judeus de uma determinada cidade, pregar em sua sinagoga, serem rejeitados e, somente então, ir levar a “boa-notícia” aos não-judeus (cf. 13,13-49; 14,1-7; 17,1-15; 18,5-11; 19,8-10). Não devemos, no entanto, aceitar essa dinâmica como uma representação realista das primeiras décadas de existência do cristianismo. Seguindo as normas do gênero histórico grego com as quais demonstra grande familiaridade (MARGUERAT, 2003, p. 13-35), o autor procura organizar os eventos relatados (fossem eles retirados de narrativas orais ou escritas, ou ainda sendo testemunhados pelo próprio autor) de um modo que promovam a sua agenda própria, a leitura que ele mesmo faz dos primórdios do que chama de “o Caminho” (Atos dos Apóstolos 9,2; 24,14). Nós poderíamos resumir, grosso modo, a leitura histórica do autor sobre o cristianismo em três pontos: 1. os cristãos, em Jerusalém e fora, formavam um grupo coerente, no qual mesmo as dissensões (não pouco numerosas, certamente) eram resolvidas de forma mais ou menos pacífica (cf. 2,42-47; 5,1-11; MARGUERAT, 2003, p. 177-198); 2. mesmo contando com membros provenientes do judaísmo e tendo esse público como alvo primário da pregação, a conversão do povo judeu como um todo ao Messias é frustrada, e dessa frustração nasce a missão junto aos pagãos; 3. decorrente dessa tendência histórica divinamente guiada pelo Espírito Santo (1,8; 13,2; 16.6) é a viagem que faz a “boa-notícia” de Jerusalém, onde é reprimida de forma intermitente, a Roma, o centro do mundo, na qual se encerra a narrativa aberta para um futuro promissor (MARGUERAT, 2003, p. 73-90). Esse modelo, que se mostrará extremamente influente para a confecção das futuras histórias eclesiásticas (MOMIGLIANO, 2004, p. 197), visava a instrução de seu destinatário, Teófilo; ou seja, projetava ser um espelho do que se esperava dos cristãos na época do autor, segundo a sua ótica. Nessa ótica, os judeus, por mais que tenham seu papel na história da salvação, não se mostram como um público promissor; Roma e as nações sob seu comando estavam destinadas a ser preferidas.

            Dada a enorme influência dos Atos dos Apóstolos na memória histórica coletiva dos grupos cristãos não apenas nos primeiros séculos, mas em todo o período posterior e mesmo na contemporaneidade, é difícil evitar tomar sua narrativa como “a” história das primeiras décadas do cristianismo, ainda que sejam notórias, por exemplo, as divergências entre seu relato da vida e atividade do apóstolo Paulo e as informações transmitidas pelo próprio em suas cartas[6]. Essa armadilha advém, basicamente, da quase ausência de narrativas concorrentes à de Atos nos primeiros dois séculos d.C., ausência essa decorrente basicamente de dois fatores: 1. o fato de boa parte dos relatos sobre os primeiros cristãos se dar pela oralidade, parcamente documentada e, mesmo quando ocorre de sê-la, com frequência sujeita a uma série de dubiedades; 2. a transmissão apenas fragmentária à posteridade da principal obra concorrente dos Atos dos Apóstolos no séc. II d.C.: as Memórias, de Hegésipo, um autor cristão de origem judaica oriundo da Palestina. Nesse último caso, no entanto, os fragmentos por si só nos oferecem um vislumbre muito interessante de uma narrativa que não apenas concorre com a de Atos dos Apóstolos, mas que também se mostra independente da mesma, aparentemente fundamentada em outras fontes.

            Os poucos fragmentos das Memórias que chegaram até nós devem sua existência às citações diretas feitas por Eusébio de Cesareia na História Eclesiástica[7]. Por meio delas, nos defrontamos com um quadro ligeiramente diferente daquele apresentado pelo autor dos Atos dos Apóstolos: longe de minguar em favor das comunidades de origem pagã, o cristianismo em ambiente predominantemente judaico se mostra pulsante entre o fim do séc. I e o começo do séc. II d.C. Essa pulsação, contudo, não implica em ausência de conflitos. Um dos principais relatos conservados de Hegésipo é o da execução de Tiago, um dos irmãos de Jesus, em Jerusalém, um episódio também relatado em tom bem menos hagiográfico por Flávio Josefo (cf. Antiguidades Judaicas 20.9.1). O cenário apresentado pelo autor, portanto, parece (lembremos sempre que nos encontramos diante de fragmentos) ser um de tensões entre conflito e convivência. Afinal, Tiago é retratado como um judeu fiel acima da média:

Ele (Tiago) foi santificado desde o seio materno; não bebia vinho, nem bebida inebriante; nada ingeria do reino animal; a tesoura não passara por sua cabeça; não se ungia com óleo, não se banhava. Somente ele tinha acesso ao santuário. Não usava vestes de lã e sim de linho. Entrava sozinho no Templo e mantinha-se de joelhos, suplicando perdão para o povo, de tal modo que seus joelhos se calejaram, assemelhando-se ao couro dos camelos, porque se prostrava sempre de joelhos, adorando a Deus e pedindo perdão pelo povo. (História Eclesiástica II.23.5-6)

 

O retrato que Hegésipo faz de Tiago não é apenas de um judeu exemplar, mas também de um observante excepcional da Lei, obedecendo a um voto de nazireato[8] e tendo uma exclusividade inverossímil de acesso ao Santo dos Santos do Templo de Jerusalém. Sua “justiça” (em uma acepção comum entre judeus da época[9]) é tamanha que os fariseus e escribas se encantam com ele, a tal ponto de ter a ilusão de que ele certamente exortaria os judeus a não tomar seu irmão pelo Messias aguardado (!):

Viemos pedir-te que retenhas o povo, porque ele se ilude a respeito de Jesus, como se fosse o Cristo. Rogamos-te, portanto, que esclareças a todos os que vêm para a festa da Páscoa sobre Jesus, pois todos têm confiança em ti. De fato, atestam com o povo que és justo e não fazes acepção de pessoas. Por conseguinte, persuade o povo, a fim de que não se iluda acerca de Jesus. Pois o povo e todos nós confiamos em ti (καὶ γὰρ πᾶς ὁ λαὸς καὶ πάντες πειθόμεθά σοι). (II.23.10-11; grifo meu)

 

Quando Tiago, porém, faz exatamente o contrário do pedido, exaltando Jesus de cima do pináculo do Templo, é empurrado lá de cima, apedrejado e finalmente morto com um golpe de bastão na cabeça, aos gritos de: “Oh! Oh! Até o justo enganou-se” (II.23.15).

            Desse modo, também em Hegésipo o conflito se encontra nos primórdios das relações entre cristãos e ao menos alguns setores do judaísmo. Seguindo as narrativas dos evangelhos, a consequência direta da rejeição a Cristo representado na pessoa de seu irmão, Tiago, é a derrota avassaladora dos judeus ierosolimitas para Roma[10]: “(Tiago) foi sepultado no mesmo lugar, junto ao Templo, e até hoje seu túmulo se vê perto do Templo. Foi verdadeira testemunha diante de judeus e gentios de que Jesus é o Cristo. E, logo, Vespasiano os sitiou” (II.23.18).

As narrativas de Atos dos Apóstolos e das Memórias de Hegésipo exerceram enorme influência sobre o relato dos primórdios do cristianismo que viria a se tornar praticamente canônico na Antiguidade Tardia e na Idade Média: a História Eclesiástica, de Eusébio de Cesareia, a qual viria a ser continuamente complementada ou estendida por uma série de historiadores tardo-antigos, como Sócrates Escolástico, Sozomeno e Teodoreto de Ciro[11]. De fato, a autoridade de Eusébio era tamanha que continuou sendo reconhecida mesmo com as visões teológicas das quais compartilhava sendo duplamente elencadas no rol das heresias pela Igreja e pela maioria dos imperadores, primeiramente com a condenação do arianismo sob Teodósio, e depois com a ação de Justiniano contra as obras de Orígenes, do qual o historiador se considerava herdeiro intelectual, assim como o era de sua biblioteca em Cesareia. A autoridade de Eusébio foi fundamental para que fosse legada à posteridade a concepção histórica de que judaísmo e cristianismo constituíam realidades antagônicas desde o início.

            A concepção de Eusébio acerca das relações entre cristãos e judeus já é sugerida logo ao início da História Eclesiástica, quando ele elenca entre seus objetivos descrever “as tribulações sobrevindas a toda a nação judaica, logo após as insídias contra nosso salvador” (I.1.2). Perseguindo um modelo narrativo francamente inspirado, como já dito, nos Atos dos Apóstolos, o historiador impõe a seu relato, ao menos nos primeiros livros, uma dinâmica em que Jesus Cristo é prometido pelos profetas hebreus, executa sua missão com sucesso, mas é rejeitado pela nação judaica, em conjunto com seus discípulos. Dentre os últimos destacam-se Estêvão, o apóstolo Tiago, filho de Zebedeu, e Tiago, irmão de Jesus, seguindo a narrativa de Hegésipo (III.5.2). Na narrativa eusebiana, são dois os momentos chave de ruptura entre Cristo e seus discípulos e os judeus como um todo.

            O primeiro ocorre logo antes do que o historiador apresenta como a principal reação divina às violências perpetradas, conforme os relatos, pelos judeus contra os primeiros cristãos. Prestes a narrar os acontecimentos da Guerra Judaica conforme os escritos de Flávio Josefo, Eusébio apresenta os cristãos de Jerusalém fugindo da guerra com previdência:

Ora, os membros da Igreja de Jerusalém, através de uma profecia proveniente de uma revelação feita aos fieis mais ilustres da cidade, receberam a ordem de deixar a cidade antes da guerra e transferir-se para uma cidade da Pereia, chamada Pela. Para lá fugiram de Jerusalém os fieis de Cristo, de sorte que os santos varões abandonaram totalmente a régia capital dos judeus e toda a terra da Judeia. Então, a justiça de Deus atingiu os judeus que haviam praticado tais iniquidades contra Cristo e os apóstolos e esta geração de ímpios desapareceu inteiramente do meio dos homens. (III.5.3)

 

É interessante que Eusébio não indique, como é de seu costume, a fonte de tal informação. Em nenhum momento diz, por exemplo, que seja Hegésipo o autor no qual se fia, e em nada sugere que o relato lhe houvesse chegado por tradição oral, como quando usa seus usuais impessoais “diz-se”, “conta-se”. Desse modo, não podemos descartar a possibilidade de que o historiador tenha simplesmente fabricado esse relato, sem qualquer tradição anterior que lhe pudesse servir de suporte. Seja como for, o trecho serve bem ao propósito de Eusébio ao traçar uma clara linha distintiva entre cristãos e judeus. Enquanto os primeiros são preservados do iminente castigo por parte de Deus, os últimos sofrem em bloco a retribuição divina por sua rejeição a Cristo e aos apóstolos. Isso porque, para o historiador, se os cristãos são caracterizados como aqueles que aceitam a messianidade e a procedência divina de Jesus Cristo, tanto individual quanto coletivamente, os judeus são o exato oposto, qual seja, aqueles que tanto individualmente quanto coletivamente o rejeitam. Daí que ambos os grupos só possam ser vistos não apenas como distintos entre si, mas sobretudo como antagônicos.

            Aqueles que procuram de alguma forma se manter entre esses dois mundos são, na narrativa eusebiana, de alguma forma tragados pelos acontecimentos. E assim chegamos ao segundo momento chave: a supressão da revolta de Bar Kochba entre 132 e 135 d.C. Até então, sempre segundo Eusébio, os documentos apresentam um cristianismo plenamente “hebreu” (Ἑβραίος) em Jerusalém, o qual se vê subitamente engolido pela guerra:

Certifiquei-me, contudo, por documentos escritos que, até o assédio dos judeus sob Adriano, sucederam-se em Jerusalém quinze bispos. Diz-se que eram todos hebreus por origem e terem acolhido genuinamente o conhecimento de Cristo (τὴν γνῶσιν τοῦ Χριστοῦ γνησίως καταδέξασθαι). Em consequência, aqueles que ali podiam decidir, julgaram-nos dignos do múnus episcopal. Com efeito, a Igreja toda de Jerusalém se compunha então de hebreus fieis. Assim sucedeu desde o tempo dos apóstolos até o cerco que sofreram então (εἰς τὴν τότε διαρκεσάντων πολιορκίαν), quando os judeus se contrapuseram aos romanos e foram aniquilados em fortes guerras. (IV.5.2; grifos meus)

 

Alguns pontos desse trecho da História Eclesiástica merecem comentário, tendo em vista a presente discussão. Primeiramente, vale destacar que, segundo Eusébio, o cristianismo manifestado pelos fieis hebreus é coerentemente consonante com aquele que crê ser verdadeiro e não assaltado por qualquer heresia. E nem poderia deixar de sê-lo, ao menos se tomarmos por princípio o esquema narrativo composto pelo historiador. Por duas razões: 1. uma Igreja que tinha um irmão de Cristo por primeiro bispo e um primo seu por primeiro sucessor não poderia, na lógica eusebiana, ser contaminada pela heresia, uma vez que uma sucessão apostólica tão sólida só poderia conservar a verdade imaculada, proveniente dos apóstolos; 2. nenhuma heresia conseguirá, segundo Eusébio, contaminar a sucessão apostólica nas principais Igrejas até que a narrativa alcance, mais de um século depois, o espinhoso caso de Paulo de Samósata, bispo de Antioquia sob a rainha Zenóbia de Adiabene (VII.27-30). Esses dois fatores, no entanto, não aliviam o drama da Igreja dos hebreus em Jerusalém, mas antes o realçam. Independentemente de seu comprometimento com o verdadeiro cristianismo (sempre na visão de Eusébio), ela terá o mesmo fim de todos os judeus que a circundam:

Desta forma, a cidade foi reduzida a ser totalmente desertada pelo povo judeu e a perder seus habitantes de outrora. Foi povoada por uma raça estrangeira (ἐξ ἀλλοφύλου τε γένους συνοικισθείσης). A cidade romana que a substituiu recebeu outro nome, e foi denominada Aélia, em honra do imperador Aélio Adriano. A Igreja da cidade foi composta também de gentios, e após os da circuncisão o primeiro dos bispos a receber o múnus foi Marcos (καὶ δὴ τῆς αὐτόθι ἐκκλησίας ἐξ ἐθνῶν συγκροτηθείσης, πρῶτος μετὰ τοὺς ἐκ περιτομῆς ἐπισκόπους τὴν τῶν ἐκεῖσε λειτουργίαν ἐγχειρίζεται Μάρκος). (IV.6.4)

 

Não existe proteção divina desta vez, nem fuga em massa para uma outra localidade. Os cristãos hebreus compartilham do destino dos judeus, o seu povo, e, tendo sua base geográfica aniquilada, somem da História, ao menos como a escreve Eusébio de Cesareia.

            Uma vez mais precisamos recordar aqui a influência que o bispo historiador recebeu dos autores que o precederam na escrita da história do cristianismo, especialmente o autor dos Atos dos Apóstolos, o qual não apenas o inspirava enquanto precursor, mas também era por ele considerado divinamente inspirado, responsável por dois livros presentes no cânone das Escrituras que recebia com certeza de fé[12]. A principal influência lucana sobre a narrativa de Eusébio no plano ora em análise foi a concepção histórica salvífica de que o povo judeu viu-se afastado por Deus no momento de iminente realização do reino escatológico por sua obstinação em rejeitar Jesus de Nazaré enquanto Messias e Filho de Deus. Tanto em Eusébio quanto em “Lucas”, no entanto, tal obstinação resulta, no plano divino, na difusão da “boa-nova” aos povos: nos Atos dos Apóstolos em um sentido geográfico partindo de Jerusalém e alcançando Roma, enquanto na História Eclesiástica o sentido seja múltiplo, em diversas direções (cf. III.1.1-3). No entanto, Eusébio insere em sua narrativa uma leitura da própria identidade cristã que não se encontra nos Atos:

Ora, nosso Salvador Jesus Cristo apareceu com brilho recentemente, diante de todos os homens. É certamente um povo novo que se manifestou (νέον ὁμολογουμένως ἔθνος). Não é pequeno, nem fraco, nem habita num recanto da terra, mas é o mais numeroso e piedoso de todos os povos, e por isso imperecível, invencível, porque sempre sustentado pelo socorro de Deus. Apareceu de repente, segundo as predições inefáveis dos tempos. Trata-se do povo honrado pelo nome de Cristo, em toda a parte. (I.4.2; grifo meu)

 

O grupo cuja história é narrada não é apenas uma congregação de pessoas vindas de diversos povos e regiões, as quais aceitam seguir o “Caminho” de Cristo, como nos Atos dos Apóstolos[13]. São, ao invés, verdadeiramente um povo novo, mais um dentre as nações, embora superior a todas elas em poder e invencibilidade. Em outras palavras, desde o começo do primeiro livro de sua obra, Eusébio esclarece que se trata da história de um povo e não de um mero culto novo. O historiador certamente não foi o primeiro autor cristão a encampar essa ideia. Já na primeira metade do século II um certo Aristides, oriundo de Atenas, dirigia uma Apologia do cristianismo ao imperador Adriano. Nela, o cristão ateniense não vê problema em inserir os cristãos no rol das nações presentes no mundo (todas elas, porém, estabelecidas no Mediterrâneo oriental, diga-se de passagem). Pelo contrário, põe-se logo a comparar a religião e a ética cristãs com as de caldeus, judeus, egípcios e, incrivelmente, gregos (mesmo ele sendo de Atenas!): “Estes (os cristãos) são os que, mais do que todas as nações da terra, encontraram a verdade...” (Apologia 15,3). Em Aristides, a linguagem da “residência estrangeira”, tão bem identificada por Judith Lieu (LIEU, 2004, p. 230-238) em obras como a Primeira Carta de Paulo aos Coríntios, a Primeira Carta de Pedro e a Primeira Carta de Clemente (todos oriundos do século I) é reformulada de modo a classificar todos os cristãos como um povo estrangeiro, onde quer que fixem sua moradia.

            O fato de tal forma de autoidentificação não ser largamente compartilhada por outros autores cristãos dos séculos II e III[14] nos chama a atenção para o caráter apologético do texto. Caso conseguisse que o imperador e outros possíveis leitores comprassem a ideia de ver os seguidores de Cristo como um povo à parte de qualquer outro, talvez o autor pudesse arrogar para si e para seus correligionários a liberdade de manter suas próprias tradições, como ocorria com os povos por ele listados. Não haveria, então, argumentos para a repressão da nova fé como uma superstitio alienante[15]. Considerando o período de perseguição no qual foi escrito o primeiro livro da História Eclesiástica, seria de se pensar que Eusébio também contasse com uma perspectiva apologética ao representar os cristãos como um povo à parte (I.2.1). Contra essa explicação, no entanto, joga a caracterização que faz o historiador dos seguidores de Cristo como um povo novo, excluindo o critério de antiguidade que tornava tradições étnicas apreciáveis ou ao menos respeitáveis aos olhos de intelectuais do mundo romano. Uma razão meramente apologética, portanto, não explica o porquê de Eusébio adotar tal concepção como sua.

            Uma motivação para o contato conceitual entre o historiador e Aristides de Atenas, contudo, pode ser aventada a partir do modo como ambos consideram as relações entre cristãos e judeus. Nesse ponto, a comunhão de perspectivas é inegável e o ponto central, deixado mais ou menos claro, se encontra no destino reservado aos judeus e a motivação para tal:

(Os judeus) se mostraram duros e ingratos, muitas vezes serviram aos cultos das nações e mataram os justos e os profetas que lhes foram enviados. Depois, quando aprouve ao Filho de Deus vir à terra, depois de insultá-lo, entregaram-no a Pôncio Pilatos, governador dos romanos, e o condenaram à morte de cruz, sem qualquer respeito pelos benefícios que lhes havia feito e pelas incontáveis maravilhas que realizara entre eles. Pereceram por sua própria iniquidade. (Apologia 14)

 

            Uma vez que Aristides escrevia ao imperador Adriano, o qual suprimiu a revolta de Bar Kochba, é bem possível que os resultados catastróficos desse levante, dentre os quais se encontrava o desaparecimento da Jerusalém terrena, viessem logo à mente do leitor, fosse ele o imperador (o que dificilmente ocorreu de fato) ou outros leitores, pagãos e cristãos. Desse modo, Aristides, mais de cento e cinquenta anos antes de Eusébio de Cesareia, já construía uma narrativa tanto breve quanto consistente em torno da fronteira que separava judeus, adoradores de Deus “sem conhecimento completo”, de cristãos, “descendentes de Cristo” (14,2): os judeus haviam destratado ingratamente o Cristo que tanto lhes fizera bem e, por essa razão, haviam sido aniquilados com justiça. Da mesma maneira, como já vimos, as duas guerras judaicas servem como momentos-chave na narrativa de Eusébio para que os judeus enfrentem as consequências por terem coletivamente rejeitado a Cristo: receber o castigo divino, o qual apenas realça e destaca o surgimento e ascensão do novo povo de Deus, os cristãos. Por essa leitura, então, os cristãos hebreus, por mais fieis que fossem, não poderiam fugir ao destino dramático reservado ao seu povo. Estando entre dois mundos, sofrem a punição a um deles para que o outro pudesse prosseguir seu caminho favorável.

            Ao beber dos sentidos histórico-narrativos dos Atos dos Apóstolos e das Memórias de Hegésipo e adotar a caracterização dos cristãos como um povo novo, conforme feito por Aristides de Atenas (cuja obra ele sugere conhecer em IV.3.3) mais de um século e meio antes, Eusébio legou para a posteridade uma narrativa poderosa acerca das relações entre cristãos e judeus e da inexorabilidade da adoção de diferentes caminhos por esses grupos, acima de tudo em razão das escolhas dos últimos enquanto grupo. Essa dinâmica da História exerceu uma enorme influência sobre o pensamento cristão tardo-antigo e medieval, assim como toda a sua obra, conforme já visto. Nas palavras de Momigliano, ainda certeiras, “Eusébio sabia que os cristãos eram uma nação, e uma nação vitoriosa” (MOMIGLIANO, 2004, p. 196); e, sobretudo pela obra de seus continuadores e tradutores, como Sócrates, Sozomeno, Teodoreto e Rufino, essa história ufanista e regada a sangue viria a ser aquela quase que oficial de uma Igreja confiante em seu triunfo e que olhava para os seus primeiros séculos de existência como os de luta heroica para alcançar sua posição incontestável. Nessa história, os judeus não tinham espaço; sua exclusão se dava tanto por sua rejeição coletiva a Cristo e aos apóstolos (como se cria) quanto por sua derrota dupla, contrastante com o triunfo da Igreja. Claramente, aos olhos de autores eclesiásticos, Deus havia rejeitado uns e favorecido outros. Apesar da valorização da fraqueza pelo apóstolo Paulo (cf. 2 Coríntios 12,9), a Igreja tardo-antiga e medieval não tolerava derrotados em seu seio e em sua história. Apenas o triunfo era aceitável.

           

“The parting of the ways”

Todo esse foco na obra de Eusébio de Cesareia e em suas inspirações dentre os gêneros do evangelho, da história e do discurso apologético serve-nos precisamente para avaliar criticamente a extensão da influência eusebiana sobre o pensamento e a pesquisa histórica em torno do cristianismo antigo na modernidade e mesmo na contemporaneidade. Pois, ainda que desavisada e irrefletidamente, uma grande parte dessa historiografia repete ou reformula ideias centrais da obra de Eusébio, sobretudo por ele ser, com frequência, nossa principal fonte sobre o período e por ele conservar fragmentos de documentos ou mesmo documentos completos que, de outra maneira, estariam inteiramente perdidos, como no caso já referido de Hegésipo. Tal influência é múltipla. Nos focaremos, no entanto, em dois sentidos teóricos no qual ela se dá, os quais se encontram relacionados: o télos da Igreja triunfante e a “separação dos caminhos” (em inglês, the parting of the ways) entre cristianismo e judaísmo.

            Como abordado logo acima, a História Eclesiástica de Eusébio é uma história de triunfo, o relato de como uma nação nova enfrenta heroicamente as maiores adversidades sem esmorecer, tendo em vista o objetivo final de implantar o reino de Cristo em todo o mundo, para muito além daquela fatia dominada pelos romanos, como deixa claro ao discordar da interpretação por Flávio Josefo de uma profecia:

O mesmo historiador conta um fato mais extraordinário, referindo que nas Sagradas Letras se encontrou um oráculo, segundo o qual, naquele tempo da região sairia alguém para comandar a terra habitada. Ele julga que este oráculo se cumpriu em Vespasiano. Mas este não dominou toda a terra, e sim apenas as regiões sob o domínio romano. Seria mais justo aplicar esta profecia a Cristo, a quem foram dirigidas pelo Pai as seguintes palavras: ‘Pede, e eu te darei as nações como herança e os confins da terra como propriedade’. Ora, nesta mesma época, a voz dos apóstolos atingiu toda a terra e até os confins do mundo a sua linguagem. (III.8.10-11)

 

O mais interessante de tudo é que tal sentido triunfalista, mesmo que mais acentuado na parte final da obra, escrita já sob o reinado filocristão de Constantino, se mostre também presente no início, o qual foi escrito em grande parte no período mais agudo de perseguição aos cristãos, no começo do século IV. Isso se dá porque Eusébio já enxerga o triunfo em três campos, ainda antes da liberdade de culto e favorecimento estatal do cristianismo: no campo da pregação, com os apóstolos implantando a fé cristã em todos os cantos do mundo (III.1.1-3); no campo da superação das “heresias”, com os bispos, enquanto sucessores dos apóstolos, derrotando os heresiarcas que sucedem o inimigo primordial do apóstolo Pedro, Simão Mago (II.14.1-6); e, por fim, no campo das arenas e tribunais, com os cristãos suportando torturas e mortes violentas enquanto rejeitam renegar a Cristo. Com a conversão de Constantino, a mudança na sorte dos cristãos vem conferir à narrativa uma conclusão poderosa: àqueles poucos discípulos de Jesus que enquadram o início da obra sucedem, em uma corrente inquebrantável, os bispos que superam todos os desafios da divisão e da repressão e veem, por fim, a sua fé florescer livremente em grandiosos empreendimentos, como no caso da esplendorosa basílica cristã de Tiro (X.4).

            Dificilmente uma narrativa tão poderosa, meticulosamente fundamentada em documentação oriunda da famosa biblioteca de Orígenes, em Cesareia Marítima, poderia deixar de influir na concepção da história do cristianismo antigo de autores modernos. Desse modo é que Ferdinand Christian Baur, na primeira metade do século XIX, encaixou essa narrativa em uma dinâmica histórica hegeliana de tese-antítese-síntese, na qual o cristianismo antigo por sua própria força de superação de diferenças internas vai construindo o caminho para o seu sucesso (BAUR, 1878, p. 44-183). A dessemelhança entre o esquema de Baur e o de Eusébio é que o primeiro imprime certa valoração ao conflito, que se apresenta como peça fundamental de um processo de construção e expansão da Igreja cristã. No entanto, o ponto convergente encontra-se no télos histórico do cristianismo antigo, algo emprestado por Baur tanto da narrativa eusebiana quanto da filosofia histórica hegeliana. O final da história cristã antiga é necessariamente o sucesso, o triunfo, a adoção pelo Estado romano na pessoa do imperador convertido. Caberia ao historiador moderno procurar nessas comunidades cristãs antigas as razões de seu sucesso final, as características políticas e sociais cruciais para o seu triunfo.

            É óbvio que o historiador se encontra em posição privilegiada diante do objeto que visa analisar, sobretudo se se trata de algum processo histórico ou fenômeno social da Antiguidade, há muito concluído. Afinal, a coruja de Minerva alça voo ao anoitecer. No entanto, a presunção de um télos para a História embute em si todos os riscos do anacronismo, o qual, não podendo ser totalmente expurgado, deve, ainda assim, ser evitado ao máximo. Nesse sentido, procurar, por exemplo, os elementos culturais, sociais e econômicos do cristianismo do século II que levariam ao seu sucesso no século IV, V ou VI (afinal, o paganismo não desapareceu simplesmente sob Constantino, nem sob Teodósio I[16]) faz com que o triunfo seja um dado já no período analisado, o que é absurdo. Nem Inácio de Antioquia, nem Justino de Roma e nem Valentino de Alexandria poderiam conceber o Império Romano convertido oficialmente ao cristianismo. Nem mesmo Eusébio parece concebê-lo nos primeiros anos do século IV, antes de Constantino iniciar o favorecimento à fé cristã, uma vez que o historiador vê a profecia do evangelho levado aos confins da terra concluída pelos próprios apóstolos. Não haveria, portanto, uma próxima etapa histórica que não o próprio fim do mundo, com o retorno glorioso de Cristo.

            Os processos sociais, portanto, devem ser analisados em seu próprio “hoje”, ainda que esse “hoje” seja de tão longa duração quanto o escopo cronológico de nossa análise, que vai do final do século I ao começo do século IV. Esse ponto se faz tão mais verdadeiro quando nos debruçamos sobre questões de identidade, como ora estamos fazendo. Por sua própria natureza, eminentemente fluida, a identidade não conta com um télos, pois ela é constantemente alterável, potencialmente negociável conforme a conjuntura histórica. Esse ponto opõe as abordagens mais recentes de análise identitária e estudos anteriores que consideravam a identidade como um bloco coeso. A resultante era a consideração de que o cristianismo possuía, desde seus primórdios, um ethos muito particular, distinguível tanto da cultura politeísta das cidades mediterrâneas quanto do berço judaico do qual se originara.

            E assim chegamos à questão do parting of the ways[17], a separação de caminhos entre o cristianismo antigo e o judaísmo. Como já visto, para Eusébio tal separação ter-se-ia dado quando da própria rejeição de Cristo por parte dos judeus (como se todos os judeus estivessem lá quando da morte de Jesus ou como se os judeus posteriores tivessem tido a mesma oportunidade de ouvi-lo e rejeitá-lo; no entanto, a influência de Mateus 27,25 sempre pesou sobre os autores cristãos antijudeus) e confirmado pela perseguição aos apóstolos. A historiografia moderna e contemporânea se mostrou mais ou menos influenciada por tal perspectiva eusebiana, dependendo da abordagem preferida. Muitos autores do século XIX e da primeira metade do século XX enxergavam cristianismo e judaísmo como realidades à parte desde a fundação do primeiro, fiando-se sobretudo na teologia antinômica de Paulo de Tarso, na rejeição de qualquer tipo de relação com o judaísmo por Inácio de Antioquia (o que o teria levado a ser o primeiro a cunhar o termo “cristianismo” para referir-se à nova fé como uma totalidade em si mesma[18]), e, por fim, nas acusações diretamente dirigidas ao povo judeu na pessoa de Trifão por Justino de Roma, em Diálogo com Trifão. Isso para ficar nas fontes “ortodoxas”, mais valorizadas por uma historiografia anterior ao terremoto causado por Walter Bauer. Pelo menos desde Adolf von Harnack, no entanto, muitos estudiosos incluiriam Marcião como a epítome dessa distinção primordial, com sua ousada rejeição de todas as escrituras hebraicas que constituíam o Velho Testamento, assim como de seu Deus vingativo e colérico[19].

No entanto, desde pelo menos a metade do século XX, sobretudo em consequência do Holocausto, passou a existir entre estudiosos uma tendência de suavizar esse quadro narrativo. Considerar que o cristianismo tivesse uma fronteira externa de identidade tão demarcada com o judaísmo já no século I passou a ser uma postura acadêmica cada vez mais criticada em novos estudos. Nesse sentido, foi fundamental o desenvolvimento, no âmbito dos estudos do Novo Testamento, da comumente conhecida “nova perspectiva sobre Paulo”.

            A “nova perspectiva sobre Paulo” nasceu de uma guinada crítica na academia de língua inglesa a respeito da até então universalmente aceita leitura de que o apóstolo Paulo, em que pese sua autodeclarada origem judia e farisaica[20], seria o campeão de uma postura teológica antinomista, a qual viria a dar sentido ao cristianismo enquanto fenômeno sociorreligioso apartado do judaísmo. Em outras palavras, ao negar a necessidade de seus convertidos do paganismo praticarem a observação da Lei mosaica, a qual seria fundamental para a própria identidade judaica, Paulo lançava, segundo essa leitura, um manifesto em prol da independência cristã com relação ao seu berço hebreu. No plano da historiografia, essa era a tese influentemente encampada pelo já citado Ferdinand Christian Baur, para o qual a posição paulina havia sido uma das duas partes de um grande debate no século I justamente acerca do papel da observância à Lei para o movimento recém-nascido. O opositor de Paulo nesse debate teria sido Pedro, conforme a leitura que Baur fazia da carta paulina aos cristãos da Galácia, na qual o apóstolo diz: “(os cristãos de Jerusalém) reconheceram que eu fora incumbido de anunciar a boa-nova da incircuncisão, tal como Pedro a da circuncisão” (Gálatas 2,7). Na mesma carta, Baur enxergava um recrudescimento do debate em direção ao conflito no conhecido episódio de Antioquia:

Quando Pedro chegou a Antioquia, desafiei-o cara a cara, pois ele incorrera em censura. É que antes de terem vindo uns quantos da parte de Tiago [o irmão de Jesus], ele comia com gentios. Mas quando eles chegaram, retirou-se e demarcou-se deles, receoso dos da circuncisão. E os demais judeus também agiram com ele hipocritamente, de tal forma que até Barnabé foi levado pela hipocrisia deles. (2,11-13)

 

Ao inserir o debate acerca do judaísmo logo na primeira geração cristã, Baur e aqueles estudiosos por ele influenciados davam base à concepção de um cristianismo que se separa de sua matriz judaica logo em seus primórdios. A síntese das posições petrina e paulina, ou seja, as facções respectivamente a favor e contra a continuidade da observância da lei judaica, não seria uma espécie de cristianismo vinculado à sinagoga e sim aquilo a que Baur chamou “protocatolicismo”[21] (Frühkatholizismus), uma espécie de cristianismo que teria absorvido parte da doutrina de Paulo (sobretudo sua cristologia e sua soteriologia) e da normatividade moral da corrente petrina.

            Ocorre, no entanto, que a “nova perspectiva sobre Paulo” veio a desferir um poderoso golpe nesse quadro narrativo. Iniciado no campo da teologia protestante de língua inglesa com nomes como Ed Parish Sanders e James Dunn[22] e apoiada em trabalhos de teólogos judeus que resgataram o caráter judaico de uma série de formulações presentes nas cartas paulinas autênticas[23], essa nova abordagem acadêmica relativizou a oposição Paulo/judaísmo a partir de três constatações fundamentais: 1. dentre os escritores cristãos do século I, praticamente todos judeus[24], Paulo é o único a referir-se a si mesmo como judeu e judeu exemplar; 2. muitas das estratégias argumentativas das quais Paulo lança mão para afirmar suas teses não encontram paralelos em obras de autores clássicos de sua época ou de períodos anteriores, mas sim em técnicas de hermenêutica rabínica, sobretudo no caso de midraxes da Torá[25]; 3. a partir da descoberta e análise dos manuscritos de Qumran, muitas das teses de Paulo tidas como diametralmente opostas ao judaísmo ou mesmo como antijudaicas em essência perderam tal coloração: as correntes do judaísmo do século I d.C. mostraram-se mais diversas do que se supunha anteriormente, mesmo nos posicionamentos relativos a pontos até então considerados como chave, como a Lei, o Templo e a vinda do(s) messias aguardado(s)[26]. Ao fim e ao cabo, o questionamento do apóstolo ao papel da Lei na condução dos gentios que abraçavam o cristianismo deixou de soar como um questionamento ao judaísmo em si.

            Ao questionar, portanto, o papel de Paulo em traçar uma fronteira externa, de natureza identitária, entre os cristãos que o seguiam e o mundo judaico, a “nova perspectiva” apresentou um questionamento fundamental para os historiadores e estudiosos do cristianismo antigo: se o apóstolo não era responsável por estabelecer essa diferenciação entre os grupos, quando então ela teria se dado? Quando, afinal, teriam judeus e cristãos deixado de se ver como uma mesma realidade social para se posicionarem como antagonistas históricos? Desse questionamento surgiram as pesquisas em torno da “separação dos caminhos”.

            Uma das abordagens nesse sentido resgatou da narrativa eusebiana a importância de momentos-chave, dentre os quais costumam ser elencados as já citadas revoltas judaicas sob Nero e sob Adriano, além de um (suposto) conselho de rabinos reunido na cidade palestina de Jâmnia, do qual uma das providências teria sido uma exclusão de seguidores de Cristo das sinagogas (a qual, de sua parte, seria espelhada na narrativa do Evangelho de João, como vimos que pode ter sido o caso de seu autor), por volta de 90 d.C. Uma visão defendida por Martin Hengel é a de que tanto o judaísmo rabínico como o cristianismo antigo seriam dois galhos provenientes do mesmo tronco, a saber, o judaísmo templário que encontra seu fim pelas mãos de Tito. Hengel, que vê uma cisão completa já na virada dos séculos I e II entre judeus e cristãos resultante de uma estratégia dos últimos para evitarem pagar o fiscus iudaicus, coloca Inácio de Antioquia como a testemunha privilegiada de um cristianismo inteiramente gentio, distinto do judaísmo (HENGEL, 1999, p. 1-37).

           

Oralidade e metodologia de análise do problema

Antes, porém, de avaliarmos a qualidade e o fundamento de tais teses, precisamos fazer algumas observações preliminares de caráter teórico-metodológico. Nesse sentido, é possível se argumentar que uma grande parte dos estudos acerca do cristianismo antigo, especialmente no campo das identidades, encontra-se severamente viciada em sua abordagem da documentação, com problemas interrelacionados, um consequente do outro.

            Em primeiro lugar há que se criticar uma sobrevalorização do papel do texto escrito na definição da normatização moral e da manutenção da coesão comunitária. É verdade que o texto exercia uma função primordial entre os primeiros cristãos. Como destaca Judith Lieu, eles haviam herdado das raízes judaicas da nova fé a visão de que existia um conjunto de textos, as escrituras (αἱ γραφαὶ), que servia tanto como norteador moral quanto como um baú divino no qual toda a História encontrava-se contida enquanto vontade divina concretizada ou a ser concretizada (LIEU, 2004, 27-61). Desse modo, com grande frequência o debate interno às comunidades se fundamentava em hermenêuticas diferentes dos livros sagrados. O englobamento de escritos cristãos no rol das “escrituras” significou um novo passo na construção de uma normatização moral e organizacional propriamente cristã, processo que encontrou certa continuidade na formação e apropriação de gêneros literários como atos de apóstolos (não confundir com a obra anterior citada), atas de martírio e evangelhos diversos. No entanto, tanto a maior facilidade de acesso à produção literária cristã antiga quanto uma possível herança da centralidade dada ao texto escrito pela academia de língua inglesa e alemã (em sua maioria esmagadora de confissão protestante) parecem ter influído para uma subvalorização do enorme papel dado à oralidade como meio de instrução e transmissão de tradições nos primeiros três séculos do cristianismo. Basta lançar um breve olhar sobre o sumário do Oxford Handbook of Early Christian Studies, por exemplo, para identificar a ausência de qualquer capítulo dedicado à oralidade como veículo de transmissão de tradições. Um rápido olhar sobre algumas fontes, contudo, é o suficiente para notarmos que a oralidade com frequência era colocada no mesmo patamar que a obra escrita, quando não ocorria de ter a primazia. É assim que Pápias, bispo de Hierápolis na Ásia Menor, expressa a importância das palavras dos apóstolos que chegaram até ele por meio dos presbíteros com os quais se entreteve para a exegese que faz dos ditos de Jesus, em um fragmento conservado por Eusébio de sua obra Exegese dos ditos do Senhor:

Eu também não hesitarei em compor para ti, em conjunto com essas exposições, um relato ordenado de todas as coisas que eu cuidadosamente aprendi e cuidadosamente recordei da parte dos presbíteros; pois me certifiquei de sua veracidade. Pois não me agraciei, como muitos, nos que dizem muitas coisas, mas naqueles que ensinam a verdade, e nem naqueles que recordam os mandamentos de estranhos, mas nos que, pela fé, recordavam mandamentos da parte do Senhor e que procediam da própria verdade. Mas sempre que chegava alguém que havia acompanhado os presbíteros, eu (lhes) perguntava acerca das palavras dos presbíteros; o que André, ou Pedro haviam dito, ou o que Filipe, ou Tomé, ou Tiago, ou João, ou Mateus, ou outro dentre os discípulos do Senhor, e o que Aristion e o presbítero João, discípulos do Senhor, dizem. Pois não considerava que o que vinha de livros me beneficiaria tanto quanto o que vinha da voz viva e permanente (οὐ γὰρ τὰ ἐκ τῶν βιβλίων τοσοῦτόν με ὠφελεῖν ὑπελάμβανον ὅσον τὰ παρὰ ζώσης φωνῆς καὶ μενούσης.). (História Eclesiástica III.39.3-4; grifo meu)

 

            Apesar de Pápias ser um dos autores que mais explicitam não apenas a importância da tradição oral para o conhecimento do (verdadeiro) evangelho, mas mesmo a sua preferência por ela como meio de acesso ao conteúdo da pregação de Jesus e de seus discípulos, a recorrência da oralidade como fonte legítima e autorizada encontra-se em várias obras cristãs antigas. A começar pelos próprios Atos dos Apóstolos, que relatam o apóstolo Paulo despedindo-se dos presbíteros de Éfeso utilizando-se de uma palavra de Jesus cuja utilização pelo próprio não é narrada sequer no Evangelho de Lucas, obra de autoria do mesmo autor. O próprio Paulo, em suas cartas autênticas, recorre com frequência (sobretudo em sua primeira missiva aos cristãos de Corinto) ao que “recebera” da parte dos apóstolos e/ou de Cristo para praticamente legislar sobre uma série de matérias que considerava não serem bem observadas pelos cristãos locais[27]. Afora várias relações entre textos cristãos do primeiro e do começo do segundo séculos que raramente podem ser explicadas como interdependência literária ou utilização de uma fonte escrita comum (o que sugere, uma vez mais, o papel da oralidade na transmissão de tradições apenas posteriormente postas por escrito, ou mesmo às vezes nunca tendo sido transcritas de modo coeso)[28], os testemunhos de uso de tradições transmitidas oralmente surgem em profusão na literatura cristã do século II d.C. Já citamos Pápias de Hierápolis, mas poderíamos referir também os diversos momentos em que Irineu de Lyon recorre às palavras dos “presbíteros/anciãos” (πρεσβύτερος) dos quais fora ouvinte para construir seus cinco livros de exposição do que considera a “verdadeira fé” contra aqueles que acusa de desviantes, dentre os quais se destaca o mestre cristão alexandrino Valentino. Em vários momentos do texto ele dá a entender que a importância da manutenção de uma sucessão partindo dos apóstolos e alcançando os presbíteros de seu tempo se dá justamente pelo contato próximo entre gerações que tal sucessão propicia, o que por si só, de acordo com seu discurso, serve como garantia da validade da “boa notícia” pregada e exposta por esses presbíteros (aqueles que aponta como ortodoxos, é claro). Somente desse modo, por exemplo, é que poderia arrogar autoridade para si mesmo, ouvinte que fora de Policarpo, bispo de Esmirna, o qual de sua parte afirmava ter sido discípulo do próprio João, segundo ele o mesmo “discípulo amado” de Cristo referido no Evangelho de João como sendo seu próprio autor (cf. 13,21-25; 21,20-25).

            Se, no entanto, Irineu se preocupa em valer dessa suposta proximidade geracional com o próprio “discípulo amado” é porque a oralidade servia de argumento fundamental para os seus próprios adversários, aqueles que acusa como portadores de um falso conhecimento divino de caráter especial e elevado. De fato, como encontra-se testemunhado em diversas obras de caráter gnóstico, aí também a oralidade constituía um meio fundamental de acesso à verdade revelada por Jesus. E isso em dois sentidos: primeiro porque a própria relação fundamental entre mestre e discípulo(s) que sustentava o ambiente escolar cristão (e também o grego) estava fundamentada na oralidade: o mestre ensina os seus discípulos, e apenas raramente pela escrita; segundo porque, no caso dos mestres de gnose cristã, um dos mais recorrentes argumentos de autoridade utilizados é a de acesso, via transmissão oral, a um conhecimento especial que os apóstolos (coletiva ou individualmente) haviam decidido revelar a apenas alguns poucos, de modo a deliberadamente formar uma elite de “perfeitos” responsáveis por guardar esse ensinamento secreto e transmiti-lo apenas àqueles  que considerassem dignos[29]. É sobretudo com isso que Irineu se preocupa, e com certa razão: considerando que as comunidades cristãs dos primeiros dois séculos mal contavam com Escrituras hebraicas (acessadas em tradução grega) bem definidas e certamente não tinham qualquer “cânon” estabelecendo quais eram os escritos autorizados para se ter acesso à pregação de Jesus e dos apóstolos, o argumento dos mestres de gnose deveria ser especialmente poderoso. Afinal, a oralidade ainda era a regra.

            O maior efeito de uma subvaloração da oralidade para o tema que ora tratamos é o consequente pressuposto de que o material escrito representa a experiência social do cristianismo antigo, seja em um sentido, seja em outro, a saber: seja pela consideração de que as obras cristãs dos primeiros séculos de algum modo constituem representação fiel do que ocorria entre os cristãos contemporâneos a elas, a ponto de Inácio de Antioquia poder ser considerado, por exemplo, testemunha de um cristianismo que não tem mais qualquer relação com a sinagoga já no início do século II d.C.; seja pela presunção de que as cartas de Inácio teriam um efeito tão certeiro devido a um mal concebido papel primordial e quase sagrado da escrita que, certamente, elas teriam por si só o potencial de interferir na identidade daqueles que as leriam ou ouviriam, sendo, por si mesmas, geradoras de identidade. Essa é uma concepção equivocada com a qual a própria Judith Lieu flerta, para dizermos o mínimo. De fato, ela gera o segundo problema discernível em uma série de estudos sobre as relações entre cristãos e judeus: a reconstrução de “cristianismos” a partir de textos variados, com cada texto servindo como uma espécie de tipo ideal de um grupo particular, uma janela para se enxergar toda uma realidade social para o qual o documento escrito serve como via privilegiada de acesso.

            A raiz histórica de tal opção metodológica deve ser, talvez, procurada na adoção, por parte de teólogos, de instrumentos da crítica literária na análise de textos incorporados ao cânon do Novo Testamento, sobretudo em meados do século XX. Partindo do uso da crítica das fontes e da crítica redacional, muitos estudiosos conceberam a possibilidade de praticamente abandonar a discussão autoral dos evangelhos canonizados (ou seja, o debate acerca de se as mãos por trás da composição de tais escritos pertenceriam de fato às figuras tradicionalmente referidas como sendo seus autores) em prol de uma abordagem mais construtiva desses textos[30]. Nesse sentido, surgiu uma série de estudos procurando reconstruir comunidades inteiras a partir de estudos aprofundados de cada um dos evangelhos, de seus temas e escolhas redacionais. Apesar de muito proveitosos no plano do trabalho árduo de contextualização histórica de cada um dos escritos analisados, o resultado contestável de tais estudos foi a criação de uma série de comunidades idealizadas (o que é sugerido pela própria e frequente referência às mesmas como “a comunidade de Mateus” ou “a comunidade de Marcos”, por exemplo), para as quais faltam testemunhos históricos para além da própria idealização. Talvez o exemplo mais famoso e influente desse tipo de análise seja A comunidade do discípulo amado, livro no qual o padre Raymond E. Brown escreve toda a história de uma comunidade (supostamente) identificável por meio do Evangelho de João, desde sua origem junto a um discípulo anônimo de Jesus, passando por sua existência sectária frente aos outros grupos cristãos, e concluindo com sua pacificação com as igrejas normativas, reunidas em torno da figura do apóstolo Pedro (subentenda-se o cristianismo vigente em Roma e nas comunidades em união com ele; cf. Brown, 2011). Como a reconstrução hipotética de comunidades inteiras a partir de escritos únicos não fosse suficientemente complicada no plano teórico e metodológico, tudo se complica ainda mais quanto o autor procura situar geograficamente tal comunidade, empreitada para a qual os evangelhos se apresentam como documentos especialmente ingratos. É o que ocorre com a análise de John P. Meier sobre o cristianismo presente em Antioquia até o período de Inácio, na qual o Evangelho de Mateus desempenha a função fundamental de conectar o contexto identificável pelas cartas de Paulo e os Atos dos Apóstolos com aquele conectado ao bispo do início do século II. Ora, a identificação de Antioquia como a pátria do evangelho é absolutamente hipotética, uma vez que a obra, por si só, não indica em nenhum momento seu local de origem. Não à toa Meier aparenta terminar seu trabalho com a grande interrogação de como um cristianismo fundamentado em profetas e doutores poderia saltar para um organizado em torno da hierarquia tríplice de bispo, presbíteros e diáconos em poucas décadas (MEIER, 1983, p. 84)[31].

            Ainda que criticáveis em uma série de sentidos, esses trabalhos exerceram enorme influência sobre estudos para além daqueles focados nos evangelhos canônicos e mesmo de outras obras presentes no cânon do Novo Testamento. Certamente o seu legado de maior relevância é a procura por se estabelecer um método histórico-crítico para se abordar documentos que antes eram alvo unicamente de exegese e especulações teológicas. Por outro lado, o enorme esforço de crítica sobre textos tão fundamentais para o Ocidente levou a uma fixação tamanha a ponto de, no período da virada identitária, cada um deles poder ser considerado a expressão de uma identidade cristã em particular, expressa e formulada pelo próprio texto, com consequências sociais quase óbvias. Pois, se é plenamente possível dizer que um texto cristão seja uma janela para uma identidade cristã (a saber, a do autor), considerar que reflita a ou influa na identidade de um grupo não pode ser bem fundamentado sem a análise de outras fontes. Ora, pois é precisamente isto que faz, por exemplo, Judith Lieu, mesmo com a ressalva cautelosa de que uma análise unicamente de textos poderia ser enganosa tendo em vista o alto índice de analfabetismo no Império Romano (LIEU, 2004, p. 8-9). Seu argumento para tanto não se resume à resignação com o fato de que basicamente o que nos restou de material envolvendo o cristianismo antigo são textos, mas também lança mão de um suposto papel construtivo do texto (escrito, como é presumível de sua análise como um todo) não apenas nas primeiras comunidades cristãs, mas também no Império Romano como um todo (LIEU, 2004, p. 10). Ou seja, textos merecem ser analisados por si mesmos pelo fato de eles por si só construírem identidades.

            Ocorre que, conforme já apontado acima, esse parece ser um ponto de vista fundamentado em pressupostos anacrônicos, partindo da importância da Bíblia como um corpo coeso para o cristianismo posterior ao processo de normatização nos séculos IV e V d.C. e, logicamente, de sua função central nas denominações protestantes, que tem na Escritura e em sua leitura o único acesso à verdade revelada. Para definirmos, porém, para o presente estudo como consideraremos uma possível fronteira externa entre cristãos e judeus, será necessário questionar essa espécie de abordagem. As palavras de Valtair Afonso Miranda, nesse sentido, apontam a espécie de questionamento a ser feito:

A literatura cristã dos primórdios não é um sistema de pensamento, mas somente fragmento, resíduo de reflexões religiosas dos antigos cristãos. E, mesmo assim, apenas de um círculo muito restrito de pensadores. Em novos movimentos religiosos, apenas um grupo muito limitado de pessoas se engaja em algum tipo de teorização de ideias. Poucos se envolvem com a reflexão teórica das crenças do movimento em seus momentos iniciais. Estas fontes podem indiciar não mais do que aquilo que seus autores e comunidades muito restritas pensavam a respeito de um dado aspecto religioso de sua fé, prática e valores. Estudos do Cristianismo antigo parecem não dar à circunstancialidade das fontes a devida atenção. (MIRANDA, 2015, p. 92)

 

Para o caso presentemente tratado, peguemos, como exemplo para o questionamento feito por Miranda, o caso da rejeição do judaísmo expressada por Inácio de Antioquia em ao menos duas de suas cartas, uma aos cristãos de Magnésia e outra aos de Filadélfia. Recordemos já de início que Inácio é considerado, conforme já visto, a expressão da ruptura definitiva entre cristianismo e judaísmo por Hengel. De fato, o bispo tem algumas palavras duras para se referir às relações entre o que ele considera como grupos distintos, como aquelas que dirige aos cristãos magnésios: “Não     sejais     enganados     por     opiniões     errôneas nem por fábulas velhas, que são inúteis. Pois se continuamos a viver até agora de acordo com o judaísmo, nós confessamos que não recebemos a graça” (Magnésios 8,1; grifos meus).

Se tomarmos Inácio como testemunha de um estado de coisas ou como uma influência determinante na formação da identidade local dos cristãos da Ásia a quem se dirige e, mais especificamente, dos que residem em Magnésia, estaremos obrigados a concordar com Hengel de que esse é um ponto de não retorno para a divisão entre cristianismo e judaísmo, pelo menos no caso dessa região do Mediterrâneo. Ao rejeitar que cristãos deem continuidade aos usos rituais e cotidianos judaicos, o bispo antioqueno, como o apóstolo Paulo ao qual tem como uma espécie de guia (cf. Efésios 12,1), aparentemente estaria construindo um muro identitário entre os grupos em questão: afinal, se não observarem os mesmos preceitos rituais, dificilmente seus membros compartilharão os mesmos espaços de convivência e terão interação entre si.

            O que ocorre, contudo, é precisamente o contrário em uma série de sentidos, e isso na própria Ásia, para cujas igrejas Inácio escreve. De fato, ao longo de boa parte do século II, a grande característica ritual distintiva dos cristãos da Ásia em comparação com seus correligionários espalhados em outros cantos do Mediterrâneo será justamente a celebração da Páscoa em consonância com o calendário lunar observado pelos judeus em sua maioria, não importando que ela caia em um domingo ou não. A defesa enfática de tal tradição pelos cristãos locais, vocalizada sobretudo por bispos como Polícrates de Éfeso (cf. Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica IV.24.1-8), aparenta ir completamente contra o preceito defendido por Inácio. Tudo se torna mais contraditório e complexo quando observamos que um dos principais defensores da manutenção da celebração pascal no dia 14 do mês de Nissan é, precisamente, Policarpo de Esmirna, o único bispo a ter uma carta semiprivada[32] conservada no epistolário inaciano. Também sabemos ser Policarpo o principal responsável pelo estabelecimento da curta coletânea de cartas do bispo de Antioquia, como ele mesmo o diz em sua comunicação com os cristãos de Filipos, na Macedônia[33]. Após difundir as epístolas em que Inácio traça sua visão da relação entre cristãos e judeus, Policarpo, bem posteriormente, dirigiu-se a Roma, de modo a defender em debate com o bispo local a opção dos cristãos asiáticos de manter o uso que, na versão do bispo de Esmirna (conforme relatado por Irineu de Lyon, que também não vem a ser uma fonte das mais isentas; cf. Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica IV.24.16), fora levado à região da Ásia pelo próprio João, discípulo de Jesus. Em suma, a exortação escrita de Inácio não parece ter surtido efeito frente a uma forte tradição local, cuja normatividade não aparenta ter sido estabelecida por uma obra escrita, mas sim na pura e simples oralidade. Note-se, nesse sentido, que, por mais que o Evangelho de João aparente ser usado como argumento (embora não seja citado explicitamente), os atores do debate preferem lançar mão precisamente da tradição oral como base normativa para defender seus posicionamentos, o que só acresce ao nosso argumento. Vejamos como o diz Polícrates de Éfeso, já ao fim do século II, após citar o discípulo João, o apóstolo Filipe e suas filhas profetisas, além de mártires como base de seu argumento:

Todos eles guardaram o décimo quarto dia [ou seja, o 14 de Nissan] da Páscoa de acordo com o evangelho [de João?], jamais se desviando, mas seguindo de acordo com a regra da fé. E também eu, Polícrates, o último de todos vós, vivo de acordo com a tradição de minha parentela (κατὰ παράδοσιν τῶν συγγενῶν μου), e a alguns deles segui. Pois sete de minha família foram bispos e eu sou o oitavo, e meus parentes sempre mantiveram o dia em que o povo evita o fermento. Desse modo, irmãos, eu, que vivi sessenta e cinco anos no Senhor e me entretive com irmãos de todo país, e que estudei toda a sagrada escritura, não tenho medo de ameaças, pois assim disseram aqueles que foram maiores que eu: “É preciso obedecer a Deus antes que aos homens” (citado em Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica V.24.6-7).

 

Se mesmo a esperada autoridade de um mártir não é suficiente para suprimir completamente a adoção de práticas rituais vinculadas ao judaísmo entre os cristãos da Ásia, mesmo a ponto de estarem dispostos a ir até as últimas consequências para defenderem sua tradição, todo o fundamento da primazia do escrito sobre a constituição e delimitação de identidades no cristianismo antigo pode estar em xeque. E, de fato, Inácio não era um autor qualquer para os primeiros cristãos: ele é citado por Irineu de Lyon (embora não nominalmente)[34] e tem seu epistolário expandido com cartas forjadas entre os séculos III e IV, de modo a que pudesse lidar com novas questões cristológicas posteriores ao seu tempo[35]. No entanto, sua obra simplesmente não pôde superar a tendência forte entre os cristãos da Ásia de manter a sua celebração da Páscoa vinculada ao ritual judaico. Certamente que isso não significava que as relações entre os cristãos e as sinagogas fosse um mar de rosas: no Martírio de Policarpo, por exemplo, o autor anônimo, que afirma escrever em nome de toda a congregação de Esmirna, faz questão de citar os judeus como aqueles mais ávidos por levar o famoso bispo à morte (cf. Martírio de Policarpo 13,1; 17,2). No entanto, essa é uma voz dentro de uma variedade de outras, muitas delas silenciadas ou ignoradas justamente pela adoção posterior de determinados escritores e fontes como normativos para a ortodoxia e o catolicismo.

            Nesse sentido, a aparente fronteira de identidade existente entre cristãos e judeus parece ter sido alvo de intensas negociações e de ainda mais intensos conflitos, e isso justamente por ser muito mal definida. Por longo tempo se pensou que a fronteira estivesse simplesmente no ato de confessar a fé em Jesus Cristo, mas sabe-se que muitos judeus à época o fizeram sem esperar que isso significasse o abandono de sua identidade judaica, como vimos no próprio relato de Eusébio sobre a difícil posição dos judeus cristãos da Palestina à época da revolta de Bar Kochba, no reinado de Adriano. Por outro lado, a confissão da fé em Cristo parece ter sido menos problemática do ponto de vista das autoridades judaicas do que antes se supunha; de fato, a suposição que antes era simplesmente uma regra se fundamentava sobretudo em relatos vindos do lado cristão do debate, como no caso dos Atos dos Apóstolos, do Evangelho de João e do Diálogo com Trifão, de Justino de Roma. No entanto, das escassas obras e tradições judaicas entre a queda do Templo e a composição dos livros do Talmude, já na Antiguidade Tardia, tudo o que podemos retirar a respeito de cristãos é um silêncio quase total (JACOBS, 2008, p. 173). Se pudermos retirar alguma sombra de reação de judeus mais estritos ao cristianismo de Trifão e seus amigos, personagens do referido Diálogo escrito por Justino, o que temos são zombeteiros (9,2), judeus que simplesmente desprezam aqueles que confessam Cristo e um deus único sem se aplicar às normas que realmente fariam alguém membro do povo único de Deus, Israel. Para Trifão, soa incongruente que os cristãos queiram destoar da plebe pagã sendo que se pareciam tanto com a mesma, enquanto adoravam um crucificado, e seu argumento bem poderia espelhar o pensamento de muitos judeus não-cristãos:

Antes, o que nos deixa sobretudo perplexos é o fato de que vós, que dizeis praticar a religião e vos considerais superiores à plebe pagã, em nada sois melhores do que eles, nem viveis uma vida diferente dos pagãos. Não guardais as festas e sábados, nem praticais a circuncisão. Além disso, pondes vossas esperanças em um homem crucificado, confiando receber de Deus algum bem sem guardar os mandamentos dele. (Diálogo com Trifão 10,3)[36]

 

Se a existência de uma tendência de violência judaica contra o cristianismo nos primeiros séculos é hoje questionada, o mesmo se pode dizer do pressuposto de que qualquer divinização de Jesus fosse inadmissível ao estrito monoteísmo judaico, considerando que Moisés poderia, à mesma época, ser descrito por vezes de forma tão apoteótica quando o Cristo dos evangelhos (CONWAY, 2008, p. 49-58) e das cartas de Paulo. Outras possíveis fronteiras, como a aparente rejeição dos seguidores de Paulo à Lei mosaica e o desprezo pelos ritos judaicos mais estritamente, como no caso de Inácio de Antioquia, hoje podem ter seu peso severamente relativizado: o primeiro pela própria nova perspectiva sobre Paulo, que relativiza sua caracterização como alguém que despreza a Lei, e o segundo pela própria ausência de resposta pronta da parte de seus interlocutores, conforme já observado acima.

                Com uma fronteira tão mal definida, faríamos bem em não eliminar de todo a presença de cristãos que se identificassem também como judeus no interior das igrejas, e mesmo de cristãos não-judeus que interagissem com a sinagoga ou outros grupos de identificação judaica. De fato, em termos de interação entre judeus e cristãos, o paradigma mais seguro de ser adotado por estudos sobre cristianismo antigo parece ser um de alternâncias entre conflito e interação, provavelmente com influência das diferentes conjunturas ao longo dos três séculos que delimitam nosso estudo. Em alguns momentos, como nas revoltas judaicas, por exemplo, talvez parte dos cristãos optasse por evitar a identificação com um grupo que talvez lhes trouxesse problemas para além do que já tinham, enquanto outra parte entraria no mesmo barco de seus conacionais, como no caso dos trágicos cristãos de Jerusalém durante a revolta de Bar Kochba. Em outros momentos, como sugerido por Monica Selvatici em um estudo preciso, talvez muitos cristãos preferissem se identificar com os judeus, de modo a poderem receber as mesmas isenções que eles possuíam, sobretudo a liberação para a não participação em cultos cívicos e/ou ao imperador (SELVATICI, 2015). Talvez os próprios judeus procurassem se diferenciar dos cristãos em alguns momentos, como no caso relatado pelo Martírio de Policarpo: em uma posição já tão fragilizada e instável após duas revoltas violenta e traumaticamente suprimidas, é possível que a comunidade judaica de Esmirna (ou uma parte dela) de fato demonstrasse um zelo ainda maior na perseguição aos cristãos, conforme relatado pelo autor, de modo a poder afastar de si mesma a sombra da violência romana.

 

Conclusão

            Como conclusão, podemos retomar a questão que dominou a historiografia da segunda metade do século XX acerca das relações entre cristãos e judeus nos primeiros séculos depois de Cristo: quando teria ocorrido a “separação dos caminhos”? Ou, posta em outros termos, quando teria sido de fato consolidada uma fronteira definitiva entre cristianismo e judaísmo? Deveremos deixar a questão por responder, ao menos no que tange o período entre o fim do século I e o início do século IV d.C., pois muitos indícios apontam para uma situação de indefinição durante todo esse recorte cronológico, e mesmo para além dele. Apesar de que a cisão definitiva entre cristãos e judeus fosse uma agenda existente e identificável em diversas obras, sobretudo da parte de escritores cristãos, esse não era um ponto pacífico, por exemplo, mesmo na Antioquia de João Crisóstomo, já no fim do século IV, conforme análise de Gilvan Ventura Silva (o que, na análise do professor, levaria o então presbítero a disputar com os judeus locais os espaços da metrópole por meio de suas homilias; SILVA, 2012). Pela mesma época, Jerônimo encontrava-se em contato com cristãos que, aparentemente, sustentavam para si uma identidade judaica, e esse contato era fundamental para que ele compreendesse conceitos judaicos existentes nos livros da Bíblia Hebraica, assim como de livros sagrados cristãos de um caráter semítico mais pronunciado que os demais, como no caso do Evangelho de Mateus[37]. Diversas concepções de fronteira identitária, portanto, serão identificadas nas fontes, tanto nas teses defendidas pelos autores quanto em posicionamentos que podem ser acessados em leituras a contrapelo das fontes, como no caso dos cristãos criticados por Inácio de Antioquia em Magnésia e Filadélfia por ainda praticarem o judaísmo. Uma conclusão, contudo, convém levantar: sempre que, em um determinado estudo no campo de cristianismo antigo, diferentes asserções de identidade judaica por parte de cristãos influírem na própria disposição (imposta, disputada ou negociada) de fronteiras sociais do(s) grupo(s) analisado(s), é necessário que o/a pesquisador(a) esclareça, a partir das evidências reunidas, como tal dinâmica se apresenta no recorte cronológico e geográfico (ou de grupo mesmo) escolhido. Pois, diante de fenômeno tão fluido, tal dinâmica sempre se dará de modo situacional, e não de forma generalizada para todo o cristianismo de então.

 

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Recebido em 30/04/2022.

Aceito em 20/06/2022.



[1] Mestre e doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Brasil. O presente artigo integra pesquisa de doutorado em andamento, com financiamento da FAPESP (n. do processo: 2018/25570-8). E-mail: pl_piza@hotmail.com | https://orcid.org/0000-0001-7097-8088

[2] O conceito de “fronteira” é daqueles sobejamente utilizados, ao mesmo tempo que parcamente conceitualizados. Uma teorização que acredito poder ser útil para a presente exposição é aquela de Lamont e Molnar, segundo a qual as fronteiras (consideradas de um ponto de vista social) são formas objetificadas de diferenças sociais manifestas no acesso desigual a e na distribuição desigual de recursos (materiais e imateriais) e oportunidades sociais” (2002, p. 168). Acredito, ao mesmo tempo, que as identidades que estão em jogo aqui podem ser consideradas, em termos de comunidades cristãs enquanto grupos sociais, como equivalentes ou ao menos similares ao que Guarinello entende como “fronteiras externas” a um agrupamento sociopolítico, no caso, o próprio Império Romano (2010). Não é mais grato encontrar uma conceituação satisfatória de “identidade”. No entanto, compartilhamos a aquela feita por Rébillard, segundo o qual identidades são “significados” que indivíduos mantém para si mesmos, baseados seja no compartilhamento de alguma categoria social, função ou “entidades biológicas”, assim como recebemos (como espero fique claro ao longo do texto) a crítica que o autor faz de qualquer concepção “grupista” das identidades em jogo no cristianismo antigo (RÉBILLARD, 2012, p. 4).

[3] A partir de passagens como essa, John P. Meier procurou reconstruir todo o quadro social de uma comunidade cristã que estaria representada em Mateus, a qual ele considera ser a “segunda geração” dos cristãos de Antioquia (MEIER, 1983, p. 45-72). No entanto, que a comunidade do autor de Mateus possa ser localizada na metrópole síria é mera hipótese, acompanhada por Koester (2005, p. 188), mas que não encontra lastro no próprio documento. Dillon, por exemplo, prefere Cesareia Marítima como local de composição do evangelho (DILLON, 2011, p. 133). Concordo, porém, com Bauckham em sua avaliação de que procurar comunidades específicas para localizar a composição dos evangelhos não só é impossível, como costuma gerar reconstruções as mais fantasiosas (BAUCKHAM, 1998, p. 9-48).

[4] Brown, por exemplo, confere não apenas ao autor, como também ao personagem do “discípulo amado”, central para a narrativa, uma origem judaica especificamente palestinense, em conjunto com, pelo menos, toda a primeira geração de seguidores do dito discípulo (BROWN, 2011, p. 25-34). Podemos concluir com Pheme Perkins que “à medida que os biblistas recuperam a diversidade do judaísmo do séc. I, o pano de fundo judaico do Quarto Evangelho é enfocado com mais precisão” (PERKINS, 2011, p. 735).

[5] Não cabe aqui entrar a fundo em todo o longuíssimo debate a respeito de quem seria o autor do Evangelho de João, ou qual seria a identidade do “discípulo amado” por Cristo segundo a narrativa. Ainda na Antiguidade, Eusébio é obrigado a reconhecer que mesmo um autor que ele admirava tanto, como Irineu de Lyon, provavelmente se confundia quando se tratava de conferir alguma autoria à obra (História Eclesiástica III.39.5-6). Mesmo especialistas que dedicaram uma carreira inteira ao estudo desse evangelho, como é o caso de Raymond E. Brown (BROWN, 2011, p. 34-35), vieram a alterar sua visão a esse respeito em um momento ou outro. Optamos por assumir a obra como anônima de um autor de origem judaica, provavelmente oriundo da Palestina.

[6] Um bom quadro comparativo entre as informações fornecidas pelo autor dos Atos dos Apóstolos e o próprio Paulo em suas cartas se encontra em Carrez, 2008, p. 23-28.

[7] É certo que Eusébio está bem longe de ser algo como um intérprete isento; ainda assim, seu papel enquanto reprodutor literal (ainda que seletivo) de fontes antigas segue sendo central para qualquer pesquisador de cristianismo antigo. Sobre alguns aspectos básicos da escrita de Eusébio e de seu uso de fontes, cf. Winkelmann, 2003. Para as fontes escritas que Eusébio teria à sua disposição na famosa biblioteca de Orígenes em Cesareia Marítima, cf. Carriker, 2003.

[8] As prescrições do nazireato encontram-se em Números 6,1-21. Por vezes o voto do narizereato é relacionado, na Bíblia hebraica, a personagens poderosos que executam um papel fundamental nas narrativas. É o caso famoso de Sansão, por exemplo, conforme Juízes 13,3-5. Muito provavelmente o autor dos Atos dos Apóstolos visou conferir a Paulo um papel semelhante ao narrar, ainda que rapidamente, que ele teria cumprido um voto de nazireato ao cortar seus cabelos em Cencreia, na Acaia (Atos dos Apóstolos 18,18).

[9] Note-se que esse mesmo qualificativo é dado pelo autor do Evangelho de Mateus ao pai de Tiago, José, quando é dito que ele havia preferido divorciar-se de Maria em segredo quando soube que ela estava grávida (cf. Mateus 1,19). Comentando esse versículo, Viviano aponta que “a justiça de José consiste na obediência à lei [hebraica], mas a mesma é moderada pela sua compaixão, que o impede de querer exigir a pena completa da lei, o apedrejamento” (VIVIANO, 2011, p. 140).

[10] Em pelo menos dois evangelhos o final desastroso da rebelião judaica de 66-70 d.C. é posto na conta de uma rejeição maciça de Jesus por parte dos judeus de Jerusalém. No Evangelho de Mateus há uma sugestão quando, respondendo a Pilatos que lava as mãos, os presentes respondem, como já citado anteriormente: “O sangue dele sobre nós e sobre nossos filhos” (27,25). No Evangelho de Lucas, a correlação é mais explícita, na medida em que o próprio Jesus a proclama em seu caminho para a morte: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim. Chorai por vós mesmas e por vossos filhos. Pois eis que virão dias em que se dirá: ‘Bem-aventuradas as estéreis e os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram!’ Nesse momento começarão a dizer aos montes: ‘Caí sobre nós!’. E às colinas: ‘Cobri-nos’. Porque se fazem tais coisas à árvore verde, o que não acontecerá à seca?” (23,28-31)

[11] A respeito desses autores e a relação de suas obras com a de Eusébio de Cesareia, cf. Leppin, 2003.

[12] Eusébio insere tanto o Evangelho de Lucas quanto os Atos dos Apóstolos entre os livros do “Novo Testamento” em História Eclesiástica III.25.1. O cânon por ele aceito, no entanto, não era exatamente igual o que se tornará praticamente universal entre as Igrejas cristãs no futuro, pois não considerava como aceitos por todos os bispos livros como o Apocalipse de João, a Epístola de Tiago, a Epístola de Judas, a Segunda Epístola de Pedro e a Segunda e Terceira Epístolas de João, como deixa claro logo a seguir em III.25.2-3.

[13] Por mais que o autor de Atos dos Apóstolos restrinja a judeus a proveniência das diversas regiões e nações do mundo listadas no episódio de Pentecostes em 2,9-11, estudiosos como Dillon (2011, p. 327-328) consideram grande a probabilidade de essa lista preceder a obra em si (uma vez que ela não reflete precisamente a geografia da narrativa) e não estar restrita a judeus e prosélitos.

[14] Costuma ser mais raro identificar os autores que defendem uma etnicidade cristã específica do que os que não explicitam tal visão ou mesmo sugerem ser-lhe contrários. Justino, por exemplo, claramente continuava a pensar em si mesmo como um membro das “nações”, em contraposição aos judeus (Diálogo com Trifão 123,1).

[15] A respeito do enquadramento do cristianismo como superstitio por algumas autoridades romanas e ainda acerca de outras visões mantidas por autores antigos acerca dos cristãos em geral, o estudo referencial segue sendo o de Wilken, 2003.

[16] Para a sobrevivência, por exemplo, de escolas filosóficas não-cristãs até o século VI em Atenas e Alexandria, cf. Watts, 2006.

[17] Vale notar, para além do que é discutido aqui, que a noção de “separação de caminhos” tem como pano de fundo as relações entre comunidades judaicas e cristãs na contemporaneidade, como anota Jacobs: “... a ‘separação de caminhos’ é uma metáfora clara, ainda que benigna, que permite a cada religião [judaísmo e cristianismo] manter uma história robusta e uma genealogia em comum, permanecendo conectadas apenas o suficiente para justificar relações contínuas e amigáveis, mas não tão conectadas de modo que a tradição específica de cada religião fique deveras embaçada.” (2008, p. 170).

[18] Cf. Carta aos Filadelfienses 6,1: “É melhor ouvir cristianismo de um homem circuncidado do que o judaísmo de um homem incircunciso”. No entanto, as palavras duras de Inácio contra o judaísmo não refletem exatamente uma barreira (nem mesmo de sua parte) com relação a cristãos judeus. Cf. Piza, 2015.

[19] Apesar de reconhecer a extensão e completude da obra de Harnack, Raisänen questiona o impacto que poderia ter para a análise a admiração do estudioso por Marcião, o qual seria, em sua visão, uma espécie de precursor de Martinho Lutero e do próprio Harnack (2008, p. 102).

[20] O momento em que o declara mais claramente é em sua carta aos cristãos de Filipos, na Macedônia: “Se qualquer outro julga confiar na carne, eu muito mais. Circuncisão ao oitavo dia; da raça de Israel; da tribo de Benjamim; hebreu [nascido] de hebreus; segundo a Lei, fariseu; segundo o zelo, perseguidor da Igreja; segundo justificativa acontecida na lei, irrepreensível” (3,4-6).

[21] Segundo Black II (1986, p.132), seriam características geralmente aceitas do “protocatolicismo” (por estudiosos que acreditam ou acreditavam que algo do tipo teria existido): 1. Uma preocupação com as fontes, transmissão e interpretação da tradição; 2. Um interesse em coletar literatura apostólica; 3. A distinção entre clero e laicato; 4. Uma organização eclesial que é fundamentalmente hierárquica, ao invés de carismática; 5. O desenvolvimento de um episcopado monárquico; 6. Um emergente princípio de autoridade transmitida ou sucessão apostólica; 7. A concepção da fé em termos que são estáticos e objetivos, ao invés de dinâmicos e subjetivos, resultando em uma proclamação objetificada e em uma regra estrita de fé; 8. Uma ênfase sobre uma doutrina sã, ou “ortodoxia”, em contraposição ao falso ensinamento, ou “heresia”; 9. Uma moralização da fé, pendendo para o legalismo; 10. Uma preocupação com a consolidação e unidade eclesiásticas; 11. Uma tendência em direção ao “sacramentalismo”, entalhando uma imagem da Igreja como detentora da salvação e; 12. O declínio da escatologia apocalíptica em geral, assim como da expectativa da parousia.

[22] Cf. Dunn, 2011; Sanders, 2009. Algumas experiências recentes de pesquisa nacional acerca da obra de Paulo dentro do quadro diverso do judaísmo do séc. I d.C. são Machado, 2009 e Nogueira, 2016.

[23] A maioria dos estudiosos têm por autênticas apenas as cartas de Paulo aos romanos, as duas aos coríntios, aos gálatas, aos filipenses, a primeira aos tessalonicenses e a carta/bilhete particular a Filêmon. As demais ou são tidas por obras do círculo próximo ou mesmo como fabricações espúrias, por vezes de períodos bem posteriores à sua morte.

[24] Mesmo o autor do Evangelho de Marcos, um dos poucos autores cristãos do séc. I  frequentemente tidos como de origem não-judaica, pôde ter sua proveniência judia coerentemente defendida por Yarbro Collins (2007, p. 6).

[25] Alguns exemplos que podem ser citados são o midraxe sobre o véu de Moisés em 2 Coríntios 3,7-19 e o midraxe sobre Agar, a escrava de Abraão, em Gálatas 4,21-31.

[26] A sugestão do plural se deve ao fato de alguns textos de Qumran, como 1Q28a., sugerirem a expectativa por dois Messias diferentes: um destinado ao sacerdócio e outro à realeza de Israel.

[27] É o caso, por exemplo, do divórcio: “Aos já casados eu ordeno – aliás não eu, mas o Senhor – que a mulher não seja separada do marido” (1Coríntios 7,10). Que esse não é um mero artifício retórico de Paulo para sancionar divinamente um preceito seu fica claro logo a seguir, quando trata da possibilidade de separação entre crentes e descrentes: “Aos restantes, é isto que eu digo (eu – não o Senhor): se algum crente tem uma mulher não crente, e esta está disposta a viver com ele, que não a repudie” (7,12). Além do mais, a proibição do divórcio por Jesus encontra eco em Marcos 10,2-9 e, em uma tradição independente, em Mateus 5,31-32.

[28] Afora o caso explícito da proibição do divórcio por Jesus referida na nota anterior, podemos citar, por exemplo, o paralelo entre a narrativa da multiplicação dos pães e dos peixes, com a subsequente caminhada pelas águas por Jesus, em Marcos 6,35-52 e a de João 6,5-21.

[29] O próprio Evangelho da Verdade, por exemplo, não se trata de uma narrativa de feitos e ensinos de Jesus, seja antes ou depois de sua ressurreição (como ocorre com outros escritos como o Apócrifo de João, por exemplo), mas de um discurso (de Valentino?) acerca de uma série de mistérios sobre o “Pai” e o próprio Cristo.

[30] Certamente uma exploração mais minuciosa acerca desse tema exigiria todo um artigo próprio. Uma vez, contudo, que a análise de evangelhos não é o foco do presente estudo, ainda que alguns sirvam como documentos, é mais prudente referir Koester (2005, p. 47-79) como um sintetizador das teorias referidas, e, mais uma vez, Bauckham (1998) como uma crítica contundente.

[31] Note-se que Meier está considerando Inácio como representante do cristianismo normativo em Antioquia, o que, por si só, é questionável, conforme já dito.

[32] Digo semiprivada pois o trecho abrangendo 6,1-2 e 7,1-3 da Carta a Policarpo dita comandos e exortações no plural, restando claro que Inácio esperava que sua carta ao bispo de Esmirna fosse lida em voz alta para todos aqueles reunidos em torno de Policarpo.

[33] A tradição manuscrita parece indicar que a carta de Inácio aos romanos não fez parte dessa coleção inicial feita por Policarpo, sendo copiada de modo independente, provavelmente na própria Roma. Cf. Schoedel, 1985, p. 3-7.

[34] “Como disse alguém dos nossos condenado às feras, por causa do testemunho que prestou a Deus: ‘Eu sou o trigo de Cristo moído pelos dentes das feras para me tornar o pão puro de Deus’.” Trata-se de uma citação da carta de Inácio aos Romanos 4,1.

[35] As cartas forjadas se constituem de uma correspondência entre Inácio e uma certa Maria de Cassobola, além de Tarsenses, Antioquenos, a Hero e aos Filipenses.

[36] Note-se que, na mesma obra, apesar de Justino acusar (sobretudo mais para o fim do livro) seus adversários judeus de sempre serem agressivos contra o cristianismo enquanto se encontravam em posições de poder (Diálogo com Trifão 16,4), ele mesmo precisa lançar mão de uma tradição não verificada em qualquer outra fonte de que emissários judeus teriam, após a ascensão de Cristo, sido enviados para todo o mundo (!) para lançar acusações prévias contra o novo movimento, de modo a impor mais responsabilidade aos judeus do que às próprias autoridades romanas pelas hostilidades enfrentadas pelos cristãos em seu tempo (11,1).

[37] Os testemunhos de Jerônimo acerca dos escritos utilizados por cristãos judeus da Síria-Palestina foram reunidos por Vielhauer, 1963, p. 117-139.