Ações não humanas no mundo missioneiro da província jesuítica do Paraguay: uma perspectiva da história ambiental

Non-Human actions in the missionary world of the jesuitic Province of Paraguay: a perspective of Environmental History

 

                                                                                               Tuani de Cristo[1]

Luís Fernando da Silva Laroque[2]

 

 

 


Resumo

O presente artigo tem por finalidade apresentar a participação dos não humanos e os impactos causados por problemas ambientais na convivência com os Guarani e jesuítas nas missões durante os séculos XVII e XVIII. O estudo utilizou-se de documentos escritos pelos padres jesuítas, como cartas e diários encontrados no Centro de Pesquisas Históricas da PUCRS e obras publicadas por Jaime Cortesão (1969), Hélio Vianna (1970), padre Antônio Sepp (1951) e bibliografias que abordam as missões jesuíticas e práticas indígenas. Os pressupostos teóricos se fundamentam em autores da História Ambiental que auxiliam na compreensão do comportamento de determinadas espécies e impactos ambientais. Os resultados apontam para ações de ratões, formigas e gafanhotos no cotidiano das missões jesuíticas. Situações que geraram fome e a cobrança dos indígenas para que os padres formulassem soluções para os problemas. Com base na História Ambiental demonstrou-se como os não humanos causaram constrangimentos e ao mesmo tempo influenciaram ações por parte dos padres e também de lideranças xamânicas.

Palavras-chave: Missões jesuíticas; Guarani; Não humanos.

Abstract

This article aims to present the participation of non-humans and the impacts caused by environmental problems in the coexistence with the Guarani and Jesuits in the missions during the 17th and 18th centuries. The study used documents written by the Jesuit priests, such as letters and diaries, found at the PUCRS Historical Research Center and works published by Jaime Cortesão (1969), Hélio Vianna (1970), Father Antônio Sepp (1951) and bibliographies that address Jesuit missions and indigenous practices. Theorists are based on authors of Environmental History who help to understand the behavior of certain species and environmental impacts. The results point to the actions of rats, ants and locusts in the daily life of the Jesuit missions. Situations that generated hunger and demand from the indigenous people for the priests to formulate solutions to the problems. Based on Environmental History, it was demonstrated how non-humans caused embarrassment and, at the same time, influenced actions by the priests and also by shamanic leaders.

Keywords: Jesuit Missions; Guarani; Non-humans.


 

 

 

Introdução

Ao longo das últimas décadas, as missões jesuítico-indígenas têm sido tema de investigações de diversos pesquisadores, como arqueólogos e historiadores. Passados mais de dois séculos desde a expulsão dos jesuítas da América, existe uma infinidade de fontes e evidências que demonstram a atuação da Companhia de Jesus junto aos povos indígenas. O acervo documental é imenso e variado, composto por cartas, diários e obras escritas pelos missionários. Já no plano material existem as estruturas missioneiras que são objetos de pesquisas arqueológicas. Todos estes elementos somados, permitiram que as pesquisas referentes ao período missioneiro se tornassem um verdadeiro caleidoscópio de temáticas, questionamentos e métodos.

A maior parte dos registros documentais legados pelos jesuítas referem-se às vivências com os povos indígenas, o que permite a análise das diferentes culturas e línguas que ocupavam o continente americano nos séculos XVII e XVIII. Mas, para além destas referências, algumas narrativas também abordam questões ambientais, descrições geográficas, clima, fauna, flora e adversidades ambientais que geraram problemas sociais a serem enfrentados por indígenas e padres. Sendo assim, o presente artigo tem como objetivo investigar a participação dos não humanos[3] e quais os impactos causados por problemas ambientais na convivência entre os povos indígenas e os padres jesuítas nas missões durante os séculos XVII e XVIII. A análise se fundamenta em pressupostos teóricos da História Ambiental, como Diamond (2008), McNeill (2010), Cabral (2014a; 2014b; 2014c) e Fernandes e Pádua (2018).

A pesquisa documental embasou-se na análise dos Manuscritos da Coleção de Angelis encontrados no Centro de Pesquisas Históricas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Também foram utilizados os manuscritos “MCA - Carta Ânua de 1635-1636” e “MCA - Carta Ânua da Redução de Santa Maria do Iguaçu, 1627”, compilados respectivamente por Jaime Cortesão na obra “Jesuítas e Bandeirantes no Tape, 1615-1641” (1669) e Hélio Vianna “Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai, 1611-1758” (1970), ambas disponíveis no acervo digital da Biblioteca Nacional. A obra do padre Antônio Sepp intitulada “Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos” (1951), também foi consultada.

As pesquisas na área da História Ambiental têm demonstrado o quanto as transformações humanas no ambiente causam ações e reações das demais espécies que habitam os mesmos territórios. Ao mesmo tempo, as ações dos não humanos também geram transformações para os humanos, obrigando-os a formular e reformular estratégias para lidar com estas situações. Não é novidade para os historiadores que o surgimento da agricultura causou mudanças significativas no modo de vida de muitos grupos humanos. A dependência da maior parte das sociedades humanas em relação a poucas espécies vegetais e animais, como os cereais e animais domesticados, pode ser apontada como algumas das transformações que se desenvolveram ao longo do tempo. Consequentemente, quando fatores abióticos ou bióticos agem ou reagem às transformações antrópicas, causam problemas sociais, políticos e econômicos para o sapiens (CABRAL, 2014a), a exemplo da perda de plantações e animais domésticos.

Impactos ambientais gerados por ações humanas não são situações exclusivas do presente. Os registros documentais realizados pelos colonizadores ibéricos demonstram que já nos primeiros anos desde a invasão das primeiras caravelas, houve o enfrentamento às reações do mundo não humano. Nas cartas descritas pelos jesuítas que atuaram em territórios da América hispânica, são apontadas algumas destas adversidades. O historiador Jean Baptista (2004; 2015b) trouxe para a visibilidade a participação dos não humanos nas missões jesuíticas do Paraguay, discorrendo sobre como os indígenas missioneiros e os jesuítas foram afetados por adversidades ambientais. Eventos que comprovam que o denominado mundo não humano foi atuante nos processos históricos ao longo do tempo.

Jared Diamond (2008) demonstra que as doenças transportadas pelos ibéricos ao continente americano e a rápida disseminação dos germes entre os coletivos indígenas foi tão ou mais importante do que as armas para o avanço dos colonizadores nos territórios da América, dizimando milhões de indígenas. Já John McNeill (2010) analisou como os mosquitos, transmissores da febre amarela e da malária, foram participantes na decisão de revoluções e na formação de impérios no Caribe. O argumento proposto por McNeill (2010) é de que até o século XVIII, o Aedes aegypti e os mosquitos do gênero Anopheles foram importantes na sustentação do poder da Coroa Espanhola na região do Caribe, pois os exércitos estrangeiros não possuíam anticorpos resistentes à febre amarela e à malária, portanto não conseguiam se sustentar nas invasões devido às baixas geradas pelas doenças. Porém, a partir de 1770, com as revoltas internas visando as independências, os mosquitos foram “aliados” dos revolucionários, infectando o exército espanhol oriundo do continente, os quais não possuíam anticorpos contra as doenças. É importante salientar que McNeill (2010) não defende que os mosquitos foram determinantes destes processos históricos, mas como participantes, nortearam as chances de vitória ou derrota dos soldados. A análise do autor não se baseia na agentividade dos mosquitos, mas nas interações entre estes insetos, vírus, ambiente e humanos, influenciando as questões políticas.

Já Diogo de Carvalho Cabral (2014b; 2014c), propõe que analisemos o território brasileiro a partir de uma abordagem ecológica, não antropocêntrica, onde as espécies convivem e interagem, de modo que a agência histórica é assumida por todos os seres vivos e fatores abióticos. Diogo de Carvalho Cabral (2014b; 2014c) desconstrói a visão de que os não humanos estão no planeta para servir aos “caprichos” do Homo sapiens e que a “natureza” é um cenário, no qual encenamos a vida cotidiana. Com base em uma análise menos antropocêntrica das fontes históricas, Diogo de Carvalho Cabral (2014c) aponta os problemas ou os obstáculos causados por formigas do gênero Atta e Acromyrmex aos colonos portugueses no Brasil do período colonial. A política econômica dos colonizadores portugueses se baseou na exploração e extração de recursos ambientais encontrados no litoral brasileiro, de modo que a deflorestação e introdução de espécies exóticas, sem mecanismos de defesas contra os predadores endêmicos, foi um atrativo paradisíaco para as formigas cortadeiras. A solução encontrada por muitos agricultores portugueses foi abandonar e se movimentar em busca de novas áreas de terra para explorar e cultivar (CABRAL, 2014c).

O ponto em comum entre os referidos autores é a compreensão de que as demais espécies também são participantes e determinantes nos processos históricos, tornando visíveis ao olhar já “viciado” do mundo ocidental que os processos históricos possuem outros protagonistas, a exemplo de vírus, mosquitos, formigas e tantos mais. É importante esclarecer que para as culturas não ocidentais, como por exemplo os povos indígenas das terras baixas da América do Sul, os não humanos invariavelmente são sujeitos portadores de subjetividade e cultura (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), portanto, são agentes históricos. Para os povos indígenas não existem dúvidas de que animais, plantas, montanhas, rios, dentre outros, agem e interferem no cotidiano da vida humana, por isso, destacamos que a narrativa de uma história realizada apenas por humanos foi construída pelo mundo ocidental, o que tem sido descontruído nas últimas décadas.

Um segundo aspecto interessante apontado por Diamond (2008), McNeill (2010) e Cabral (2014b; 2014c), além da agentividade histórica de outros seres, são as transformações/perturbações causadas pelos humanos em determinados territórios.[4] Circunstâncias que impulsionaram as ações de animais, vírus ou fatores abióticos a reagirem, causando problemas políticos, sociais e econômicos para todos os envolvidos. Os processos de conquista exercidos pelos colonizadores ibéricos no continente americano é um dos exemplos mais interessantes de serem estudados. O que não significa que os povos indígenas não transformaram os ambientes onde estavam inseridos, pelo contrário, pesquisas de diversas áreas comprovam que a Mata Atlântica e a Amazônia se constituíram a partir do processo de coevolução entre indígenas e não humanos. Instigados pelas pesquisas dos autores citados e eventos encontrados na documentação colonial que manejamos, propomos analisar as relações dos não humanos com os jesuítas e Guarani nos espaços missionais da Província Jesuítica do Paraguay durante os séculos XVII e XVIII.

O projeto jesuítico em territórios da Província do Paraguay

Foi somente no ano de 1566 que a Companhia de Jesus recebeu a permissão para atuar nos territórios administrados pela Coroa Espanhola (KERN, 1982; MARTINS, 2006). Os membros da ordem desembarcam em territórios hispânicos com o objetivo de apaziguar os conflitos entre os povos Guarani e os colonizadores espanhóis. Os indígenas revoltaram-se contra os trabalhos forçados nas encomiendas, violências e diminuição territorial empreendidas desde o contato com os espanhóis (KERN, 1982; MARTINS, 2006; WILDE, 2009).

Contrários aos trabalhos nas encomiendas, os jesuítas foram uma alternativa a este modelo por meio do método da missão por redução, alcançando relativa calmaria entre indígenas e espanhóis (KERN, 1982; MARTINS, 2006). Os Guaranis – assim como outras etnias indígenas – preferiram estabelecer alianças com os jesuítas, como estratégia para evitar a violência e os trabalhos forçados impostos pelos espanhóis. Deste modo, submeteram-se aos ensinamentos cristãos e a inserção ao modelo de vida ibérico, mas jamais deixaram de viver conforme as suas lógicas, ressignificando práticas e ensinamentos transmitidos pelos jesuítas (KERN, 1982; MARTINS, 2006; FELIPPE, 2016).

Os territórios que formaram a Província Jesuítica do Paraguay eram ocupados há milhares de anos por distintos povos indígenas, com culturas e línguas das mais variadas, mas foram os Guarani que ocuparam em maior número as reduções jesuítico-indígenas. A Província do Paraguay era extensa:

A área ocupada pelas missões jesuíticas, junto aos Guaranis, expandiu-se, inicialmente, rumo ao Guaíra (no Paraná), Itatim (no Mato Grosso) e Tape (no Rio Grande do Sul), para retrair-se, posteriormente, ante os ataques paulistas, em direção às proximidades de Assunção e Buenos Aires (KERN, 1982, p.12).

Ao longo dos séculos XVII e XVIII foram formadas cerca de 48 reduções jesuítas, das quais trinta alcançaram maior estabilidade (MARTINS, 2006). Os Trinta Povos jesuíticos foram descritos na literatura missionária como as reduções Guarani, porém diversas pesquisas têm demonstrado que havia outros povos indígenas que integraram as missões, a exemplo dos Kaingang, Charrua e Minuano (BAPTISTA, 2009). Independente da etnia, a Companhia de Jesus precisou negociar o seu projeto de catequização com os indígenas, evidenciando o protagonismo destes povos nos processos históricos (SANTOS, 2016).

Além da cristianização dos povos nativos, o projeto das missões visava introduzir os indígenas às organizações socioeconômicas ibéricas, por meio de disciplina religiosa e produtividade (FELIPPE, 2016; SANTOS, 2016). Para isso, os padres inseriram práticas agrícolas, por meio de tecnologias ibéricas, a exemplo de arados de boi, machados e enxadas, porém houve resistência dos indígenas em aceitá-las (FELIPPE, 2016). Além da rejeição a estas tecnologias, de modo geral, os coletivos indígenas mantiveram suas organizações político-sociais nos espaços missionais, a exemplo da manutenção das lideranças e organização das aldeias (MARTINS, 2006; WILDE, 2009; BAPTISTA, 2015b; SANTOS, 2016).

Somados à ocupação de diferentes povos indígenas, os referidos territórios eram formados por uma variedade de ecossistemas terrestres e aquáticos, climas, fauna e flora que mudavam de acordo com a região para onde os padres se dirigiram. Embora as pesquisas historiográficas se debrucem menos do que o necessário sobre as questões ambientais, os registros documentais deixados pelos jesuítas demonstram que as características ambientais afetaram a vida cotidiana nos espaços missionais, como evidenciou Baptista (2004; 2015b). Conforme a documentação acessada, secas, temporais e “pragas” causaram diversos problemas para os jesuítas e indígenas missioneiros, pois impactaram as roças devastando os cultivos anuais e gerando períodos de fome (BAPTISTA, 2015b).

Segundo Baptista (2004; 2015b), nestes momentos de dificuldades os indígenas abandonaram os espaços missionais em busca de alimentos. Para tentar impedir que os indígenas deixassem as Missões e retornassem ao seu “antigo” modo de vida, os padres utilizaram as adversidades ambientais como forma de demonstrar os castigos de Deus aos pecados cometidos pelos índios (BAPTISTA, 2004). Por meio da “Pastoral do medo”, os jesuítas se utilizaram destes momentos para combater a poligamia, a nudez e as ausências nas missas, mas também para comprovar o auxílio de Deus e de santos, por meio de procissões e penitências (MARTINS, 2006; BAPTISTA, 2015b). Mas, Baptista (2015b) salienta que estes eventos também foram utilizados pelos indígenas para cobrar dos missionários estratégias para solucionar os problemas vivenciados. Por outro lado, as lideranças xamânicas também se utilizaram dos distúrbios ambientais para demonstrar a sua força cosmopolítica, estabelecendo alianças com os não humanos (BAPTISTA, 2015b).

Ao acessar os documentos e as pesquisas realizadas por Baptista (2004; 2015b), problematiza-se quais os impactos e transformações ambientais causados a partir da formação das reduções jesuíticas nestes territórios. Quais as ações empreendidas nos espaços missionais que geraram reações dos não humanos – gafanhotos, formigas e ratos – que habitavam estes ambientes?

A participação de gafanhotos, formigas e ratos no cotidiano dos espaços missionais

Os primeiros registros de infestações de ratos nas missões datam das primeiras décadas de atuação da Companhia nos territórios da América do Sul. Em carta de 1627, os padres descrevem a perda dos primeiros cultivos realizados nas roças da redução de Santa Maria del Iguaçu, localizada nas proximidades do Rio Paraná.

Siguiose a esto unos yelos terribles nunca vistos de muchos anos atras los quales asolaron y perdieron el mayz ya sembrado, y casi la mandioca y algodonales. Tras este siguiose una multitud de ratones q comian todo el mayz sembrado, y resembrado diversas vezes, y nosotros le repartimos una lismona de mayz y frisoles q los Padres del Corpus ayunandolo por darselo, porq viendo tan grande miseria y hambre q todos padecian aunq ni carne, ni pescado tuvimos por algun tiempo nos resolvimos de no comer frisoles (que eran nra porcion) mas q a medio dia y muy poquitos mesclados con ojas de mostaça y a la tarde mostaça sola cocida para poder remediar algo a la necessidad de los Pobres y muchos dellos venian cada dia por limosna de harina la qual se les dava aunq teniamos muy poco (MCA, VIANNA, 1970, p.66, grifos nossos).[5]

O fragmento narra as dificuldades enfrentadas para cultivar alimentos suficientes para subsidiar os indígenas que viviam na redução de Santa Maria del Iguaçu, em virtude dos problemas causados por geadas e ataques de ratos que devastaram as plantações de milho (Zea mays), mandioca (Manihot esculenta) e algodão (Gossypium). Vários indígenas deixaram o local e se negaram a retornar e argumentaram que em suas antigas aldeias não eram afetados por este tipo de adversidade.

Situação semelhante ocorreu na redução de Jesus Maria, localizada em territórios próximos ao Rio Jacuí, no Rio Grande do Sul. No relato datado de 1635-1636, o padre Taño descreveu que as famílias Guarani haviam deixado a redução após o avanço de ratos sobre suas roças:

[...] y en esta ocasion començaban a sembrar y los ratones començaron a haçer gran dano en los sembrados y ellos decian q por su orden se haçia con q se comensó la gente a huir del pueblo y a no haçer sus chacaras aunq las tenian bien roçadas y los baqueros y carpinteros se desapareçieron de suerte q quando yo llegué no avia caso nadie en el pueblo (MCA, CORTESÃO, 1969, p. 106-107, grifo nosso).

Diferentemente do caso que ocorrera na redução de Santa Maria del Iguaçu, em Jesus Maria o ataque dos ratos foi assumido como uma estratégia de lideranças xamânicas Guarani contrários aos ensinamentos e à presença dos jesuítas nos territórios do Tape. Antes da invasão dos roedores, as referidas lideranças xamânicas já haviam comunicado as famílias Guarani que enviariam onças e espíritos das montanhas, caso eles não abandonassem a redução. Para tentar conter o abandono total da redução, o padre Taño convocou os poucos caciques que permaneceram no local e exigiu que eles capturassem as lideranças xamânicas que assumiram ser mandantes do ataque. Seu objetivo era desmentir os “feiticeiros”.

[...] yo llegué no avia casi nadie en el pueblo. Con esto supe que aqui cerca estaba uno destos hechiceros y q hacia y decia todas estas cosas y que baptiçaba y predicaba y atemoriçaba a la jente diciendo que el avia muerto antiguamente y avia buelto a vivir [...] Traté a los caciques y capitanes un dia a la tarde del Remedio destas ballequerias y en las doctrinas y sermones començamos a deshacer sus mentiras, y les dixe q si ellos no ponian remedio o no se atrebian llamaria a la gente de las otras Reducciones (MCA, CORTESÃO, 1969, p.107).

Os dois eventos selecionados são semelhantes e evidenciam que as adversidades ambientais foram frequentes nos espaços missionais, gerando problemas aos indígenas e aos padres. Entretanto, é preciso estar atento a algumas narrativas realizadas pelos padres, como na situação que ocorreu na redução de Jesus Maria, na qual afirmam que as lideranças xamânicas eram “feiticeiros” e que era preciso desmenti-los. Ao longo da existência das reduções jesuítico-indígenas, durante os séculos XVII e XVIII, as lideranças xamânicas e os jesuítas travaram verdadeiras batalhas, com o objetivo de demonstrar aos demais indígenas quem detinha mais poder espiritual, pois tanto um quanto o outro condenavam as práticas e ensinamentos do outro, principalmente os padres ao condenar os cerimoniais, poligamia, nudez, práticas de curas e saberes xamânicos (BAPTISTA, 2004). Neste contexto, ambos utilizaram estratégias distintas para explicar e conter os problemas gerados.

Na perspectiva do multinaturalismo, ontologia praticada pelos povos indígenas da América do Sul, animais, plantas, espíritos, montanhas, rios, dentre outros, possuem subjetividade e organizações sociopolíticas, rituais e famílias, pois a cultura é universal, o que os diferencia é a natureza, isto é, os corpos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002; 2015). Sendo assim, todos pensam que são humanos, mas não enxergam o outro como tal, pois a perspectiva muda conforme o corpo. Viveiros de Castro (2002) exemplifica este perspectivismo com o exemplo da cerveja, uma bebida apreciada por todos, humanos e não humanos. Para a onça o sangue é cerveja, mas para o nosso ponto de vista humano, é sangue, quer dizer, o conceito cultural é o mesmo, uma bebida, o que diferencia é a perspectiva que parte da natureza corporal de cada sujeito envolvido. Neste mundo multinaturalista e perspectivista dos povos indígenas, o perigo está em ser predado pela perspectiva do outro, isto é, passar a enxergar o mundo a partir do ponto de vista dos mortos, da onça, da anta, dentre outros (VIVEIROS DE CASTRO, 2002; 2015).

Mas, os xamãs são sujeitos preparados para exercer esta diplomacia perspectivista, de modo que eles podem assumir o ponto de vista do outro sem serem predados por este mundo. Assim, as lideranças xamânicas transitam entre as perspectivas, conhecendo as possiblidades do mundo e estabelecendo relações de alianças ou mesmo conflitos com os não humanos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Este parece ser o caso que ocorreu na redução de Jesus Maria, onde lideranças xamânicas Guarani e ratões consolidaram uma relação de aliança cosmopolítica para combater a presença e ensinamentos exercidos pelos jesuítas. Esta guerra cosmopolítica não foi um caso isolado, pois de acordo com Baptista (2015b), nas primeiras décadas do século XVII houve diversas revoltas xamânicas nos territórios da América do Sul e ao mesmo tempo, as roças missionais foram alvos constantes de ataques de animais.

A aliança que se estabeleceu entre as lideranças xamânicas Guarani e os ratões demonstra algo importante para a História Ambiental e para a ontologia multicultural adotada pelo ocidente judaico-cristão. Os não humanos agem, fazem escolhas, são afetados, mas também afetam aos humanos e possuem subjetividade tanto quanto nós. Mas, para além disso, os dois eventos demonstram problemas ambientais que não foram os únicos enfrentados pelos missioneiros. Cristo (2018) considera que os “ratones” que atacaram algumas roças missionais podem ser ratões-do-banhado (Myocastor coypus), espécie que habita a região sul da América do Sul e tem como hábito se alimentar de ervas, raízes, tubérculos e plantas aquáticas. A roça, supostamente pertencente às Missões, para o Myocastor coypus não possui dono, portanto sua família também pode se alimentar daqueles cultivos, afinal eles também habitam aquele ambiente ecológico e social.

Mas, para além dos roedores houve outros enfrentamentos entre humanos e não humanos nas reduções. Os jesuítas também registraram ameaças ou avanços de “nuvens de gafanhotos” sobre as roças cultivadas pelos indígenas nas reduções. Uma destas situações ocorreu na redução de São Lourenço, situada na margem esquerda do Rio Uruguai:

[...] que se suelen perden muchas veces sus sementeras, por yelos, secas, y langosta; y ha no aver sido por el socorro de las bacas, con que, en semejantes ocasiones se suplia la falta de cosechas, ya estuvieron, casi acabadas estas Misiones; y solo por la vaqueria, mientras la ubo, se an mantenido, y sustentado; pero por haberse, casi acabado las Vaquerias del Mar, es cierto se acabaran ilegível (?) estas Misiones; y si no se han ya acabado es porque dos Pueblos, que tienen mayores, y mejores tierras socorren con bacas a los demas [...] (MCA – PUCRS, Rolo 22, Doc.27-637, grifos nossos).

Em outros momentos, os gafanhotos eram apenas ameaças que pairavam no horizonte, mas não atacaram as roças como no caso da redução de Santa Rosa, situada na margem direita do Rio Paraná.

Tres vezes amenazo la langosta a este Pueblo de Santa Rosa: una vez passando a su vista un exercito inumerable, sin hazerle daño alguno otra vez viniendo este exercito de la Parte del Norte; se assento a la vista de toda la chacareria deste Pueblo. Dio noticia al Pueblo, y al Padre cura de la Ruina que amenasaba por medio destos enemigos el índios Alcade de la estancia: que diligencias se pondrian en aquel tiempo para enemigos tan poderosos? El medio fue este: juntar los mas pobres del Pueblo, y darles de vestir; y disponer para mañana el Novenario a nuestra Señora del Rosario, q atente al Santissimo Sacramento: Para que acabada la Missa cantada, que se comenso temprano, previniendo la gracia de N. Santissima pudiesse ir toda la gente, como fue luego aguardar sus sembrados: cosa maravillosa fue lo que sucedio; acabada la Missa, segun ilegível (?) del tiempo, estando para levantarse este exercito de enemigos, ô por mejor decir, queriendo levantarse este exercito para destruir toda la chacareria del Pueblo de Santa Rosa, se levanto un leste mui fuerte y la arraso en partes mui distantes, que el índio Alcade , que estaba de contine la bolvio al Pueblo a contar este prodigioso caso: y toda la gente entro a la Iglesia a rendir las gracias a Nuestra Señora del Rosario (MCA – PUCRS, Rolo 30, Doc.36-949).

Os dois casos citados demonstram os estragos que os gafanhotos poderiam causar nas roças, acarretando em conflitos entre indígenas e padres. A fome gerava a necessidade de os indígenas deixarem as reduções para buscar alimentos em meio às matas, onde estavam situadas suas antigas roças e como já referenciado, muitos não retornavam para as reduções (BAPTISTA, 2015b). No caso da redução de São Lourenço, já havia as estâncias missioneiras, portanto, a carne do gado domesticado ajudou a amenizar os efeitos ocasionados pelos insetos e clima. Os padres também utilizavam estes eventos para demonstrar aos seus superiores que as missões precisavam da Vacaria do Mar para abastecer as suas estâncias, já que não cultivavam alimentos o suficiente para todo o ano (MCA – PUCRS, Rolo 22, Doc.27-637).

A situação vivenciada na redução de Santa Rosa ressalta a apropriação discursiva destes eventos por parte dos jesuítas, assim como o era por parte das lideranças indígenas. Como analisado por Baptista (2015b), os eventos adversos demonstram que os Guarani também cobraram dos padres a formulação de estratégias para solucionar os problemas vivenciados, pois eles se dedicavam diariamente ao trabalho nas plantações e não deveriam passar fome. No caso da redução de Santa Rosa, as missas, orações e procissões foram utilizadas pelos padres como estratégias para tentar vencer os gafanhotos. De acordo com Martins (2006), o uso dos santos como advogados e defensores das comunidades foi procedimento comum nas cidades coloniais e nas missões, recorrendo a eles nos momentos de crises, a exemplo dos problemas ambientais.

Deste modo, é possível afirmar que os não humanos foram influentes nas ações políticas empreendidas nas reduções jesuíticas, já que lideranças xamânicas, por meio das suas alianças cosmopolíticas, e os jesuítas, por meio do uso dos símbolos e cerimoniais cristãos, foram constantemente cobrados pelos indígenas missioneiros para resolver situações de fome, perdas de cultivos e epidemias, evidenciando que todos os sujeitos envolvidos nestes eventos foram agentes históricos, sejam eles indígenas, europeus ou não humanos. Mas, para além das ações dos não humanos, propõe-se que a formação das reduções jesuítico-indígenas gerou transformações ambientais que impulsionaram estes “ataques”, ou melhor, avanços.

Segundo Fernandes e Pádua (2018), relatos de “pragas de gafanhotos” em territórios da América do Sul, são comuns e cada vez mais frequentes, tornando-se uma adversidade enfrentada por agricultores do presente. Os territórios do sul do Brasil, Argentina, Uruguai e oeste do Paraguai são áreas ecológicas habitadas pela espécie de gafanhoto (Schisfocerca paranensis), portanto os membros desta espécie circulam por estes territórios, ignorando fronteiras políticas e valores econômicos das plantas cultivadas. O Schisfocerca paranensis costuma causar problemas para os produtores agrícolas do Rio da Prata, pois se alimentam de suas plantações, principalmente do milho (Zea mays) (FERNANDES; PÁDUA, 2018). O milho – um sujeito no multinaturalismo – foi um dos principais cultivos das missões jesuíticas, pois é uma espécie utilizada pelos Guarani para a produção de alimentos e bebidas, além de integrar estruturas mitológicas.

O Schisfocerca paranensis se alimenta de diversas espécies vegetais e possui características gregárias e migratórias, formando as denominadas “nuvens de gafanhotos” que se deslocam para outros territórios, o que gera estragos nas plantações humanas (FERNANDES, PÁDUA, 2018). Devido às características apresentadas pelos referidos autores, é provável que o Schisfocerca paranensis já estivesse se movimentando e se alimentando das roças coloniais dos séculos XVII e XVIII.

Os eventos apresentados até o momento levantam indagações, tais como: O que poderia ter desencadeado estes desequilíbrios ambientais que geraram avanços de insetos e roedores às roças missionais? As hipóteses para responder estas questões podem começar a ser formuladas a partir da apresentação de uma outra situação vivenciada nas missões: uma infestação de formigas.

No ano de 1697, o padre Antônio Sepp foi encaminhado para a redução de São Miguel, situada em territórios à margem esquerda do Rio Uruguai, atual Rio Grande do Sul. Seu dever era formar uma nova redução jesuítico-indígena, a que viria a ser denominada como São João Batista. Os motivos expostos para a divisão deviam-se ao grande número de pessoas que viviam em São Miguel, cerca de 6.000, o que, segundo os padres, era um dos impeditivos para que todos os Guarani missioneiros assistissem às missas, tendo em vista que a Igreja não comportava o aumento demográfico. Mas, além disso, as terras utilizadas pelos indígenas missioneiros para cultivar os alimentos e outras espécies de uso cotidiano não conseguiam produzir o necessário para sustentar o grande número de habitantes. Por isso, era necessário povoar a nova redução com parte das famílias Guarani de São Miguel.

Reunidos os índios principais, expus-lhes o pensamento do R. Pe. Provincial: a saber, que se devia dividir a povoação por causa do grande número de habitantes, os quais já nem a Igreja comportava; nem dois padres poderiam instruir convenientemente o povo na doutrina cristã, quanto menos um só; não podiam governá-los por mais tempo com facilidade; além disso, começavam a faltar nos arredores os campos para o cultivo, pois tornavam-se estéreis com o contínuo amanho de tão longos anos; mesmo a maior parte deles estava tomada pelas formigas que devastavam tudo, não eram bem adequados para a sementeira, etc. Emigrassem, portanto, de suas vivendas e barracas; se tivessem algumas pessoas caras, abandonassem-nas por amor a Deus, como por amor dele eu abandonara a pátria, meus pais, irmãos, irmãs e campos (SEPP, 1951, p.187, grifo nosso).

O problema com formigas não foi exclusivo das Missões em territórios administrados pela Coroa Espanhola. Segundo Cabral (2014c), os portugueses e missionários que viviam nos territórios do litoral brasileiro sofreram com os ataques de formigas em suas plantações, principalmente as plantas exóticas transportadas de outros continentes. Entretanto, Cabral (2014c) salienta que antes das “saúvas” se tornarem um “problema”, serviram como alimento para os jesuítas e portugueses, hábito alimentar apresentado pelos povos indígenas, pois são insetos que possuem proteínas.

Segundo Dean (2007), infestações de formigas no solo são característica de matas que estão em fase de crescimento ou devido ao desgaste da terra por longos períodos de uso, sem o tempo necessário de descanso e recuperação. As formigas cortadeiras, por exemplo, costumam ocupar solos pobres em nutrientes, pois são locais onde não encontram concorrente ao fungo cultivado por elas, como patógenos ou outros organismos (CABRAL, 2014c).

No fragmento transcrito anteriormente, o padre Antônio Sepp (1951) justificou aos Guarani de São Miguel que as terras estavam estéreis, por causa dos longos anos de ocupação, elementos que demonstram que o solo da redução de São Miguel já estava infértil, com baixa densidade de nutrientes, tornando-se um atrativo para estes insetos. Contudo, para além da infertilidade causada pelo uso inapropriado, os avanços dos ratões, gafanhotos e formigas também demonstram outros aspectos importantes para serem analisados.

No período precedente aos avanços dos ibéricos sobre os territórios da América, havia milhares de povos indígenas e milhões de pessoas vivendo no continente. Alguns destes grupos, como os Guarani, praticavam o cultivo e o manejo de espécies vegetais, como o milho (Zea mays), a mandioca (Manihot esculenta), batatas (Solanum tuberosum), feijão (Phaseolus vulgaris), entre outras dezenas de plantas. E, de acordo com Pereira et al. (2016), as aldeias Guarani permaneciam décadas no mesmo local, períodos que poderiam chegar aos cem anos, o que nos remete a São Miguel, pois o desgaste do solo não poderia ser consequência do tempo de uso, pois a referida redução havia se constituído a menos de vinte anos[6]. Não desconsideramos que o local era habitado por famílias Guarani antes da formação da redução, mas é possível que a explicação para este desgaste seja outro fator para além do tempo.

Podem ser elencadas algumas hipóteses que explicam os fatos ocorridos, como por exemplo, o crescimento demográfico, a inserção de novas práticas de cultivos e a introdução de espécies exóticas. O método da missão por redução gerou transformações no modo de organização dos grupos Guarani que as integraram. Antes do contato com os jesuítas, os Guarani viviam em aldeias (tekohá) formadas por famílias extensas e nucleares, lideradas pelos chefes familiares (SOUZA, 2002). Cada uma destas famílias cultivava e contribuía nas roças particulares e comunitária que pertencia a todo o tekohá. Não havia a necessidade de produzir excedentes visando o armazenamento de comida e nem mesmo comercializar, pois a lógica que permeava estas relações era de reciprocidade com base no parentesco. Além disso, as roças em meio às matas eram o “armazém” de alimentos dos Guarani.

Porém, nas missões, mesmo com continuidade na distribuição de terras para o cultivo de roças familiares (KERN, 1982; MARTINS, 2006), houve um significativo aumento demográfico, uma vez que as reduções reuniram diversos tekohá em um mesmo local. Alguns espaços missionais atingiram números demográficos bastante elevados, a exemplo de São Miguel, que chegou a registrar cerca de 6.000 indígenas.[7] Nestes espaços havia a necessidade de cultivar alimentos para todos os integrantes dos pueblos, além de espécies utilizadas para outros fins; o algodão plantado servia para confeccionar roupas, a erva e o tabaco eram a “moeda” de pagamento dos tributos[8] à Coroa Espanhola.

Os jesuítas tinham a preocupação que as roças missionais produzissem alimentos suficientes para garantir a subsistência anual da população missioneira, mas também era preciso obter excedentes para o uso ao longo do ano (FELIPPE, 2016). Para atingir tais intentos, os padres insistiam que os indígenas utilizassem tecnologias ibéricas, como o arado de boi para preparar o solo, o que foi constantemente rechaçado por muitos grupos (BAPTISTA 2015b; FELIPPE, 2016). De acordo com Sepp (1951), mesmo com a falta de ferro, além dos arados, os padres distribuíram enxadas e machados para as famílias prepararem as suas roças.

Os métodos empregados pelos jesuítas eram diferentes daqueles utilizados milenarmente pelos povos indígenas. Os Guarani, por exemplo, fundamentavam-se no manejo agroflorestal que consistia em introduzir plantas de seus interesses em meio às matas, contribuindo para a manutenção da biodiversidade (PEREIRA et al., 2016). Prática que não era aprovada pelos padres, pois conforme descrito por Sepp (1951), ao preparar o terreno para semear, limpava-se tudo, inclusive, derrubando as árvores que eram utilizadas para as construções de casas e objetos.

Se a prática de plantar em meio as clareiras das matas não obteve grande aprovação dos padres nas missões, o uso do fogo para fertilizar o solo, técnica realizada pelos indígenas, foi usufruída, resultando em grande sucesso.

Isso desenvolve e fertiliza o solo a ponto de dispensar a charrua; o único trabalho necessário é pôr fogo. Depois de cortadas e secas as árvores e macegas, que no Paraguai são muito densas, os índios lhes ateiam fogo e reduzem a cinza, na qual depois espalham várias qualidades de sementes. Isto também parecerá incrível ao europeu, mas bem confirmam esta verdade os meus celeiros atulhados de trigo índico ou turco (SEPP, 1951, p.194).

O fogo controlado é empregado como método de preparo do solo há milhares de anos e por diferentes culturas, com o objetivo de que os nutrientes do solo se mineralizem com maior rapidez, fertilizando a terra e possibilitando boas colheitas (LEONEL, 2000; CABRAL 2014a). Como narrado por Sepp (1951), a prática realizada pelos indígenas consistia em retirar a vegetação rasteira, formando uma camada de folhas secas e troncos velhos, nos quais seria ateado o fogo. Entretanto, o uso do fogo poderia causar problemas se utilizado diversas vezes em um curto espaço de tempo na mesma terra. Os indígenas praticavam o pousio e a rotatividade da terra, além de não derrubarem todas as árvores do local, estratégias que permitiam que o solo se recuperasse e não se tornassem infértil (LEONEL, 2000).

Sendo assim, é possível que o uso excessivo do fogo como método fertilizante, somado à necessidade de produzir alimentos em maior quantidade e à falta de rotatividade e pousio, tenham contribuído para a infertilidade, assim como para a ocupação das formigas nas terras de São Miguel, situação que influenciou na divisão da população e construção da redução de São João Batista.

Além do aumento demográfico e da aplicação de novos métodos ou adaptações de práticas indígenas para o contexto missioneiro, a introdução de espécies exóticas também pode ter contribuído para que gafanhotos, ratões e formigas causassem estragos. Sabe-se que os cultivos das roças missionais foram na grande maioria, espécies nativas de preferência dos indígenas (FELIPPE, 2016). Porém, os padres introduziram plantas de suas escolhas, como trigo (Triticum), uvas (Vitis vinífera L.), cevada (Hordeum vulgare), cana-de-açúcar (Saccharum officinarum), hortaliças, saladas e árvores frutíferas (SERRES, 2018). A troca de espécies entre os povos e culturas faz parte da história do planeta, contudo não são todas as plantas ou animais não humanos que se adaptam a diferentes climas ou possuem mecanismos de defesas para determinados predadores (CABRAL, 2014c). As características ecológicas de cada espécie, sejam elas nativas ou exóticas, a introdução de novas tecnologias e métodos de cultivos, somadas à necessidade produção gerada pelo novo contexto político-econômico e social das reduções, tornaram as ações destes insetos e roedores verdadeiras catástrofes para os indígenas e padres. Quer dizer, houve impactos coloniais significativos nos espaços missionais (BAPTISTA, 2015a; BAPTISTA, 2015b).

É importante ressaltar que não estamos deslizando no anacronismo e cobrando atitudes ecológicas dos jesuítas que atuaram ao longo dos séculos XVII e XVIII, não é disso que se trata. Os argumentos arrolados neste estudo visam demonstrar que a chegada dos ibéricos e a introdução de práticas ibéricas de agricultura podem ter gerado distúrbios ambientais que causaram problemas sociais, como fome e epidemias, e dificuldades econômicas e políticas em determinados períodos e ambientes. No caso das missões jesuíticas, problemas ambientais são constantemente relatados pelos padres, resultando no abandono destes espaços por parte dos indígenas.[9] Não restam dúvidas de que são dois sistemas de cultivo e manejo distintos e que se fundamentam em ontologias diferentes.

Por fim, é preciso considerar que a economia missioneira era dependente da agricultura e das estâncias para alimentar, vestir e pagar tributos ao Rei (SERRES, 2018). Os indígenas, pelo contrário, praticavam uma economia diversificada, cultivavam, coletavam, caçavam e pescavam, portanto, mantinham uma relação de reciprocidade com os sujeitos não humanos e não de produção.[10] A dependência de práticas pouco diversificadas causa prejuízos para as sociedades, pois quando ocorrem ações ou reações dos não humanos, todos os âmbitos da sociedade são afetados. Como demonstrado por McNeill (2010), os coletivos humanos e não humanos participam dos processos históricos em conjunto, cada um influencia ao outro, causando ações e reações.

Considerações finais

O presente artigo teve como premissa demonstrar como os não humanos foram participantes das vivências missioneiras, por vezes causando problemas e em outros momentos tornando-se solução. As situações analisadas também evidenciam que as demais espécies integram os processos históricos nos quais são atuantes, pois afetam as populações humanas, causando apropriações discursivas, adaptações às adversidades, formulação de estratégias para enfrentar determinadas situações provocadas por estes seres vivos, como proposto por Baptista (2015b). A infestação de formigas nas terras de São Miguel foi um dos fatores relevantes para a divisão da população missioneira que a habitava. Os ataques de gafanhotos e ratões às roças missionais também fundamentaram a busca dos padres por estratégias de combate no campo espiritual, como procissões, missas e orações (MARTINS, 2006; BAPTISTA, 2015b). Por outro lado, estes ataques levaram os indígenas a cobrarem soluções por parte dos jesuítas, assim como fundamentaram alianças cosmopolíticas das lideranças xamânicas para enfrentá-los (BAPTISTA, 2015b).

Além disso, é preciso considerar que as transformações antrópicas geram perturbações no habitat das demais espécies, obrigando-as a se adaptarem às mudanças, o que pode gerar “problemas” sociais, econômicos e políticos para as sociedades humanas. A questão é que a maior parte dos distúrbios são ocasionados pelos humanos.[11] No caso das missões jesuíticas, as cobranças realizadas pelos indígenas aos padres, afirmando que no tempo de seus antepassados não ocorriam ataques de animais às suas roças, é um indicativo de que o método de cultivos e organização dos espaços missionais impactou no habitat destas espécies e também dos indígenas.

Por fim, assim como os padres precisaram negociar suas relações e o projeto de catequização com os povos indígenas que, por vezes estabeleciam alianças ou conflitos; também precisaram negociar o seu projeto colonizador com o mundo não humano.[12] As espécies vegetais e animais trazidas pelos ibéricos não se adaptaram a qualquer ambiente, seja por rejeição indígena ou do próprio ambiente, como o clima e espécies predadoras. Assim, como os povos indígenas lutaram e causaram dificuldades ao sistema colonial, a biodiversidade nativa também causou empecilhos, foi o caso dos gafanhotos (Schisfocerca paranensis), dos ratões (Myocastor coypus) e das formigas.

Se os germes carregados pelos ibéricos e os animais domésticos para o continente americano foram determinantes para a rápida expansão de espanhóis e portugueses (DIAMOND, 2008), as florestas, animais, plantas e climas tropical e subtropical, também foram atuantes, dificultando os avanços internos. O caso dos mosquitos que contribuíram nas revoltas de independência dos caribenhos em relação à Coroa Espanhola é ilustrativo da influência dos não humanos nos processos históricos (McNEILL, 2010). De acordo com Cabral (2014a), ao contrário do que por muito tempo se difundiu, os territórios da América não foram fronteiras em aberto para a expansão europeia; pelo contrário, os habitantes não humanos e humanos causaram dificuldades aos colonizadores. Na perspectiva ecológica, os territórios onde estavam situadas as missões jesuíticas eram áreas de ocupação dos gafanhotos, ratões do banhado e das formigas, portanto, eles não eram invasores. Parafraseando John McNeill (2010, p.6): “People made their own history but they did not make it as they pleased because ecology would not let them”.[13] Pois, a história é formada por processos de coevolução entre humanos e demais espécies.

Agradecimentos

Aos projetos de pesquisa “Identidades étnicas e desdobramentos socioambientais em espaços de bacias hidrográficas” e “Sociedade e Cultura: História Ambiental, Etno-história e Cultura Material” da Universidade do Vale do Taquari – Univates. A presente pesquisa foi realizada com bolsa financiamento do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Educação Superior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROSUC/CAPES), Código de Financiamento 001.

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Recebido em 30/11/2021.

Aceito em 22/12/2021.

 

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[1] Doutorado em andamento em Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade do Vale do Taquari – Univates. Mestrado em Ambiente e Desenvolvimento e Graduação em Licenciatura em História pela Universidade do Vale do Taquari – Univates. Brasil. E-mail: tuanidecristo@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-0018-9101

[2] Doutorado em História pela Universidade do Rio do Sinos – UNISINOS. Docente na Universidade do Vale do Taquari – Univates. Brasil. E-mail: lflaroque@univates.br | https://orcid.org/0000-0003-1861-4679

[3] Não humanos refere-se aos fatores abióticos e bióticos.

[4] Como, por exemplo, a formação de roças de monocultura, desflorestamentos, erosão de solos, entre outros. John McNeill descreve como a formação das plantations de cana-de-açúcar no Caribe foram verdadeiros “paraísos” para a fêmea do Aedes aegypti, transmissora da febre amarela e para as espécies de mosquitos Anopheles, transmissores da malária.

[5] Os trechos retirados da documentação e transcritos de forma direta ao longo do texto permaneceram com a grafia original.

[6] É importante ressaltar que a redução de São Miguel referida neste artigo é a integrante dos Sete Povos das Missões, ou seja, da segunda fase de atuação da Companhia de Jesus em territórios do Rio Grande do Sul. Já que houve uma primeira fase que perdurou entre 1620 a 1640, quando também existiu uma redução denominada de São Miguel; a segunda fase ocorreu entre 1682 e 1750.

[7] Estes números variam bastante, pois os indígenas deixavam as reduções e retornavam de acordo com os seus interesses e também conforme as necessidades, pois havia guerras, epidemias e claro, a fome que levava aos grupos a deixarem ou integrarem as reduções.

[8] A partir do ano de 1658 ficou estabelecido que os indígenas das missões pagariam tributos à Coroa em prata. Ao longo dos anos seguintes os padres tentaram por diversas vezes convencer as autoridades e a Coroa que o pagamento não era viável (FRANZEN, FLECK, MARTINS, 2008).

[9] Conforme Baptista (2015b), antes de frequentarem as missões, é possível que os indígenas jamais tivessem passado por situações de fome, pois caçavam, pescavam, coletavam e cultivavam em meio as clareiras. O autor acrescenta ainda que com o passar do tempo, o impacto ambiental gerado pelas missões também pôde ser sentido a partir da falta de madeiras para a construção de casas, barcos e ferramentas (BAPTISTA, 2015a).

[10] Felippe (2016) demonstra que os indígenas não costumavam produzir além daquilo que conseguiam consumir.

[11] Todas as espécies geram transformações, mas alguns grupos humanos – por interesses políticos e econômicos – geram mudanças tão significativas que causam impactos ambientais que atingem todas as espécies.

[12] Diogo de Carvalho Cabral (2014a) demonstrou como os portugueses precisaram negociar a colonização com a Mata Atlântica no período colonial.

[13] “As pessoas fizeram sua própria história, mas não como queriam porque a ecologia não os deixava” (tradução nossa).