Interfaces entre História Ambiental e Agroecologia para o Ensino de História no Antropoceno

Interfaces between Environmental History and Agroecology for Teaching History in the Anthropocene

 

                                                                                           Alfredo Ricardo Silva Lopes[1]

 

 


Resumo

O presente trabalho estabelece articulações entre, inicialmente, o papel da História Ambiental no Ensino de História e, posteriormente, o uso dos pressupostos agroecológicos como ferramenta para este fim. No primeiro momento, discute-se as demandas para um Ensino de História na era do Antropoceno, depois, elenca-se a necessária articulação dos fundamentos conceituais da História Ambiental com o Ensino de História, por fim destacamos a importância dos princípios da Agroecologia para estruturar uma abordagem sistêmica no Ensino de História através da teoria da História. O trabalho tem como objetivo conjugar no Ensino de História as contribuições que a História Ambiental trouxe para o campo da História, desafiando o olhar dos professores e professoras de História para a agência não humana, para compreender problemas socioambientais contemporâneos, para as consequências locais das dinâmicas de apropriação dos ditos “recursos naturais” e para os limites e arranjos produtivos de cada ambiente. Agroecologia é usada como ferramenta pois ao analisar os complexos processos econômicos e agrossistêmicos, em resposta a atual crise ambiental.

Palavras-chave: Ensino de História; História Ambiental; Agroecologia.

Abstract

The present work makes connections between, initially, the role of Environmental History in History Teaching and, later, the use of agroecological assumptions as a tool for this purpose. At first, the demands for History Teaching in the Anthropocene era are discussed, then the necessary articulation of the conceptual foundations of Environmental History with History Teaching is listed. Finally, it highlights the importance of the principles of Agroecology to structure a systemic approach in History Teaching through History Theory. The work aims to combine in the Teaching of History the contributions that Environmental History has brought to the field of History, challenging the view of History teachers towards non-human agency, to understand contemporary socio-environmental problems, to the local consequences of dynamics of appropriation of the so-called “natural resources” and of the limits and productive arrangements of each environment. Agroecology is used as a tool as it analyzes the complex economic and agrosystemic processes in response to the current environmental crisis.

Keywords: Teaching History; Environmental History; Agroecology.


 

 

 

 

 

Introdução

 

Cada autor e autora normalmente se dirige a um público específico quando escreve. O que se imaginaria de um artigo que articule História Ambiental, Agroecologia e Ensino de História é que se voltasse aos membros dessas áreas. Isso acontece nesse artigo, mas o leitor e a leitora precisam ser advertidos: esse e trabalho surgiu não pelo esforço do autor de escrever algo originalmente dirigido ao acadêmico, mas para encontrar esperança para a prática docente e a vida.

 

Antropoceno e Ensino de História

No planeta de 4,5 bilhões de anos, uma das 1,2 milhões de espécies de seres vivos conseguiu a proeza de modificar as dinâmicas biogeofísicas em todo o globo. Isso aconteceu graças a capacidade de apropriação e transformação do que os seres humanos chamam de recursos naturais. Nos últimos três séculos o Homo sapiens organizou regimes automatizados de conversão energética, inicialmente de biomassa, depois combustíveis fósseis, até energia nuclear e solar para acelerar a produção de bens de consumo. O que corrobora com a teoria de que os seres humanos estariam produzindo uma nova era geológica, o Antropoceno (CRUTZEN; STEFFEN, 2003).

A Revolução Industrial marca, então, uma transição entre um Antigo Regime Biológico, baseado no fluxo de energia solar armazenado na biomassa, para um fluxo de energia baseado em outras reações químicas, em especial, dos combustíveis fósseis (MARKS, 2012, p. 61). Porém, durante o período do início da modernidade, uma série de elementos fez com que o Antigo Regime Biológico entrasse em questionamento: o aumento demográfico na Europa; a introdução, disseminação e mercantilização de plantas, animais e fungos do Novo Mundo; e o próprio imperialismo em sua dimensão global.

Como estrutura conceitual, o Antropoceno oferece uma base para compreender a sustentabilidade da presença humana. Ao relacionar a efêmera experiência dos seres humanos na Terra à idade do planeta, pode-se perceber a dimensão das transformações produzidas e induzidas pela espécie humana. Desta forma, a separação entre natural e humano cai por terra, quando se compreende a presença de sua ação em todo o globo, assim, os Homo sapiens não seriam mais "invasores", mas sim participantes na formação do ambiente natural (LEINFELDER, 2013).

A educação no Antropoceno congrega uma série de desafios, os aspectos temporais são particularmente difíceis. A compreensão do tempo toma diferentes contornos, que vão cada vez para mais longe da crença no progresso como acumulativo, benéfico e civilizacional. A Grande Aceleração[2] produzida a partir da década de 1950 oportuniza a comparação entre os processos na e da esfera natural com as acelerações sociais (LEINFELDER, 2013).

O modelo produtivo de alimentos que tomou conta do mundo capitalista depois da Segunda Guerra Mundial, pautado na mecanização agrícola e no uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes, resultou em um aumento de produtividade nunca visto na história da humanidade (MAZOYER; ROUDART, 2010). O processo denominado de modernização agrícola consistiu no uso intenso de tecnologia para aumentar a produção de alimentos de uma forma geral. Contudo, a mercantilização da agricultura e a produção voltada para as demandas do mercado e não da subsistência local levou a produção de alimentos capitalista a não considerar a degradação socioambiental produzida por esse modelo (MARQUES, 2016).

No final do século XX, fruto das discussões ambientais e do ativismo dos movimentos sociais, novas estratégias produtivas como a agroecologia surgem como resposta às demandas contemporâneas. Dessa forma, a preocupação central desse processo está em respeitar os limites produtivos dos ecossistemas e diminuir vulnerabilidades sociais. Miguel Altiere (2009) defende um modelo de agroecologia que lide com princípios ecológicos simples, tratando o ecossistema como sistema produtivo, sem deixar de preservar os recursos naturais, utilizando práticas que sejam culturalmente sensíveis, socialmente justas e economicamente viáveis.

Ao partir da perspectiva de que o Ensino de História deve ter por objetivo orientar a vida prática, Jörn Rüsen defende uma relação mais orgânica e constante entre conhecimento histórico e o Ensino de História institucionalizado. Em que, a vida cotidiana dos seres humanos deve orientar a produção do conhecimento histórico e as estratégias adotadas para fazer com que esse conhecimento chegue até as pessoas (RÜSEN, 2011). Para o teórico alemão, é importante que o ensino estabeleça uma conexão dinâmica entre experiência temporal e os conhecimentos adquiridos em sala de aula. Em tal perspectiva, a História como ciência não está deslocada de seu tempo, e olha para o passado com os olhos do presente, a fim de oferecer orientações ao futuro (RÜSEN, 2011).

Nesse caminho, o Ensino de História precisa, cada vez mais, comprometer-se com o alargamento da compreensão sobre a historicidade das relações humanas e com o resto da natureza. A expressão “com o resto da natureza” faz-se necessária para salientar que os seres humanos compõem o mundo natural, e a dualidade natureza/cultura é fruto de uma construção produzida a partir da Era Moderna que privilegia a humanidade e considera a natureza como um “recurso” a ser utilizado para o desenvolvimento humano.

O lugar e a função do conhecimento histórico no cotidiano escolar são discutidos por Selva Guimarães (2016) no intuito de problematizar a formação de cidadãos nas sociedades democráticas. A complexidade da noção de cidadania é debatida pela pesquisadora do Ensino de História, e Guimarães conscientemente não produz uma definição exata do que seria, isso ocorre pelas constantes transformações do conceito, pois à medida que novas mudanças sociais acontecem, a noção vai se transformando. O que permanece constante é a necessidade de discutir em sala de aula os temas candentes da vida política da sociedade para a produção de sujeitos críticos. Nesse caminho, a noção de consciência histórica proposta por Jörn Rüsen se mostra útil como forma de pensar as relações dos indivíduos com o tempo, a partir da proposta de que tal consciência enraíza-se nas mais diversas formas de historicidade produzidas pela vida humana (RÜSEN, 2001, p. 78).

O Ensino de História que busca dar conta das demandas do presente precisa se reconstruir constantemente. Peter Lee defende que para produção de um aprendizado substantivo e o alargamento da consciência histórica é necessário o ensino de Estruturas Históricas Utilizáveis (LEE, 2006). A preocupação de Lee é com o questionamento sobre os “padrões de mudança na subsistência humana e na organização política e social, para que os estudantes construam e apontem o significado da mudança em termos estruturais” (LEE, 2006, p. 47).

Segundo Guimarães (2012), o ensino de uma História Local pode servir para contrapor um modelo de difusão da História Nacional institucionalizada, marcada por preconceitos, estereótipos e mitos políticos conservadores. Já Schmidt e Cainelli (2009) alertam para a constante negligência e até descaso que a maioria dos professores(as) e historiadores(as) têm pelos conteúdos da História Local. Nesse caminho, o estudo da História Local “gera atitudes investigativas, criadas com base no cotidiano do aluno, além de ajudá-lo a refletir acerca do sentido da realidade social” (SCHMIDT; CAINELLI, 2009, p.139).

O artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação esclarece a diretriz curricular para todo o território nacional: “Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter base nacional comum, a ser complementada em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura da economia e da clientela” (BRASIL, 1996).

O uso da História Local[3] como estratégia para analisar as representações sobre a natureza, segundo Mendes e Rossi, permite problematizar passado e presente na discussão sobre os impactos ambientais em um determinado território, evidenciando as relações dos seres humanos com o ambiente (2011). Neste caminho, a História Ambiental surge como instrumento para explorar a História Local, pois possui a premissa de que a existência humana ocorreu por meio de interações com o ambiente.

O historiador ambiental Donald Worster (1991) explica que as sociedades humanas produzem alterações ambientais significativas e, por isso, defende que o sistema agroecológico pode representar um dos casos em que a sociedade humana consegue reestruturar as relações dos ecossistemas naturais onde estão inseridas. Desta forma, enfatiza a necessidade de uma pesquisa histórica que considere as condições e limites dos ecossistemas na interpretação do passado humano.

Nesse sentido, a História Ambiental consegue tornar a disciplina histórica mais inclusiva, pois como aponta Worster, “a história ambiental rejeita a premissa convencional de que a experiência humana se desenvolveu sem restrições naturais, de que os humanos são uma espécie distinta ‘supernatural’, de que as consequências ecológicas de seus feitos passados podem ser ignoradas” (WORSTER, 1991, p. 199).

José Augusto Pádua (2010, p. 83) enfatiza que até o século XVIII as indagações humanas sobre o mundo natural giravam em torno de como a natureza influencia a história humana. Com o advento da Revolução Industrial e diversificação das formas de apropriação dos recursos naturais, as indagações começaram a girar em outro sentido, pautadas em sua maioria na racionalidade de uso indiscriminado dos recursos naturais. O juízo de que a ação humana poderia interferir no meio natural e até causar desastres surgiu no final do século XIX, mas só se disseminou mundialmente no início da década de 1970 (PÁDUA, 2010, p. 86). A História Ambiental busca repensar o ser humano dentro do quadro mais amplo da história do planeta, “o grande desafio teórico, no contexto da contemporaneidade, é pensar o ser humano na totalidade tensa e complexa de suas dimensões biológica e sociocultural” (PÁDUA, 2010, p. 91-92). Neste caminho, a História Ambiental procura formas menos dualistas de perceber e relacionar natureza e cultura, com o intuito de reconhecer a historicidade dos sistemas naturais.

Marcos Gerhardt e Eunice Sueli Nodari destacam uma série de aproximações entre História Ambiental, Ensino de História e Educação Ambiental (2010). À medida que as questões ambientais vão ganhando as escolas e as universidades as professoras e professores foram convidados a ampliar seu envolvimento com os temas socioambientais, em especial com áreas de conhecimento como a Biologia e Geografia (GERHARDT; NODARI, 2010, p. 57).

Nesse caminho, a forma mais usual de integrar os estudantes às questões socioambientais se dá pela análise da História Local, que vai além das fronteiras do político e vincula a vida dos seres humanos ao território em que habitam. O uso da História Ambiental no Ensino de História também permite rever preconceitos arraigados na forma de perceber os seres humanos e o ambiente. “Um dos exemplos clássicos é o da agricultura indígena baseada na coivara, com rotação de terras e pousio para recuperar a fertilidade da terra, vista como irracional e exemplo de indolência pelos europeus” (GERHARDT; NODARI, 2010, p. 61).

Contudo, como apontam Ely Bergo de Carvalho e Jameson de Souza Costa, o Ensino de História tem sido resistente a adoção da questão ambiental, apesar da lei 9.394/1996 estabelecer o Meio Ambiente como um dos temas transversais na Educação Básica (CARVALHO; COSTA, 2016). Para os historiadores, a resistência se estrutura na forma como a sociedade ocidental-globalizada disjuntou o social e o natural. Assim, no senso comum acadêmico, “a História, enquanto disciplina que aborda a política-economia-sociedade do passado, estaria isenta de falar sobre o meio ambiente” (CARVALHO; COSTA, 2016, p.67). Desta forma, o caminho para uma compreensão verdadeiramente complexa das questões ambientais seria a integração entre as esferas social e natural (CARVALHO; COSTA, 2016, p.68).

Maria Auxiliadora Schmidt e Marlene Cainelli defendem que uma das finalidades do Ensino de História está na formação da consciência história dos educandos (SCHMIDT; CAINELLI, 2009, p. 69). Para as pesquisadoras do Ensino de História, a formação da consciência histórica é realizada na superação de formas tradicionais e exemplares de compreensão da passagem do tempo, esse tempo que é, para as autoras, uma categoria mental, que não é natural, nem espontânea, nem universal (SCHMIDT; CAINELLI, 2009).

 

Teoria da História e Agroecologia

 

Reinhart Koselleck oferece uma compreensão diferenciada das formas de compreender o tempo. Para o historiador, “todas as histórias foram construídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas que atuam ou que sofrem” (KOSELLECK, 2006, p. 306). A posição fundante da experiência e da expectativa para compreensão são basilares para percepção humana do tempo, entretanto a dimensão temporal que compõe as narrativas humanas tem também uma grandeza material.

A relação entre as formas de perceber e compreender o tempo foi discutida pelo historiador em Estratos do Tempo: estudos sobre História. Na obra, a metáfora geológica é usada para dar conta das diversas percepções e durações que atuam simultaneamente sobre entendimento do tempo (KOSELLECK, 2014). Tal metáfora serve para exemplificar os pressupostos básicos de Koselleck. Nas palavras do historiador, “uma das teses que constituem meu ponto partida é a de que os tempos históricos podem ser distinguidos claramente dos tempos naturais, embora ambos se influenciem reciprocamente” (KOSELLECK, 2014, p. 10).

Desta forma, livre das interpretações produzidas sobre os ritmos e passagem do tempo, há uma materialidade temporal ou tempo astronômico que transcorre independente da percepção dos seres humanos. Sobre a definição dos “estratos do tempo”:

Situo-me no campo das metáforas: a expressão “estratos do tempo” remete a formações geológicas que remontam a tempos e profundidades diferentes, que se transformam e se diferenciam umas das outras em velocidades distintas no decurso da chamada história geológica. (...) sua transposição para a história humana, política ou social permite separa analiticamente diversos planos temporais em que as pessoas se movimentam, os acontecimentos se desenrolam e os pressupostos de duração mais longa são investigados (KOSELLECK, 2014, p. 19).

 

A contribuição de Koselleck para a percepção dos diferentes dos estratos do tempo possibilita uma compreensão dos diferentes ritmos e temporalidades, mas não resolve o problema da integração entre o tempo da natureza e o tempo humano. É nesse ponto que o conceito de Regime de historicidade de François Hartog pode ser útil para construir uma nova percepção e compreensão do tempo que dê conta das demandas criadas pela crise ambiental.

            Na abordagem de François Hartog, os regimes de historicidade são as compreensões de diferentes ordens e formas de percepção do tempo. Em Regimes de Historicidade, demonstra que tais maneiras de conceber o tempo variam em lugares e épocas. Apesar de o historiador produzir esse conceito para endossar a ideia de um presentismo fortemente influenciado pela aceleração do tempo, o conceito do regime de historicidade pode ser utilizado de uma forma mais ampla para engrenar concepções de passado, presente e futuro (HARTOG, 2015, p. 11).

            Como destaca Temístocles Cesar:

O regime de historicidade é um artefato tipo-ideal, no molde weberiano, que valida sua capacidade heurística ao interrogar as modalidades de articulação das categorias do passado, do presente e do futuro, formulação que, embora não tributária da semântica histórica de Koselleck, estabelece com ela uma importante interlocução.

Um dos pontos de contato entre ambos é a convicção de que as representações do tempo, linguisticamente estáveis ou instáveis, não são apenas expressões que indicam um estado de fato, mas um aporte fundamental à constituição da sua própria percepção (CESAR, 2014, p. 15-16).

 

Para conceituar o atual regime de historicidade que o mundo ocidental globalizado compartilha, François Hartog avalia também as questões ambientais. A noção de progresso produzida no Iluminismo corrobora com a ideia de uma aceleração acumulativa, benéfica e civilizacional foi solapada, pela violenta forma de apropriação de recursos naturais, produtora de degradações ambientais capazes de colocar em risco a vida humana (HARTOG, 2015, p. 239).

A percepção do tempo produzida no Iluminismo, de um tempo progressivo e benéfico que conforme passava alargava o conhecimento da humanidade sobre si mesma e sobre o planeta foi solapada por um cronômetro regressivo, que vai caminhando para o seu fim, enquanto os recursos naturais vão sendo consumidos. Nas palavras de Hartog: “Esse futuro não é mais um horizonte luminoso ao qual caminhamos, mas uma linha de sombra que colocamos em movimento em nossa direção, enquanto parecemos patinar no campo do presente e ruminar um passado que não passa” (HARTOG, 2015, p. 245).

            Em conclusão, para Hartog o atual regime de historicidade, definido como presentismo, é uma experiência de presente contínuo, em que a tirania do instante define a vida, pois a expectativa no futuro não oferece garantias e as bases do passado arcaico não concedem segurança aos indivíduos. Assim, o presentismo é esse momento de crise no tempo, em que passado e futuro não servem mais como referenciais para a vida.

Os historiadores Alfredo Ricardo Silva Lopes e Mario Martins Viana Júnior defendem que com a rápida aceitação do conceito do Antropoceno o mundo natural marcou sua reentrada na forma com que os humanos representam o tempo. Para os autores,

As dinâmicas sociais da apropriação e partilha dos recursos naturais produziu um novo regime de historicidade em que o tempo é percebido como regressivo e o objeto usado para representar o transcorrer do tempo, é o planeta terra transformado e degradado pelo Homo sapiens (LOPES; VIANA JUNIOR, 2020, p. 22).

 

Assim, a exclusão do tempo natural nos tempos humanos não faz mais sentido em um cenário em que a disputa pelos escassos recursos naturais dita as mais diversas formas de organização da vida. É nesse caminho que os princípios da Agroecologia podem ajudar o Ensino de História na atual crise ambiental. Haja vista que a materialidade da vida já integrou o tempo natural à forma com que os seres humanos percebem o tempo no início do século XXI, cabe aos profissionais do estudo do tempo alargarem suas fronteiras epistemológicas.

A crença na condição de superioridade dos seres humanos sobre o resto da natureza trouxe o Homo sapiens até essa encruzilhada. O Ensino de História que compreende os princípios agroecológicos como uma Estrutura Histórica Utilizável (LEE, 2006), estabelece um ponto de vista geral de padrões de mudanças a longo prazo, não um mero esboço de história folheando picos do passado.

É nesse contexto, a agroecologia emerge como paradigma não só para Educação Ambiental, mas também para o ensino de História consciente da necessidade de ação frente ao atual modelo de consumo dos recursos naturais. Ao se firmar nos princípios ecológicos para o estudo e manejo de ecossistemas tanto produtivos quanto preservadores dos recursos naturais, a Agroecologia produz uma sociedade integrada ao ambiente, pois tal modelo é culturalmente sensível, socialmente justo e economicamente viável (ALTIERI, 2009). Para Stephen Gliessman, o desafio dos agroecossistemas sustentáveis é o de alcançar características semelhantes ao dos ecossistemas naturais, mantendo uma produção a ser colhida e, dessa forma, perceber a ação humana como potencializadora dos fluxos de energia sem, no entanto, desrespeitar os limites produtivos de cada ambiente (GLIESSMAN, 2008).

Como defende Luis Alejandro Lasso Gutiérrez, a agroecologia “carrega consigo a ideia de complexidade que motiva a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade” (GUTIERREZ, 2021, p. 147). Na busca pela formação do educando em suas múltiplas dimensões, a interdisciplinaridade e a transversalidade têm papéis centrais. Edgar Morin (2002) explica que a atitude de fracionar problemas, separar objetos de seu meio e não reunir aquilo que faz parte de um todo, comum no sistema de ensino, torna os indivíduos incapazes de pensar multidimensionalmente. O grande desafio para a educação do Século XXI está em desestruturar o modelo cartesiano de separação e encapsulamento da realidade e encarar a realidade de forma global, transnacional, multidisciplinar e transversal (MORIN, 2002, p. 14). A interdisciplinaridade emerge neste caso como uma das estratégias possíveis para integração de conteúdos e metodologias diferentes que se propõem a trabalhar conjuntamente determinados temas. Neste caso, “não há uma fusão e justaposição, mas uma ‘interpenetração’ de conceitos, problemas, temas e metodologias” (GUIMARÃES, 2012, p. 171).

Para Francisco Roberto Caporal, a Agroecologia é o único caminho para a construção de agriculturas e novas formas de desenvolvimento mais sustentáveis. Ao articular agroecologia e sustentabilidade, o agrônomo enfatiza que toda preocupação com a sustentabilidade está inscrita numa relação com o tempo, especialmente no que diz respeito dinâmicas temporais dos ecossistemas (CAPORAL, 2016). É essa relação com o tempo que o Ensino de História precisa incorporar para produção de uma consciência histórica capaz de dar conta da disjunção entre social e natural analisada por Carvalho e Costa (2016).

 

Considerações finais(?)

Quando a Agroecologia se propõe a organizar a estrutura produtiva a partir e para o mantenimento da vida, vincula a produção de alimentos às dinâmicas dos determinados ecossistemas e condiciona o tempo social com o tempo da natureza. Em contraste, a saga da espécie humana a partir do surgimento do capitalismo foi pautada na inventividade para vencer os limites tanto do tempo, quanto do espaço no mundo natural. No entanto, a Grande Aceleração, que marcou o surgimento do Antropoceno, agilizou a reentrada do tempo natural na vida humana, o problema é que nessa reentrada o tempo é percebido como uma contagem regressiva. A Agroecologia pode ser usada para ressignificar a forma com que os seres humanos compreendem e se relacionam com o tempo. A pergunta que fica é: teremos tempo para isso? Não existe resposta clara, mas enquanto há vida, haverá uma nova esperança.

 

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Recebido em 30/11/2021.

Aceito em 19/12/2021.

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[1] Doutor em História. Professor do Departamento de Educação do Campo da Universidade Federal de Santa Catarina. Brasil. E-mail: alfredo.lopes@ufsc.br | https://orcid.org/0000-0003-2884-1701

[2] A Grande Aceleração é um conceito utilizado para explicar o aumento das dinâmicas de apropriação dos recursos naturais depois da Segunda Guerra Mundial no planeta como um todo. A introdução da sociedade de consumo e a internacionalização do capitalismo estadunidense são as principais forças que dirigiram esse contexto (MCNEILL, 2001; MARKS, 2012).

[3] “De modo geral, as obras sobre história local reportam-se à história das pequenas localidades, escritas por pessoas de diferentes segmentos sociais, não necessariamente historiadores. (...) atualmente na produção historiográfica, algumas obras indicam um novo enfoque sobre a história local, motivado, principalmente, pelo interesse pela história social, ou seja, pela intenção de recuperar a história das sociedades como um todo, a história das pessoas comuns” (SCHMIDT; CAINELLI, 2009, p. 137).