A dizibilidade e visibilidade do sertão natural em Oswaldo Lamartine de Faria

The sabilities and visibility of the natural hills in Oswaldo Lamartine de Faria

                                                                                               Natália Raiane de Paiva Araújo[1]

Evandro dos Santos[2]

 

 


Resumo

Apresentaremos neste artigo uma análise sobre o bioma da caatinga na construção do espaço do sertão do Seridó, região localizada no interior do Rio Grande do Norte. Relacionamos esse estudo com a vida e obra de Oswaldo Lamartine de Faria (1919-2007), que através de seus escritos construiu a historiografia sertaneja por um viés natural. Mostrando a importância dos animais, plantas e homem, como também toda composição natural paisagística que visibiliza o sertão, enaltecendo as práticas culturais desenvolvidas pelo sertanejo.

Palavras-chave: Natureza; Homem; Sertão; Seridó; História Ambiental.

Abstract

In this article, we will present an analysis of the caatinga biome in the construction of the space in the Sertão do Seridó, a region located in the interior of Rio Grande do Norte. We relate this study to the life and work of Oswaldo Lamartine de Faria (1919-2007), who through his writings built the country's historiography through a natural bias. Showing the importance of animals, plants and man, as well as all the natural landscape composition that makes the hinterland visible, praising the cultural practices developed by the sertanejo.

Keywords: Nature; Man; Sertão; Serido; Environmental History.


 

 

 

Introdução

 

Neste artigo analisamos vida e obra de Oswaldo Lamartine de Faria, na composição da historiografia dos sertões do Seridó. Enviesamos nosso trabalho, através dos elementos naturais descritos pelo escritor em seus textos, abordando as práticas culturais que o sertanejo desenvolveu inicialmente para sua sobrevivência, sendo estas práticas já exercitadas anteriormente por nossos ancestrais.

Oswaldo Lamartine nasceu na cidade do Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, no dia 15 de novembro de 1919, e faleceu em 2007 ao cometer suicídio. Filho caçula do casal Juvenal Lamartine de Faria e Silvina Bezerra de Araújo Galvão, ambos de linhagens renomadas no sertão do Seridó, com inclinações políticas, tendo inclusive o pai governado o Estado. Em Natal, onde passou grande parte da infância, já relatava seu contato com a natureza, nos quintais e mangueirais repletos de árvores frutíferas na companhia de amigos e colegas da rua Trairi.

Oswaldo Lamartine de Faria, foi, portanto, um técnico agrônomo e escritor norte-rio-grandense com atuação entre as décadas de 1940 a 2000. Apesar de dedicar grande afeto pelos sertões do Seridó e escrever sobre este, não teve fixação permanente neste espaço. Tendo muitas moradas ao longo da vida, e seus escritos estão apregoados a estes percursos, quiçá, não teria escrito tanto sobre este local se ali residisse. Uma perspectiva de fora para dentro, um olhar de estradas percorridas e saudades do tempo vivenciado em sua infância. O fim de sua infância, adolescência e vida adulta foram vividos entre espaços distintos, e o sertão, agora, apenas visitado em férias escolares e de trabalho, posteriormente.

Enquadramos este artigo na recente experiência de construção de uma nova área de estudos, desde a aprovação do Mestrado em História dos Sertões no âmbito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Nessa proposta de um mestrado acadêmico cuja área de concentração intitula-se História dos Sertões, a primeira turma – à qual fazemos parte – se deu em 2019, trabalhando com pesquisas que retratam os múltiplos sertões e as infinitas possibilidades de leituras e releituras deste espaço.

O sertão ao qual nos reportamos está localizado no interior do Rio Grande do Norte, mais precisamente denominado de sertões do Seridó. Desse modo, buscamos entender a formação dos discursos sobre os lugares denominados de sertões que são escritos muitas vezes de “fora para dentro”, criando estereótipos a respeito dos lugares, mesmo que este não seja nosso foco principal, usamos para nossa discussão os estudos de Janaina Amado (1995), Erivaldo Fagundes Neves (2003) e Gilmar Arruda (2000).

Ressaltando o discurso sobre a natureza e sobre o sertão, intercalados na escrita de Oswaldo Lamartine, examinamos seus textos e o que eles revelam acerca dos elementos naturais contidos na caatinga, suas características e representações, identificando o sertão seridoense em seu espaço geográfico e histórico, a partir de seus elementos naturais, como por exemplo, as práticas culturais, ou seja, a caça, a pesca, a construção de açudes, dentre outras.

Oswaldo Lamartine escreve para que não se percam os costumes anteriormente vivenciado nas fazendas antigas dos sertões do Seridó; sua família fazia parte da elite do estado do Rio Grande do Norte e este como intelectual escreve sobre o mundo que só teve contato em sua infância e em alguns outros momentos ao longo da vida. Constrói sua narrativa a partir da saudade, no sentimentalismo, mas não deixa de enfocar dados históricos e geográficos que dão veracidade a suas narrativas.

Desse modo, Oswaldo Lamartine trabalha em suas obras com um discurso autobiográfico sendo ele um exilado do seu próprio meio, ou seja, por viver fora do espaço dos sertões do Seridó, não por sua vontade, mas pelas necessidades que a vida o impôs, esses assuntos estão bem presentes na obra de Marize Castro (2015). Utilizando da oralidade e memória, para se fazer uma descrição do sertão de fora para dentro, ou seja, como exilado que foi do sertão, não pode fazer uma escritura de um local onde já não se tem mais contato, por isso utiliza de sua memória para preencher os espaços. Assim, Evandro Santos (2018, p. 98), nos mostra o estilo de escrita de Oswaldo Lamartine em seus textos para descrição da paisagem dos sertões,

 

O estilo de escrita de Lamartine é calcado na memória e na autobiografia. A despeito de alguns textos mais técnicos, próprios de um estudioso de temas agronômicos, o que sustenta sua curiosidade em escrever é, em grande parte, o interesse por um passado supostamente perdido, seja ele natural ou cultural. A história está, aqui e acolá, mas seus textos desencadeiam forte carga afetiva e descrições imagéticas que parecem guiar o autor e, por conseguinte o leitor a partir de memórias das paisagens dos sertões do Seridó.

 

A partir da rememoração de um passado que Oswaldo Lamartine não quer que se perca, como Santos escreve, percebemos, então, todo o saudosismo presente em seus escritos, numa tentativa de tornar sua obra o espaço perdido de sua infância, marcado pelo convívio com seus parentes e amigos, criando descrições imagéticas a respeito do lugar, usando do folclore para enfatizar a cultura presente no viver sertanejo. Desse modo,

 

[...] A forma como o folclore e as chamadas tradições sertanejas são explorados e descritos por Lamartine em suas obras cria o efeito de um passadismo que muitas vezes pode ser lido como puro niilismo. E tal leitura não seria um equívoco. Ademais, creio que a maneira como ele se posicionava dentro de sua narrativa – prática recorrente e marcante – acabava por emprestar certa vivacidade ao passado. Essa característica que (salvo o interesse dos que nascem e vivem nos espaços denominados como sertões) resiste quase que exclusivamente nos discursos políticos locais e nas práticas culturais dos sertanejos, é expandida nas tentativas de preservação cultural e natural em Lamartine. O próprio estilo poético, as diversas citações de trechos de cordéis e expressões populares, o recurso às memórias da infância e o jogo de contrastes entre o passado (natural e autêntico, ainda que histórico) e o presente (artificial e falseado, quase ahistórico) fazem do autor um personagem de sua própria obra, para além da voz de narrador (SANTOS, 2018, p. 104-105).

 

Sendo assim, Oswaldo Lamartine utiliza da cultura da oralidade, ou seja, parte dos contos das histórias que são repassadas ao longo do tempo de geração a geração, usando do folclore popular para perpetuar o seu sertão do Seridó, o qual relaciona com seu íntimo. Um homem que ama a natureza, que estudou sobre ela, e também trabalhou com propriedades de terras. Em seus escritos podemos ver uma descrição das plantas encontradas na região do Seridó – ele as enumera e categoriza por nome científico, mostrando a diferenciação da linguística sertaneja, como pode ser examinado no livro Sertões do Seridó (1980), o qual uso como fonte nesta pesquisa. Destacando sempre a vegetação, pois a caatinga torna-se um elemento principal de domínio do homem para conseguir desbravar os sertões do Seridó.

Dessa forma, Oswaldo Lamartine foi um intelectual que escreveu sobre o sertão, mesmo levando em consideração que fatores internos e externos contribuíram fortemente para esse destino. O autor escreve sobre o sertão molhado, sobre as relações do homem com a natureza, um estudo diferenciado, pois enaltece a cultura sertaneja e a caatinga, assim o autor nos descreve a formação dos sertões:

 

Espia-se a água se derramando líquida e horizontal pela terra adentro a se perder de vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas e embastadas, onde touceiras de capim de planta ou o mandante de hastes arroxeadas debruçam-se na lodosa lama. O verde das vazantes emoldura o açude no cinzento dos chãos. Do silêncio dos descampados vem o marulhar das marolas que morrem nos rasos. Curimatãs em cardumes comem e vadeam nas águas beirinhas nas horas frias do quebrar da barra ou ao morrer do dia. Nuvens de marrecas caem dos céus. Pato verdadeiro, putrião e paturi grasnam em coral com o coaxar dos sapos que abraçados se multiplicam em infindáveis desovas geométricas. Gritos de socó martelam espaçadamente os silêncios. O mergulhão risca em rasante vôo o espelho líquido das águas. Garças em branco-noivo fazem alvura na lama. É o arremedar, naqueles mundos, do começo do mundo...

O rio, estancado em açude, continua depois, em verde sinuoso de capinzais, copas de mangueiras, leques de coqueiros ou canaviais penteados pelo vento. Milhões de metros cúbicos de água-doce, fria e cheirosa – é que a água nos desertos também cheira – esbarrados pela muralha da parede, aninham peixes, criam vazantes, dão de beber à criação, fazem crescer raízes, caules, folhas, flores e frutos e se esclerosam em veias pela terra adentro, esverdeando em folhas os sedentos chãos cinzentos daqueles sertões (FARIA, 1980, p. 23).

 

O nascimento dos sertões para Oswaldo Lamartine dá-se com a vista de um açude e dos elementos que compõem a paisagem em volta. Uma descrição do natural que vai mostrar a importância que o autor dá a fauna e flora do lugar, revelando a composição do espaço que nos parece poético e até sonoro em sua descrição, pois os silêncios se rompem a partir dos sons dos animais encontrados e a paisagem revela suas cores, do cinzento passa ao verde. 

Para concretização desta pesquisa também utilizamos de autores que abordam a História Ambiental e as discussões que existem em torno de natureza e História, como: José Augusto Pádua (2010); Donald Worster (1991); e, José Augusto Drummond (1991). Lembrando que Oswaldo Lamartine, não é historiador nem ambientalista, mas seus estudos nos permitem enveredar com esse caminho. É o que veremos a seguir nas obras oswaldiana, as direções e perspectivas que constroem a história dos sertões.

 

O sertão seco e o sertão molhado em Oswaldo Lamartine de Faria

Os múltiplos sertões podem ser encontrados em diversos textos, poemas, ensaios, e no imaginário popular brasileiro e até mesmo fora dele. Mas um elemento é totalmente caracterizador desta região: sua natureza, ela quem designa a paisagem e constrói toda as leituras e releituras deste espaço. Quando se trata dos sertões nordestinos, mais precisamente o sertão seridoense, localizado no interior do estado do Rio Grande do Norte, são as condições climáticas que determinam a formação do imaginário e escrita deste ambiente, o que não inviabiliza outros elementos, mas é a natureza que tomamos como tema para nossa pesquisa.

Neste prisma, analisaremos alguns dos ensaios de Oswaldo Lamartine que enfocam a região através do seu tempo/clima, uma leitura da paisagem nos tempos de escassez e outra no tempo de chuva. Dentro desse olhar, é no sertão aguado que Oswaldo mais se debruça em escrever sobre os sertões seridoenses, pois é a paisagem e sua descrição etnográfica que formam o espaço. Sempre enfatizando a história a partir de um passado vivo, sem muitas dores, com enaltecimento, do homem, natureza e animais.

Oswaldo Lamartine coloca a seca como um dos elementos definidores do espaço, apesar do sertanejo se ressignificar para sobreviver neste local. O sertão seco se apresenta com as secas que fazem com que o espaço e sua natureza sejam totalmente modificados, tornando a região um local de difícil habitação, principalmente, em relação à alimentação, elemento que faz o sertanejo aprender a dominar o espaço. Sobre as secas e sua interferência na alimentação, Oswaldo Lamartine (1980, p. 76) nos diz:

 

Mas de regra, o seridoense é aprendido das lições de fome ensinadas pelas secas vividas ou das que de boca-em-boca, de pai pra filho, ouviu dos mais velhos. Secas como a dos dois setes (1877), a dos três oitos (1888), a de quinze (1915) e dezenove (1919), deixaram ensinamentos naquela gente. E sofrida na fome de cada seca, aprendeu a guardar as sobras das colheitas para lhe garantir o sustento nos meses de estio.

 

Das quatro secas mencionadas na citação, podemos perceber que a última citada se refere ao seu nascimento, mostrando a relação do mesmo com a obra que escreve. Os períodos de secas eram marcados por silêncios, pois dos animais não se viam rastros ou cantos, e o que sobrava era a caatinga, espichada ao sol num mundo de silêncios. Num momento se tem chuvas e em outros se tem a falta da mesma, fazendo a abundância de animais sumirem; para sobreviver alguns comiam até calango.

Nas secas de 1844/1845 e 1877, Oswaldo Lamartine conta sobre as condições de vida do homem seridoense, ele o denomina como típico homem de classe média e camponesa em seu artigo Notas sobre a Pobreza, publicado no Diário de Pernambuco em 1948. Em 1877 o autor destaca que o Seridó teve sua maior evolução econômica e não sentiu as crises advindas da abolição, os sertanejos viviam até o momento de gêneros para suas necessidades diárias como alimentação, as carnes vinham do litoral, e os animais que criavam eram soltos para circularem em suas terras. Houve também uma grande emigração a partir desta seca, os rastros deixados nas estradas de animais mortos que não suportaram as viagens e a necessidade de água e alimentação.

Dessa forma, para não morrerem de fome, o sertanejo comia algumas plantas nativas da caatinga como o xique-xique, que também fornece água, gugoia – fruto da palmatória, as raízes e semente de faveleira, entre outras. Oswaldo Lamartine ainda cita que havia muitas aglomerações nas capitais e em Fortaleza, no Ceará, o total de pessoas mortas durante aquela seca foi de 1.012 almas, segundo Oswaldo Lamartine em referência a seca de 1877. Mas o autor enfatiza que foi a partir dessas experiências naturais que o seridoense passou a plantar nos leitos de rios secos e a se fixar na região. Oswaldo Lamartine (2016, p. 17), assim define o Seridó:

 

Está o Seridó encravado no miolo da área semiárida do Nordeste, onde a escassez de chuvas, a vegetação espinhenta, rala e de folhas caducas, o solo enladeirado, com altitude média de 250m, raso, erodido, pedregoso e esturricado por 3.000 horas/luz/ano – escalda a 60°c durante os meses de seca quando o vento açoita a 20 km/hora – contribuindo para a inexistência de ectoparasitas nos seus rebanhos. Assim o couro do gado ali criado está livre do ataque de carrapatos e bernes o que valoriza para as necessidades locais e o comércio de exportação.

 

As imagens das secas no sertão foram e ainda são disseminadas no país, é mais um elemento caracterizador do espaço, o principal difusor da imagem de sertão pelo país, trazendo para o sertanejo a definição de um local seco, sem vida, e principalmente sem água. Marcado pela morte de animais, fome, e emigração dos sertanejos para outras regiões do país em busca de melhores condições de vida. Apesar de que a topografia sertaneja seja delimitada por rios, muitos desses secam com a falta de chuvas.

Meteorologicamente o sertanejo também desenvolveu alguns procedimentos para saber sobre os anos bons de inverno, como também para interceder para um ano de chuvas abundantes, pois as secas causavam o caos nessa região, porque as chuvas mantinham suas plantações e os animais, como o próprio sertanejo sobrevivia através da economia e para sua própria alimentação no espaço. Desse modo,

 

No nordeste, o sertanejo rouba as imagens dos seus oratórios para que o santo, ressentido, faça chover. Sob a fogueira de S. João, enterram uma garrafa d’água; se no dia seguinte continuar cheia, o ano vindouro será bom de inverno. O dia de Santa Luzia, 13 de dezembro, oferece melhor profecia: seis pedrinhas de sal – que representam os seis primeiros meses do ano – são expostas ao sereno da noite; na manhã seguinte o maior ou menor grau de umidade de cada uma diz da intensidade das chuvas de cada mês (FARIA, 2001, p. 57).

 

Cada sertanejo acredita em uma ou outra dessas analogias e ao comtemplar o céu e as nuvens observam as promessas das chuvas. Alguns dos chamados profetas de chuvas fazem seu prestígio quando se confirmam no ano seguinte as suas previsões. Sendo assim, o tempo e as condições climáticas acontecidas durante o ano mostram como vai ser o mesmo, se vai ser seco ou molhado. É uma sabedoria imprescindível, pois, a composição do clima, dos animais e plantas determinam como será o ano vigente. Como veremos na citação a seguir:

 

O tempo também oferece ensinamentos. É bom sinal quando o sol em 18 de outubro ou a primeira lua cheia de janeiro, nascem por trás de uma barra de nevoeiro; ou quando as estrelas nos últimos meses do ano ficam embaçadas e as águas das cacimbas crescem de nível (FARIA, 2001, p. 59).

 

Posteriormente o DNOCS, a SUDENE e outros órgãos do governo foram entrando no espaço e fazendo suas previsões científicas a respeito do clima/tempo na região. Há as denominações feitas pelo sertanejo em relação às chuvas: como preparação – anúncio de chuva; barra – formação de nuvens no horizonte; e torreame – são nuvens cheias. Existem as classificações das chuvas como: chuva de apagar a poeira; chuva de pingar goteira; chuva de correr os duros; chuva de fazer água e chuva de emendar as goteiras. Os bichos oferecem esse saber da seguinte forma:

 

O comportamento dos bichos oferece melhor ensino. Assim é que, farturas de gatas amojadas, tatu magro de novembro para janeiro, abundancia de cascavel, aranhas caranguejeiras vagando pela caatinga, aruá se desapregando fácil dos galhos de pau de janeiro para fevereiro, rato do mato fazendo ninho nos altos das várzeas, sapo-cururu cantando no seco em dezembro, formiga de roça carreando para fora a comida velha, galo de campina açoitando de madrugada, curimatã ovada em dezembro e os maribondos caçando os alpendres das casas para fazer casa nas telhas – não tem o que saber – é cuidar em aprontar a terra porque é ano de tanta chuva que dá para sapo morrer afogado (FARIA, 2001, p. 58).

 

O açude representa o sertão molhado, chuvoso, que nasce a partir das águas vindas do céu e barreiradas nos açudes, onde se planta e os animais comem e bebem, as aves compõem o cenário, como também os peixes que se encontram nos açudes e assim todo o processo exercido pelo sertanejo quando cria o açude, coloca os peixes lá para dar cria e serem pescados, plantam para colherem e alimentarem os animais, formando, assim, a paisagem nostálgica do que seria o nascimento das terras dos sertão seridoense para Oswaldo Lamartine.

O ensaio sobre os Açudes dos Sertão do Seridó (2012), abordam a representação dos açudes para o sertanejo através da utilização das vazantes para o plantio e o represamento das águas. O açude foi um dos elementos de maior difusão na região para a fixação do homem à terra, a construção dos açudes está ligada ao fato das secas e as políticas públicas utilizadas na época para controlar o problema hídrico na região.

No início, para se guardar água vão ser construídos poços ou cacimbas, depois veio a criação de açudes, e hoje são construídas as cisternas. Para carregar água, usava-se um saco de couro denominado de borrachas, ocos de imburana e as cabaças, depois veio a compra de barris. Percebemos, então, a utilidade que o sertanejo faz de sua natureza, adotando os recursos disponíveis para sua sobrevivência neste espaço. Eles também trabalharam com cerâmica, fazendo potes e jarra para armazenamento de água, ressaltando que alguns desses costumes já eram utilizados pelos indígenas locais.

Oswaldo Lamartine reflete que este conhecimento e desenvolvimento do saber em construir açudes tenha vindo do olhar aos acontecimentos naturais, análogo ao procedimento do “castor”, animal que rói as árvores e as derruba, coloca barro e pedra nas brechas e assim represa as águas. Mas esses açudes foram feitos pela necessidade de guardar água, começaram a serem feitos em propriedades privadas, depois, com ajuda do IFCS/DNOCS construíram-se os públicos.

Oswaldo Lamartine, segue sua obra pontuando cada detalhe sobre a construção dos açudes, detalhando sobre os homens trabalhadores, envolvendo sempre a natureza presente no espaço, que em alguns momentos serve de escape para as famílias sertanejas. Como vimos, os órgãos públicos estavam ligados a construção dos açudes, sejam eles particulares ou públicos, uma forma de evitar que as crises hídricas fizessem os homens, mulheres e crianças se destinassem rumo a outras localidades em busca de melhores condições, mas, muitos retornavam com o passar dos meses secos, pois, o clima/tempo sertanejo é dividido entre inverno e verão.

Sendo assim, era nos tempos de inverno que muitos retornavam aos sertões, mas não deixou de caracterizar o local devido à sua escassez de água. É na contribuição dos serviços governamentais que se desenvolvem elementos para conter as grandes crises, sabendo que existiam também determinados fins para essa contribuição ao sertanejo. O que podemos mais uma vez enfatizar que Oswaldo Lamartine mantinham relações internas e externas com meios sociais e culturais da época, e, com a construção dos açudes se desenvolveu outros meios de sobrevivência nos sertões como nas pescarias.

No ensaio sobre o A.B.C. da Pescaria de Açudes no Seridó (2015), Oswaldo Lamartine mostra os métodos utilizados pelos sertanejos na pescaria dos açudes. Este modo de pesca está ligado à cultura europeia, quando utilizam da tarrafa, do anzol, da rede, de explosivos e de sifão; outra influência é da cultura indígena, no uso do tingui, bulha, pescaria a mão, armadilhas, flecha e anzol. Escreveu esta narrativa em forma de se contar poesia através do ABC, assim descrevendo o processo de preparo para a pescaria, seus modos e formas de usar as ferramentas na mesma.

A pescaria com tarrafa, acontece quando a rede é colocada dentro dos açudes ou rios para prender o peixe, existindo todo um processo de amarração, de espera e preparo, para que a pescaria seja boa. Geralmente os pescadores dividiam o peixe com o dono do açude, quando o açude era privado, ou se pagava uma taxa para a pesca no mesmo. Havia os açudes públicos, utilizados mais para armazenagem de água e para empregar os sertanejos. Essa prática é sempre repassada de pais para filhos, ou seja, quase sempre os pescadores são filhos de pescadores, um conhecimento aprendido desde infância, quando os filhos vão com seus pais ajudá-los.

O processo da pescaria se desenvolveu de diversos modos e incorporou recursos para sua efetivação; enfatizando que esse saber é passado de uma geração a outra, que a pesca pode ser feita em rios, mares, açudes, entre outros. Mas o que percebemos no ensaio escrito por Oswaldo Lamartine é a mescla de estilos para a pescaria, as formas que se fazem as redes, se prepara a isca até se pegar o peixe, uma prática que exige astúcia, foco, e habilidades.

Nesse sentido, de práticas desenvolvidas pelos sertanejos, Natália Araújo (2013), enfoca bem o trabalho de Oswaldo Lamartine com as práticas culturais, dentre elas a caça, a pesca e a conservação de alimentos, práticas que o próprio sertanejo desenvolveu para sua sobrevivência, mesmo que elas tenham sua origem um pouco mais remotas. Esses elementos abordados podem ser vinculados a cultura, a memória e ao patrimônio material e imaterial existente nos sertões. São saberes passados de pai para filho, contados oralmente por homens que viviam desses fazeres. Um saber/fazer colocado minuciosamente por Oswaldo Lamartine, quando este descreve o modo da pesca, e, o guardar dos alimentos produzidos na lavoura e a preparação das comidas de modo que estas durem mais e se sobressaiam as demais, como, por exemplo, a feitura do queijo ou do chouriço. Assim, Araújo, nos diz sobre a pesca:

 

A pescadores então assumem uma cultura própria repleta de experiências do indivíduo ou do grupo, relacionadas com o sentimento de gostar e praticar a pesca, aprimorando-se cada vez mais, de modo a passar para as novas gerações o saber e o fazer transfigurando as experiências cotidianas a um mosaico formado por imagens que se vinculam sempre a significados ampliando suas identidades. Portanto, o chefe da pescaria pode ser facilmente reconhecido na comunidade pelas suas características do saber e pelo relato de suas experiências vividas juntamente com os outros do mesmo meio (ARAUJO, 2013, p. 38).

 

A relação entre a pescaria e os açudes estão totalmente associadas, principalmente em relação ao saber-fazer, pois consiste em um processo de inteligência, de desenvolvimento de um aprender que teve início no começo dos tempos e foi aprimorado ao passar dele. É um entrelace entre ouvir, ver e produzir/construir. Mostrando assim as relações entre natureza e sociedade, que existem desde os primórdios até os dias atuais.

Esses modos de saber-fazer produzidos pelo sertanejo podem ser caracterizados como arte, como nos diz Araújo (2013, p. 40): “A arte possui uma relação com a ciência pelo fato de construir um saber. O relato do saber sertanejo está inserido em sua tradição oral, passada de geração a geração construindo histórias que fazem parte de seu imaginário”. Uma sabedoria exercida através da dominação da natureza hostil, um espaço de dificuldades, devido ao clima, solo árido, e outras intempéries ocasionadas, por isso, a produção deste lugar converter-se em arte.

O sertão seridoense seja ele molhado ou seco, hoje, se tem notoriedade deste espaço, devido, em partes, aos escritos de Oswaldo Lamartine, um bicho-homem, um ser que se coloca dentro do espaço e suas transformações, como veremos nas discussões seguintes. Sendo assim, Oswaldo Lamartine, conjuntamente com suas obras torna o sertão do Seridó um espaço visível, a partir dos elementos constituídos, como a paisagem, as práticas de dominação do espaço e o homem sertanejo.

 

O bicho-homem sertanejo

Os homens que se fixaram nos sertões são caracterizados por seus hábitos, costumes e tradições onde a cultura e o processo civilizatório se mesclam. Criaram, plantaram, colheram, conservaram alimentos, armazenaram água, dominaram do espinho a flor do sertão. Portanto, é da raiz que nasce a planta e se extraí tudo que dela pode ser transformado e produzido, até mesmo seus elementos, como a madeira, a casca, as folhas, flores e frutos, tudo é aproveitado e comercializado.                                                                                                                                                                                                                                                                                               

Desde a antiguidade quando o homem habita a terra passa a se alimentar da caça por ele conseguida, bichos de pêlos e de penas. Somente depois de um tempo que o homem passa a plantar a se fixar em alguns locais. É a terra que produz a sobrevivência do homem, dos bichos e das plantas. Oswaldo Lamartine fala da importância da micro-fauna, que seriam as bactérias e protozoários presentes nos solos sertanejos.

Um dos elementos mais valorizados nas obras de Oswaldo Lamartine é o homem sertanejo, e como destaque tem o vaqueiro. O autor, então, escreve um livro sobre o mesmo intitulado Encouramentos e Arreios do Vaqueiro no Seridó (2016) – nesta obra o autor destaca a vestimenta dos vaqueiros, como o processo de produção e necessidade de cada item que forma a roupa. A figura do vaqueiro poderia ser encarnada por branco, mestiço ou negro que substituiria em partes a ausência do escravo na região, e este trabalhava nas fazendas de gado desempenhando várias funções, como cuidar do gado e outros serviços solicitados pelos fazendeiros.

Os vaqueiros utilizavam de máscara, relho, chocalho, peia, alforje e borracha; muitos destes apetrechos eram feitos de couro como no caso da máscara utilizada no cavalo (lembrando que este animal foi inserido no território a partir da colonização e com o passar do tempo passou a ser utilizado como ferramenta de trabalho para os vaqueiros, que usavam cabresto, cabeçadas e rédeas para conter o animal).

Sendo assim, a indumentária do vaqueiro era o chapéu de couro, gibão, guarda-peito, luvas, perneiras e guardas, sapatos, esporas, guiada e ligeira. A imagem do vaqueiro está atrelada ao processo de uso do ferro e couro pelos sertanejos, e o mesmo fazia parte da população pobre do sertão, era um homem-bicho, ligado à natureza, quem mais conhecia os caminhos, a vegetação e os animais. Desse modo o homem é apresentado como elemento integral da natureza, vejamos a seguinte citação:

 

Os seres humanos participam dos ecossistemas tanto como organismos biológicos aparentados com outros organismos quanto como portadores de cultura, embora raramente a distinção entre os dois papeis seja precisa. Aqui basta lembrar que, como organismos, os seres humanos nunca conseguiram viver num isolamento esplêndido, invulnerável. Eles se reproduzem, é claro, como outras espécies, e os seus filhos sobrevivem ou morrem de acordo com a qualidade do alimento, do ar, da água, e com a quantidade de microrganismos que constantemente penetram os seus corpos. Dessas formas e de outras, os seres humanos têm sido parte inseparável da ordem ecológica do planeta. Portanto, qualquer reconstrução dos ambientes do passado tem que incluir não apenas florestas e desertos, jiboias e cascavéis, mas também o animal humano e o seu sucesso ou fracasso no ato de se reproduzir (WORSTER, 1991, p. 9).

 

Nesse sentido, o homem sobrevive daquilo que a natureza o oferece, vivendo em um ambiente flexível, mas com suas limitações. É, nesse momento que o indivíduo com suas habilidades e conhecimentos desenvolve meios de explorar o meio ambiente no qual vive. A tecnologia e a ciência, também, contribuem de maneiras significativas para esse desenvolvimento. Mesmo que o homem sertanejo tenha desenvolvidos aos nossos olhos técnicas rudimentares em alguns momentos para dominação do espaço, mas foram estratégias que puderam desenvolver naquele momento através da natureza ao qual estavam dominando (ou seja, caça, pesca, conservação de alimentos), foram técnicas desenvolvidas através das suas necessidades para sobrevivência no ambiente. Por isso, o sertanejo desenvolveu modos de utilização da natureza diferente de outras regiões, Worster (1991, p. 14), assim nos diz sobre este pensamento:

 

(...) Uma maneira de entender esse relacionamento é afirmar que as ideias são socialmente construídas e, portanto, refletem, a organização das sociedades, os seus tecno-ambientes e as suas hierarquias de poder. As ideias variam de pessoa a pessoa dentro de uma sociedade de acordo com o gênero, a classe, a raça e a região. Homens e mulheres, quase sempre separados em esferas mais ou menos distintas, chegaram a modos distintos – por vezes radicalmente distintos – de encarar a natureza. O mesmo ocorreu com os escravos e senhores, donos de fábricas e trabalhadores, povos agrícolas e industriais. Eles podem viver juntos ou muito próximos uns dos outros, mas ainda assim, encaram e avaliam a natureza de forma diferente.

 

Sendo assim, para se entender os usos da natureza de um povo, devemos estar atentos ao seu pensamento sobre a natureza. A obra de Oswaldo Lamartine lança diversos panoramas de entendimento das raízes sertanejas e seus modos de utilização do espaço natural, mostrando que o sertanejo interage de forma direta com a natureza sem muitas agravações ao ambiente, talvez este processo tenha sido habilitado desde antes da colonização e exploração das terras. Ao longo dos anos este processo vem sendo questionado, devido a rarefação da fauna e flora sertaneja.

 

Por uma história ambiental dos sertões do Seridó

Ao escrever sobre o homem e as relações que exerce através da natureza, Oswaldo Lamartine nos apresenta uma narrativa ambiental do espaço sertanejo, mesmo não sendo um historiador ambientalista, mas, um agrônomo que escreve sobre os sertões do Seridó. Uma escrita que evidencia o natural e o homem submetido a esse ecossistema. A caatinga é apresentada não como uma natureza hostil, que contêm suas vantagens e desvantagens e que as relações que se estabeleceram neste local o definiram como lugar: o sertão do Seridó.

Samara Silva (2019), relata que os escritos de Oswaldo Lamartine mostram um sertão menos escravista e coloca o coronel a partir de seu lado paternal, valorizando os artesãos e vaqueiros como homens sábios, deixando de lado nos seus escritos a população carente e a extrema pobreza existente na região. Dessa forma o autor valorizou a família patriarcal, e não uma sociedade igualitária, se colocando a favor desse sistema.

 Assim, Oswaldo Lamartine relaciona sua vida à natureza, e a representação da natureza em seus textos, estão além do que é visto, ouvido e sentido. O autor se posiciona a partir da sua visão do mundo sertanejo, uma visão privilegiada, com regalias, com comida na mesa, com estudo, com as relações internas e externas na região. Talvez, falar sobre a injustiça, a fome, a natureza hostil, não o trouxesse as boas lembranças vividas na região ao lado de sua família, e seguir referenciando o melhor da natureza e o relacionamento com o homem fosse o caminho mais eficaz de guardar suas lembranças. Assim Silva (2019, p. 59) nos diz:

 

A natureza determina também as formas de ver, de acordo com o meio em que está inserido o ser humano irá buscar formas de se adaptar e melhor viver. Deste modo a humanidade tem conseguido sobreviver em ambientes severos tanto nos desertos escaldantes quanto nos ambientes congelados do hemisfério norte.

 

Dessa forma, o meio e o homem direcionam duas formas de condicionamento, mesmo que uma esteja ligada à outra. O homem sempre se ressignifica, assim como a natureza, busca meios para sua sobrevivência, mesmo que tenha de certo modo, hoje, modificado esta relação e essa natureza tenha cobrado ou está cobrando um alto custo à humanidade. Não existe vida sem a natureza e o homem é obra deste meio ao qual usa de seus recursos para benefícios e malefícios.

Oswaldo Lamartine faz uma descrição da paisagem sertaneja sem sofrimento e dor, mas um espaço leitoso e hídrico. Em alguns relatos percebemos uma alegoria imaginativa e poética do espaço do Seridó, dando formas e sentidos, de uma terra por ele vivida e explorada. O que leva o autor a experiência vivenciada nos sertões, colocando seus sentidos e sentimentos dentro de um local, ao qual pode ter acesso pelas lembranças, cheiros e sabores. Silva (2019, p. 84) diz: “porém, por mais imaginação que o autor convoque, sua paisagem será composta por elementos físicos reais como o meio ambiente”.

Mesmo o autor evocando de outros elementos para a composição de seus escritos sobre o sertão seridoense e sua natureza, sua estrutura é realista, e hoje compõe uma das obras que evidenciaram este espaço no Brasil. Os elementos por ele colocados em seus textos, exaltam um ver, um ouvir e um sentir, um sabor, um ser, posto ou criado para trazer ao sertão do Seridó, e suas representações, o seu espaço merecido. Nesse ínterim, de conhecimento sobre a natureza e escrita, destacamos que a construção dessa perspectiva por Oswaldo Lamartine pode ser analisada de acordo com a citação abaixo:

 

Os humanos são animais que carregam ideias, assim como ferramentas, e uma das mais abrangentes e mais consequentes delas tem o nome de “natureza”. Mais precisamente, a “natureza” não é uma ideia, mas muitas ideias, significados, pensamentos, sentimentos, empilhados uns sobre os outros, frequentemente da forma menos sistemática possível. Todo indivíduo e toda cultura criam esses aglomerados. Podemos pensar que sabemos o que estamos dizendo quando usamos a palavra, mas frequentemente queremos indicar várias coisas ao mesmo tempo, e os ouvintes provavelmente terão que se esforçar para perceber o que queremos dizer. Podemos supor também que a natureza se refere a algo radicalmente distinto de nós, que ela está em algum lugar “lá fora’, parada, sólida, concreta, sem ambiguidades. Num certo sentido, isso é verdade. A natureza é uma ordem e um processo que nós não criamos, e ela continuará a existir na nossa ausência. Só o solipsista mais crasso discordaria disso. Ainda assim, a natureza é também uma criação das nossas mentes, e por mais que nos esforcemos para ver o que ela é objetivamente em si mesma, por si mesma e para si mesma, em grande medida caímos presos nas grades da nossa própria consciência e nas nossas redes de significados (WORSTER, 1991, p. 13).

 

Seguindo esta linha de pensamento podemos observar que Oswaldo Lamartine como estudioso da natureza e do sertão compôs seus escritos com base naquilo que viu, ouviu, e reproduziu das ações humanas sobre a natureza seridoense. Escreveu da natureza para o homem, uma escrita entrelaçada do natural ao humano. Produziu sobre as espécies vegetais e animais que a caatinga proporcionou e sobre os meios de sobrevivência neste ambiente, talvez, seja, por sua interpretação da natureza seridoense e do sertanejo que ao longo dos estudos começou a criticar a modernidade e a tecnologia que modificaram os meios de relacionamento entre o sertanejo e a natureza.

Ter uma escrita voltada a História Ambiental no sertão sertanejo seridoense é um viés que abre diversos campos de investigação. Lembrando que o sertão quando interpretado e escrito, visto como lugar não “ocupado” já existia com sua paisagem, com os indígenas que neles viviam, não eram espaços jogados ao esmo, mas espaço já conquistado e habitado. Não nos deteremos ao início dos tempos, mas, desejamos expor que a natureza é uma presença, ela habita antes de nós, e, a nossa caatinga não é diferente. Dessa forma,

 

Uma das principais características do território continental onde veio ocorrendo a construção do Brasil é a enorme biodiversidade, seja de biomas, ecossistemas ou espécies. Essa biodiversidade não se distribui de modo uniforme, existindo vários componentes ecológicos específicos das diferentes regiões. As populações humanas que vieram ocupando esses espaços desde as primeiras imigrações paleoindígenas aprenderam a utilizar muitas espécies da flora e da fauna para sua cultura material e espiritual. Alguns desses usos foram incorporados e ressignificados nos complexos regionais criados a partir da chegada dos colonizadores europeus (PÁDUA; CARVALHO, 2020, p. 1320).

 

Nesse sentido, abordamos a paisagem sertaneja (d)escrita por Oswaldo Lamartine, iniciando sua apresentação dos sertões sertanejos pelas suas águas, plantas e “bichos”, e, no decorrer nos revela as relações que homem sertanejo desenvolveu para sua fixação ao ambiente, como a criação dos açudes, a pesca, a caça, a conservação dos alimentos, a dominação sobre o natural, mas, que, os fatores como tempo/clima, animais e plantas estão fora de nosso absoluto controle.

O tempo exigido para elaborar uma escrita através do natural é muito maior do que consideramos atualmente para o desenvolvimento de trabalhos acadêmicos e entre outras medidas de tempo utilizadas por nós. Pois, se investiga a geologia do local, fauna e flora, conjuntamente com os processos naturais ocorridos em cada localidade alterados pelo tempo e fatores externos e internos, como a interferência humana, criadores de símbolos e culturas. “Para os clássicos das ciências sociais, as sociedades humanas estavam, portanto, fora ou acima da “história natural”, ou do “tempo geológico” adotado a duras penas no estudo dos fatores vivos e mortos da natureza” (DRUMMOND, 1991, p. 179). Ou seja, não podemos alterar as relações que compõem a vida na terra, a história da humanidade também está relacionada ao natural, e, não pode ser ignorado, mesmo que esteja inserido numa discussão bem mais ampla sobre a História Ambiental. Nesse sentido,

 

Precisa ficar claro que pensar sobre a relação entre o “tempo geológico” e o “tempo social”, combinar a história natural com a história social, colocar a sociedade na natureza, enfim – implica necessariamente atribuir aos componentes naturais “objetivos” a capacidade de condicionar significativamente a sociedade. Não há meias palavras quanto a isso. Não se trata de fazer apenas metáforas ambientais, ecológicas ou naturais, como as que predominaram, por exemplo, na famosa escola de “ecologia humana” desenvolvida na universidade de Chicago a partir dos anos 1920. Trata-se de uma mudança seria de paradigma nas ciências sociais. Significa que o cientista social dá as “forças da natureza” um estatuto de agente condicionador da cultura (DRUMMOND, 1991, p. 181).

 

Conhecer espécies de plantas e animais nativos ou não da caatinga, saber sobre seus efeitos, seus nomes científicos, as relações culturais com a introdução humana no espaço, demanda tempo, e, muito tempo. Vimos que o autor, relaciona tanto as plantas como os animais aos humanos, um processo de simbiose como já mencionado, o natural e o social intercalados, seu olhar estava inclinado para os acontecimentos nestes espaços.

A história Ambiental, muitas vezes é escrita sobre uma homogeneidade ou identidade natural, recorte político ou cultural, a partir de elementos físicos ou ecológicos, a utilização dos recursos naturais, e a valorização humana atribuída a natureza. Assim este campo se apresenta como interdisciplinar assim como a obra de Oswaldo Lamartine. As vertentes que esses estudos abrem são diversas, podendo ser relacionados variados campos de estudos. Sendo assim,

 

A história ambiental é, portanto, um campo que sintetiza muitas contribuições e cuja prática é inerentemente interdisciplinar. A sua originalidade está na sua disposição explícita de “colocar a sociedade na natureza” e no equilíbrio com que busca a interação, a influência mutua entre sociedade e natureza (DRUMMOND, 1991, p. 185).

 

As relações entre humanos e o meio natural, constroem vieses diversos, principalmente, quando, o homem, atua no meio criando sua cultura. “Afinal, os recursos só se tornam recursos quando culturalmente identificados e avaliados. Não existem recursos naturais per se. Os recursos não se impõem unilateralmente à cultura, embora possam vetar alguns caminhos e estimular outros” (DRUMMOND, 1991, p. 182). A utilização dos meios naturais é que determinam os recursos por ela utilizados, sua importância, suas caracterizações. Dessa forma, a natureza que ainda não foi explorada pode ser vista da seguinte forma:

 

Quanto à natureza “selvagem”, “intocada”, “incontrolável”, ele tem pavor ou um apetite insaciável de controlar, domesticar, civilizar. Essas atitudes afetam profundamente as ações das sociedades humanas em relação aos seus ambientes naturais. Muitas vezes uma sociedade acredita que está “salvando a natureza”, mas “salva” apenas uma obra sua (DRUMMOND, 1991, p. 190).

 

Desse modo, nos deparamos com outro viés o de exploração do meio ambiente e consequentemente seus efeitos. No mundo biofísico, a apropriação dos recursos naturais e valorização dos seus biomas vem de uma relação anteriormente construída, pois o indivíduo age a partir de seu campo de percepções e compreensões do que se tem a volta. Elementos como prata e ouro estão contidos na natureza, mas é o homem que dão sentidos aos mesmos nos seus usos, lembrando que de acordo com cada cultura os elementos podem ter outros significados ou não significarem nada. Apresentando, assim, pluralidade nas dimensões culturais e naturais dos “objetos”.

Na era das industrializações os processos naturais ocorrem de forma acelerada, e, impacta diretamente na sobrevivência natural e humana no planeta. Nos tempos modernos e contemporâneos, as questões ambientais estão voltadas para a degradação ambiental. O homem, agora usa de sua capacidade de ação para destruir o meio ambiente, consciente ou inconscientemente, fruto principalmente da capitalização e industrialização do mundo. Sendo assim,

 

A modernidade da questão ambiental – da ideia de que a relação com o ambiente natural coloca um problema radical e inescapável para a continuidade da vida humana – deve ser entendida em sentido amplo. Ela não está relacionada apenas com as consequências da grande transformação urbano-industrial que ganhou uma escala sem precedentes a partir dos séculos XIX e XX, mas também com uma série de outros processos macro-históricos que lhe são anteriores e que com ela se relacionam. É o caso da expansão colonial europeia e da incorporação de vastas regiões do planeta, uma grande variedade de territórios e ecossistemas, a uma economia-mundo sob sua dominância. E também da institucionalização da ciência como um modo privilegiado de entendimento do mundo, com pretensão de universalidade e capacidade para estabelecer redes planetárias de investigação e troca de informações. A proposta de comprar regiões, produções naturais, economias e culturas – de constituir um saber geográfico planetário – é fundamental para entender a emergência de uma preocupação com os riscos da ação humana. A própria ideia de colapso, de destruição do futuro, começa a aparecer nesse contexto (PÁDUA, 2010, p. 84).

 

Numa visão mais compacta de nosso país:

 

A economia e a sociedade brasileiras continuam a ser extremamente dependentes dos recursos naturais. Nosso futuro depende desses recursos, dos valores que lhes emprestamos e dos usos que lhes damos. Não temos ética do lucro, nem ética da produtividade, nem ética do trabalho; não somos criadores de tecnologias de ponta, nem de processos produtivos; não temos capital para viver de rendas; a nossa modernidade industrial e pós-industrial é tão impressionante quanto é frágil. Grandes setores da nossa população e da nossa economia continuam a depender do uso extensivo e raramente prudente de recursos naturais: novas terras agrícolas e pecuárias, novos produtos extrativos, novas usinas hidrelétricas. O mercado mundial está pagando cada vez menos por esses recursos naturais (DRUMMOND, 1991, p. 195).

 

É com essas novas ascendências dos tempos modernos e a emergência nos processos de conservação e preservação da natureza que enviesamos este artigo, pois a degradação ambiental de nível mundial, regional e local estão acontecendo e revelando que o processo de conhecimento sobre a natureza se torna mínimo diante do que pode nos acontecer com a continuidade nos processos de exploração ambiental.

 

Considerações finais

Ao longo desta exposição textual, mostramos, alguns elementos inseridos na obra oswaldiana, todos os fatores contribuíram para fixação do homem na terra, a partir do momento que este aprendeu a dominá-la, ocorrendo assim uma simbiose entre homem-terra-bicho. Mas sabemos que a natureza não é estável, a qualquer momento com interferências ou não no meio ambiente, ela nos surpreende, seja, com a falta de chuvas ou enchentes, ou até mesmo algo que não imaginamos que não tenhamos conhecimento.

Os textos escritos por Oswaldo Lamartine se enquadram na produção de uma História Ambiental, mesmo que o escritor não tenha essa consciência em si, pois o mesmo não era historiador nem ambientalista. Mas, devido a apresentação da natureza seridoense através do seu bioma, a caatinga, elencando os animais, as plantas, o solo, o clima e toda composição geográfica da paisagem sertaneja, acrescentando o homem-sertanejo como agente biológico presente no espaço, traz essa relação com questões e temas para os historiadores ambientais. Não apresenta somente as intempéries que acometem a região, mas todo o processo natural que compõe o cenário do sertão do Seridó.

A História Ambiental produzida por Oswaldo Lamartine, apresenta os elementos essenciais que caracterizam o espaço, como os açudes, a agricultura, a pecuária, elementos de preenchimentos dos espaços, construídos pelo homem. Uma produção escrita a partir da natureza para o homem, mostrando que o autor possui múltiplas facetas de análises para nossos estudos. Um sujeito plural que desempenha em seus estudos e trabalhos as funções mais variáveis como historiador, etnógrafo, agrônomo, sociólogo, entre outros.

Neste sentido, Oswaldo Lamartine, escreve a historiografia seridoense por meio de uma história ambiental, são relações culturais e ambientais que constroem a paisagem sertaneja, desde o início da ocupação conjuntamente com as interferências feitas pelo homem, ressaltando a importância da caatinga e suas significações. Os sertões do Seridó de Oswaldo Lamartine apresentam-se por meio de sua natureza e das relações que o homem desenvolveu com esta, apesar de que podemos ter diferentes ligações que nos permitem dialogar com outros estudos, por isso a importância dessa pesquisa, para trabalhamos diferentes concepções e versões sobre os sertões do Seridó.

 

Referências bibliográficas

AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, p. 145-151.

 

ARAUJO, Natália Raiane de Paiva. Pelas memórias de Oswaldo Lamartine: artes de fazer nos “Sertões do Seridó”. Caicó, 2013.

 

ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertões: entre a história e a memória. Bauru, SP: EDUSC, 2000.

 

CASTRO, Marize Lima de. Areia sob os pés da alma: uma leitura da vida e obra de Oswaldo Lamartine de Faria. Natal, 2015.

 

DRUMMOND, José Augusto. A História Ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 177-197.

 

FARIA, Oswaldo Lamartine de. Notas sobre a pobreza. In: Diário de Pernambuco: suplemento literário. Recife: domingo, 16 de maio de 1948. p. 1 – 5.

 

FARIA, Oswaldo Lamartine de. Sertões do Seridó. Brasília: Senado Federal, 1980.

 

FARIA, Oswaldo Lamartine de. Notas de carregação. Natal: Scriptorim Candinha Bezerra; Fundação Hélio Galvão, 2001.

 

FARIA, Oswaldo Lamartine de. Os açudes dos sertões do Seridó. Natal: Sebo Vermelho, 2012.

 

FARIA, Oswaldo Lamartine de. ABC da pescaria de açudes no Seridó. Natal: Sebo Vermelho, 2015.

 

FARIA, Oswaldo Lamartine de. Encoramento e arreios do vaqueiro no Seridó. Natal: Sebo Vermelho, 2016.

 

NEVES, Erivaldo Fagundes. Sertão como recorte espacial e como imaginário cultural. Politeia, Vitória da Conquista, v. 3, n. 1, p. 153-162, 2003.

 

PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da história ambiental. Estudos Avançados 24 (68), 2010.

 

PÁDUA, José Augusto; CARVALHO, Alessandra Izabel de. A construção de um país tropical: apresentação da historiografia ambiental sobre o Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.27, n.4, out.-dez. 2020, p. 1311-1340.

 

SANTOS, Evandro dos. Estilo e temporalidades na escrita de Oswaldo Lamartine de Faria: em busca do tempo perdido no Seridó potiguar. EXPEDIÇÕES: TEORIA DA HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA, v. 9, p. 96-109, 2018.

 

SILVA, Maria Samara da. Lugares de vida a vida, a vida nos espaços: Oswaldo Lamartine de Faria e a perspectiva da experiência (1940-1970). Natal, 2019.

 

WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Tradução José Augusto Drummond. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 198-215.

 

 

Recebido em 29/11/2021.

Aceito em 19/12/2021.

Creative Commons License  Este trabalho está licenciado sob a licença Creative Commons Attribution 4.0 International License (CC BY 4.0)

 



[1] Mestranda em História dos Sertões – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN-CERES-Campus de Caicó). Brasil. ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/9012358019406831. E-mail: natalia_raianejprn@hotmail.com | https://orcid.org/0000-0003-2904-0244  

[2]  Doutor em história – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor adjunto de Teoria e História da Historiografia – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Brasil. ID Lattes: http://lattes.cnpq.br/7531766582443713. E-mail: evansantos.hist@gmail.com | https://orcid.org/0000-0003-2844-4810