Mediação pedagógica para crianças em situação de vulnerabilidade social: a extensão universitária em tempos de pandemia

 

Pedagogical mediation for socially vulnerable children: university extension in times of pandemic

 

Aline Fátima Lazarotto[1]

 


Resumo

Este artigo apresenta a experiência da extensão universitária no atendimento pedagógico durante a Pandemia causada pela covid-19. O objetivo do trabalho foi ofertar, para crianças em situação de vulnerabilidade e risco, atividades remotas síncronas, pedagógicas e interativas, articuladas a primeiros cuidados psicológicos e consolidar meios de acesso aos demais serviços do Sistema de Garantia de Direitos. Com atividades lúdicas permeadas pelo brincar foram desenvolvidas práticas extensionistas no atendimento de crianças em situação de vulnerabilidade social para ressignificar a brincadeira, promover aprendizagens e qualificar os processos de socialização durante o período de isolamento causado pela crise pandêmica. As experiências sinalizam a necessidade de ampliar políticas públicas que minimizem os efeitos provocados pelo fechamento das escolas e o agravamento das condições sócio econômicas de grande parte da população.

Palavras-chave: Pandemia; Infância; Educação.

Abstract

This article presents the experience of university extension in pedagogical care during the pandemic caused by covid-19. The objective of the work was to offer, for children in situations of vulnerability and risk, synchronous, pedagogical and interactive remote activities, articulated with first psychological care and consolidating means of access to other services of the Rights Guarantee System. With playful activities permeated by playing, extension practices were developed in the care of children in situations of social vulnerability to reframe play, promote learning and qualify the socialization processes during the period of isolation caused by the pandemic crisis. The experiences indicate the need to expand social policies that minimize the effects caused by the closing of schools and the worsening of the socioeconomic conditions of a large part of the population.

Keywords: Pandemic; Childhood; Education.

 


 

 

Introdução

 

O programa de Extensão Experiências do Brincar do curso de Pedagogia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), em Santa Catarina, por meio dos projetos “Pedagogia na rua” e “Brinquedoteca”, desenvolve ações comunitárias com o objetivo de ressignificar brincadeiras nos diversos espaços e contextos, em um processo de mobilização cultural para a formação humana, emancipatória e cidadã dos sujeitos. Por meio de atividades lúdicas entremeadas por brincares, o programa dialoga com a comunidade, na tentativa de interligar o brincar com os diferentes saberes dos indivíduos e assim permitir a experiência humana de socialização.

O objetivo deste artigo é socializar práticas realizadas pelo projeto de extensão “Pedagogia na rua”, praticada durante o ano de 2020 quando fomos afetados pela pandemia da covid-19. O período pandêmico impactou significativamente a vida de milhares de crianças brasileiras, principalmente com a suspensão das atividades escolares, o que agravou de modo significativo o cotidiano de meninos e meninas para quem a escola se constitui em espaço privilegiado para a garantia de seus direitos e acesso às políticas públicas. Nessa direção, o trabalho apresenta ações extensionistas, realizadas em 2020, as quais buscaram minimizar os efeitos causados pela pandemia, em relação à aprendizagem de crianças em situação de vulnerabilidade social.

No desafio de promover a indissociabilidade, o artigo destaca o projeto de extensão Pedagogia na Rua que, desde 2006, realiza experiências extensionistas junto à comunidade, na tentativa de conferir sentido às ações realizadas pelo curso de Pedagogia da UNOCHAPECÓ. Neste tempo o projeto atendeu aproximadamente duas mil crianças e jovens por ano em atividades que envolviam o brincar e práticas lúdicas. As discussões em torno da valorização do brincar e a ressignificação de brinquedos e brincadeiras foi o que motivou docentes desse curso a pensarem propostas de articulação entre ensino, pesquisa e extensão, com o objetivo de realizar uma prática educativa com vistas à emancipação dos sujeitos, pois eles acreditam na formação enquanto espaço privilegiado para transformações concretas da realidade.[1]

Ao longo dos anos de atuação, o projeto de extensão Pedagogia na Rua vem tecendo novos fios junto à comunidade local e possibilitando aos futuros pedagogos formação que ultrapassa a sala de aula. Atualmente o projeto tem como objetivo: promover experiências do brincar em diferentes espaços da comunidade, ressignificando a cultura lúdica da brincadeira e significando jogos, brinquedos e brincadeiras clássicas. As ações buscam promover a valorização da cultura local e regional de comunidades em situação de vulnerabilidade, comunidades que nem sempre têm acesso a cultura e lazer, devido às condições econômicas e sociais em que se encontram.

Além disso, o projeto procura desenvolver ações envolvendo crianças na garantia de seus direitos, principalmente o direito de “ser criança”. Assim, o Pedagogia na Rua constitui-se em ação itinerante de intervenção educativa que possibilita aos diferentes sujeitos apropriar-se de novos saberes, experiências, habilidades e, dessa forma, socializar as atividades com a comunidade.

No curso de pedagogia o projeto de extensão é pensado a partir do conceito de indissociabilidade, o qual se destaca como caminho privilegiado para dar sentido aos fazeres pedagógicos. Nesta direção:

A extensão é uma espécie de ‘tempero ético’ que pode dar sabor de vida ao ensino e à pesquisa visando a se ter uma universidade socialmente referenciada nos princípios da justiça, da igualdade e dignidade. Faço a alusão ao ‘tempero’ porque ele remete à sensação do ‘sabor’, uma palavra que, na língua grega, tem a mesma origem da palavra ‘saber’. (SAMPAIO, 2005, p. 104, grifos do autor).

 

Com este desejo de articular as diferentes ações entre ensino, pesquisa e extensão no ano de 2020, frente a um cenário marcado pelos impactos causados pela pandemia, o projeto Pedagogia na Rua articulou as ações ao Programa Tamo Junto, o qual nasce a partir da iniciativa da Rede de Atendimento à Infância e Adolescência (RAIA), vinculado ao curso de psicologia da UNOCHAPECÓ que identificou problemáticas em relação a esse público no município de Chapecó, no oeste de Santa Catarina.[2]

Após a elaboração de um diagnóstico junto à Secretaria de Assistência Social e Cultural do município de Chapecó, o projeto RAIA reúne um coletivo de cursos da Unochapecó para dialogar e articular ações de ensino, pesquisa e extensão. Desse coletivo surge o Programa “Tamo Junto: cuidado integral e arte”[3].

O Programa estabelece os seguintes objetivos:

Objetivo geral: ofertar, para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e risco, atividades remotas síncronas integradas a primeiros cuidados psicológicos e consolidar meios de acesso aos serviços do Sistema de Garantia de Direitos. Objetivos Específicos: superar lacunas na proteção social e atenção psicossocial a crianças e adolescentes, decorrentes da situação de isolamento social; Ofertar a crianças e adolescentes, em situação de vulnerabilidade, recursos que promovam autonomia e enfrentamento criativo de eventos estressores vivenciados, em diálogo com suas famílias; Promover a estreita comunicação e ação coordenada entre serviços de cultura, educação, saúde e assistência social, na atenção a demandas típicas e emergentes da Infância, adolescência e família; Incentivar a escuta ativa em ambientes de acolhimento, com recursos de proteção ofertados no espaço doméstico; Identificar demandas à RAIA, referentes a ação intersetorial, que resultem em efetividade da proteção integral e da garantia de direitos; Consolidar plataforma remota de acesso ao Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente. (Relatório Programa Tamo Junto, 2020, p. 4).

 

O Tamo Junto tem como público alvo a rede de atendimento à infância e adolescência, assim como seus familiares quando em situação de risco com violação de direitos e vulnerabilidade. O programa foi criado em março de 2020 para atender as demandas advindas do município de Chapecó-SC. Foram adquiridos, além de uma plataforma própria, celulares e chips com internet gratuita, repassados para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

Durante o ano de 2020, em parceria com o Tamo Junto, o Pedagogia na Rua desenvolveu ações que buscavam o atendimento semanal síncrono, voltado a socialização e aprendizagem de um grupo de 24 crianças, entre 8 e 12 anos que utilizavam a plataforma do programa. O objetivo foi ofertar atividades remotas síncronas, pedagógicas e interativas, articuladas a primeiros cuidados psicológicos, visando consolidar meios de acesso aos demais serviços do Sistema de Garantia de Direitos.

O Projeto Pedagogia na Rua caracteriza-se como uma atividade itinerante e pode ser realizado em diferentes espaços da comunidade, como escolas, praças e centros comunitários. As atividades são primeiramente planejadas entre coordenador do projeto, bolsistas e diálogo com a comunidade por meio de encontros pré-agendados. Além dos bolsistas permanentes, o projeto conta com a participação de estudantes voluntários, e de diferentes cursos da universidade tanto do ensino quanto da pesquisa.

É objetivo do projeto desenvolver ações para intervir com diferentes sujeitos, entre eles: extensionistas, comunidade, estudantes, docentes. O fio condutor das ações extensionistas perpassa os princípios da pesquisa-ação. Deste modo, as práticas se estruturam a partir do exercício pedagógico configurado como uma “[...] ação que cientificiza a prática educativa, a partir de princípios éticos que visualizam a contínua formação e emancipação de todos os sujeitos da prática.” (FRANCO, 2005, p. 489). Nesse contexto, privilegia-se sempre a intervenção planejada e participativa junto às comunidades para que, dessa forma, o diálogo entre os pares esteja sintonizado com as atividades das comunidades. São utilizados como instrumentos para coleta: registros e análises da observação e o diário de campo.

As práticas extensionistas acontecem regularmente de forma presencial. Entretanto, no ano de 2020, por conta do cenário pandêmico as atividades presenciais foram suspensas o que levou o projeto a articular ações de forma remota e a adaptar-se ao novo formato de prática pedagógica. Para isso, foram utilizados os diagnósticos realizados pelo programa Tamo Junto e a plataforma desse serviço, o que garantiu organização dos atendimentos e suporte às crianças semanalmente. Além disso, durante aquele período, foi possível estabelecer vínculo com as demandas da região.

De acordo com os dados do diagnóstico, as crianças necessitavam de atendimento educacional, por conta do distanciamento causado pelo fechamento das escolas. As dificuldades das crianças em relação ao acesso aos meios tecnológicos, assim como acesso à internet, impossibilitavam o acompanhamento das atividades remotas organizadas pelas instituições educativas. Com isto, o acesso à educação escolar tornava-se a cada dia mais distante.

Diante desse cenário, o Pedagogia na Rua organizou encontros remotos síncronos, com o objetivo de mediar as atividades pedagógicas entre a escola e as famílias das crianças atendidas. Os atendimentos aconteceram, semanalmente, de maio a dezembro de 2020 e duravam em torno de uma a duas horas. Os atendimentos foram organizados levando em consideração o formato remoto a partir de estratégias ludopedagógicas que envolvessem principalmente o incentivo à leitura e o acompanhamento das atividades que a escola enviava para as crianças. Todas as práticas pedagógicas tiveram como eixo norteador o brincar.

Os trabalhos foram organizados por docente e bolsistas do curso de Pedagogia. As atividades tiveram a parceria do estágio Básico em Psicologia Social, do curso de Psicologia, com acolhimento inicial, promovendo assim um espaço de promoção à saúde e identificação de demandas. Além disso, a equipe realizou visitas domiciliares para entregar material didático, brinquedos e outros recursos para a realização das atividades remotas síncronas com as crianças.

 

Infâncias e pandemia

O ano de 2020 é marcado por grande crise sanitária causada pela pandemia da covid-19. Houve fechamento das principais instituições sociais e isolamento social como forma de conter a propagação do vírus. Os impactos desse contexto afetaram principalmente as pessoas mais vulneráveis e gerou aumento significativo das desigualdades sociais. Além disso, tivemos agravamento da crise econômica com desemprego e alargamento das desigualdades sociais, por consequência, crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade foram os mais atingidos.

Outro agravante do isolamento social foi o aumento das violências contra crianças. De acordo com dados publicados no início da pandemia em relatório da organização não governamental (ONG) Agenda Brasil, estimava-se que 85 milhões de crianças e adolescentes, entre 2 e 17 anos, poderiam somar-se às vítimas de violência física, sexual e emocional naquele período, situação decorrente do confinamento domiciliar. Para muitas crianças e adolescentes ficar em casa significou exposição frente aos agressores.[4]

De acordo com o relatório da FIOCRUZ e IFF (2020, p. 30), este número representa um aumento na média anual das estatísticas oficiais que podem variar entre 20% a 32%, sendo que quando estas crianças já sofrem violências intrafamiliar as vulnerabilidades aumentam sobremaneira.

Com o fechamento das escolas e o confinamento de crianças e adolescentes, outro fator que contribuiu para a exposição e a vulnerabilidade em relação às violências foi a diminuição do número de notificações, ou seja, as denúncias. Uma pesquisa realizada no Rio Grande do Sul indica o aumento das violências contra a população infantojuvenil no período pandêmico e conclui que o ambiente escolar favorece a identificação de casos de violência, bem como auxilia o encaminhamento dos casos a profissionais com potencial no cuidado, manejo adequado e encaminhamento aos serviços de saúde e proteção social (LEVANDOWSKI et al., 2020, p. 9).

Além da exposição à violência, a evasão escolar constituiu-se em realidade para muitas crianças e adolescentes que não tiveram acesso às aulas remotas instituídas pela maioria das escolas durante a pandemia. Dados do documento “Impactos Primários e Secundários da COVID-19 em Crianças e Adolescentes”, publicado pelo UNICEF (2020), afirmam aumento da evasão escolar resultante da falta e da qualidade de acesso aos serviços digitais, o que implicou na evasão e reprovação de alunos brasileiros.

A partir desse cenário fica evidente o quanto a escola, como um direito de crianças e adolescentes, desempenha papel importante na garantia dos direitos e acesso às políticas sociais. O fechamento das escolas implicou no aumento das vulnerabilidades sociais em relação à população infantil. Nessa direção o objetivo de atender as crianças de forma remota e síncrona, em atividades mediadas pelo brincar foi também uma tentativa de aproximação ao cotidiano delas e contribuir para o encaminhamento aos serviços de saúde e proteção. Com isso, buscamos ressignificar as práticas escolares para além da entrega das atividades remotas, considerando que: “O objetivo primordial da escola não deveria ser conseguir resultados previstos, completar o programa, fazer provas.” (TONUCCI, 2020, grifo nosso).

Com o desejo de provocar a aproximação com as crianças, ouvi-las e atendê-las em seu direito básico que é a educação, as práticas realizadas foram mediadas por brincadeiras, entendendo-se o brincar como um direito. Além disso, percebeu-se que durante o confinamento em casa as crianças tiveram suas atividades de socialização e interação social prejudicadas, o que gerou efeitos negativos no desenvolvimento físico e mental.

Trazer as brincadeiras como eixo norteador das práticas educativas torna-se urgente em tempos de esvaziamento de experiências significativas. Principalmente no contexto pandêmico no qual as crianças ficaram ainda mais distantes uma das outras, com tempos e espaços reduzidos para brincar e socializar. Uma das estratégias da mediação pedagógica a partir do brincar foi para evidenciar a experiência do brincar como um caminho para superar o isolamento social e ampliar os processos educativos organizados de forma remota.

Nessa direção o projeto de extensão Pedagogia na Rua buscou organizar ações em que o brincar fosse fio condutor de experiências significativas, desse modo práticas educativas foram reorganizadas de forma lúdica junto das crianças que participavam do projeto. Buscaram-se experiências de socialização de forma remota para romper com práticas tão mecanicistas de apenas “fazer pelo fazer”, mas dar sentido e significado para as próprias manifestações infantis para de alguma forma repensar a realidade que, muitas vezes, apresenta-se como embrutecedora nas relações sociais.

Amparando-se no conceito de experiência de Benjamin (2002), entende-se a experiência como uma forma de apropriação social e individual capaz de permitir uma relação dialética entre o sujeito e o mundo, em um movimento de transformação simultâneo. Além desse autor, valemo-nos das contribuições de Larrosa, ao definir experiência destaca:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. (LARROSA, 2002, p. 2).

 

Com base em um contexto resumido muitas vezes em realidades que pouco valorizam espaços de interação e socialização, o autor evidencia a “pobreza de experiência” como identidade cultural dos indivíduos. Pensar nesse fato é pensar nas possibilidades de enfrentamento que, principalmente, a educação precisa fazer para constituir práticas sociais mais humanas que possibilitem aos sujeitos uma vida repleta de experiências, não uma experiência reduzida a acontecimentos ou experimentos, mas algo que realmente transforme a subjetividade dos sujeitos.

Larrosa (2002) define que muitas vezes por falta de tempo, nesta vida sempre frenética, com trabalho demasiado e, principalmente, o excesso de informação, o sujeito acaba por consumir experimentos e não o experimenta no sentido profundo da experiência. Como destaca o autor a experiência deve ser aquilo que me passa, algo irredutível, que fica e transforma.

Nessa corrente de pensamento é importante destacar um dos princípios da experiência que é a transformação e pensar na relação dela com a educação. Se compreendemos a educação enquanto prática social com o objetivo de mudar as condições concretas de vida enquanto instrumento de emancipação humana, podemos fazer dos espaços de formação algo efetivo para legitimar transformações sociais.

Ao propor as atividades brincantes como possibilidades de ressignificar os processos de socialização, compreende-se a experiência relacionada à formação. Um processo que tem como elemento central a sensibilidade e a alteridade. Esse foi o desafio das ações extensionistas, desenvolver uma prática remota a partir das brincadeiras e valorizar o brincar como um elemento fundamental para o enfrentamento de realidades sociais desiguais, muitas vezes desumanas.

Este é o enfrentamento que a educação, em tempos de pandemia, precisa reforçar nos grupos e, principalmente no espaço escolar, ainda um lugar privilegiado para proteção integral da infância. Para Kramer (2000, p. 6), o desafio posto à educação deve ser minimizar os efeitos acerca de uma população vulnerável. Já no fim do século passado a autora chamava a atenção para questões que se fazem presentes nos dias atuais:

Como defender e atuar numa perspectiva de formação cultural crítica, sem perder de vista que a cultura se construiu e fortaleceu como monumento de barbárie? Como manter a utopia e a esperança de tecer solidariedade, generosidade e justiça social, contra a discriminação do outro, pelo reconhecimento das diferenças de todos os tipos, a não ser escovando a história a contrapelo, ou seja, na direção contrária à dominação, à cultura legitimada como correta, contra a opressão? A liberdade do diálogo está se perdendo ou se perdeu? Como recuperá-la ou refundá-la? (KRAMER, 2000, p. 6).

 

Ao promover o diálogo permanente entre a formação do pedagogo e a comunidade a qual ele está inserido, por meio da extensão universitária almeja-se intervir para que os profissionais da educação estejam próximos dos sujeitos quando desenvolverem suas práticas educativas, assim como destaca Paulo Freire (2004) reconheçam a educação como experiência especificamente humana e uma forma de intervenção no mundo, principalmente no tempo presente.

 

A mediação pedagógica nas atividades remotas: nuances da prática

Durante os meses de maio até dezembro de 2020 foram desenvolvidos, semanalmente, encontros remotos e alguns presenciais com o grupo de crianças atendidas. Ao todo foram 24 crianças entre 8 e 12 anos que acompanharam e participaram de práticas pedagógicas realizadas pelo projeto Pedagogia na Rua. Partindo-se do brincar, o objetivo foi ressignificar as interações sociais afetadas pelo isolamento social, além de ofertar, para crianças em situação de vulnerabilidade e risco, atividades remotas síncronas pedagógicas e interativas, articuladas a primeiros cuidados psicológicos e, assim, consolidar meios de acesso aos demais serviços do Sistema de Garantia de Direitos.

As crianças atendidas foram indicadas com base no diagnóstico realizado pelo projeto Tamo junto. Elas apresentavam características diferentes, como: “dificuldades de aprendizagem”, “falta de interação” em relação às atividades remotas, distanciamento da escola. Algumas estavam matriculadas nas unidades escolares, porém não estabeleciam contato com as instituições. Grande parte das crianças advinha de famílias de baixa renda e encontravam-se em situações de vulnerabilidade social.

Um exemplo que nos chamou atenção foi a situação de uma criança transexual, indicada pela escola por apresentar “dificuldade” em relação a aprendizagem. Entretanto conhecendo a criança e acompanhando suas manifestações durante os atendimentos percebemos que ela acompanhava os trabalhos remotos e tinha apoio do grupo familiar em relação às entregas das atividades solicitadas pela escola. Inclusive, a criança era participativa nos encontros remotos e mostrava-se entusiasmada em relação às atividades pedagógicas desenvolvidas. Provavelmente a indicação aconteceu em decorrência do contexto em que a criança se encontrava ao reafirmar sua identidade de gênero.

Como as atividades realizadas pelo projeto foram guiadas pela experiência lúdica do brincar, algumas manifestações das crianças chamavam atenção. O envolvimento na realização das brincadeiras e o entusiasmo nas atividades de interação com as outras crianças nas atividades síncronas. Inicialmente, as crianças em todos os atendimentos foram convidadas a falar e expressar suas vivências, desejos, sentimentos e uma das estratégias para o acolhimento inicial era permitir que elas se reconhecessem naquele espaço.

Durante os atendimentos era perceptível que algumas crianças dividiam o tempo da mediação com outras atividades. Na visita domiciliar, observou-se que algumas delas eram responsáveis por tarefas domiciliares, e com o cuidado de irmãos mais novos, incluindo bebês, enquanto o responsável estava no trabalho. Essas foram realidades percebidas também em outros atendimentos encaminhados para serviços de proteção da criança e do adolescente veiculados ao programa.

Por não apresentarem condições para realização das atividades em casa, algumas crianças tiveram acesso às atividades síncronas nas unidades de atendimentos da comunidade. Esses locais serviram como espaços importantes para a realização dessas ações, tornaram-se parceiras na realização de intervenções e até mesmo como ambiente para os atendimentos presenciais, quando fosse necessário.

Além das atividades síncronas, também realizamos intervenções presenciais nas comunidades atendidas, seguindo os protocolos estabelecidos pelo município em relação aos cuidados contra a covid-19. Uma das atividades realizadas foi o passeio pelas ruas dos bairros. Usando fantasias de personagens lúdicos, as bolsistas passavam pelas ruas e em pontos estratégicos recitavam poesias e cantigas para as crianças que, atentamente, observavam as personagens. Nessa ação foi possível perceber número significativo de crianças, de diferentes idades, brincando nas ruas. Isso evidenciou que, mesmo com as escolas fechadas, as crianças das comunidades observadas transitaram nos espaços externos sem nenhum protocolo de cuidados contra a covid-19.

Como mencionado anteriormente, entre as ações desenvolvidas pelo projeto Pedagogia na Rua estiveram as visitas domiciliares, com o objetivo de atender as necessidades pedagógicas e também para a manutenção dos aparelhos eletrônicos que as crianças haviam ganhado para acompanhar as atividades. Nesses momentos, procuramos conversar e ampliar as relações entre as famílias para garantir a permanência das crianças nos atendimentos. Um fator importante das visitas foi conhecer um pouco sobre os diferentes contextos das crianças para pensar no grupo de atendimento a respeito das estratégias realmente efetivas para o público atendido.

Todas as semanas as atividades realizadas tinham como eixo norteador o brincar. Contação de histórias, trava línguas e alguns procedimentos ludopedagógicas foram desenvolvidas nos encontros remotos. Abaixo, em destaque, a imagem demonstra um dos atendimentos:

Imagem 1: Atividade mediação pedagógica: Jogo Lúdico[5]

Fonte: Programa Experiências do Brincar.

 

Uma das estratégias utilizadas com maior frequência nos atendimentos foi a relacionada à leitura e escrita. Nos primeiros encontros evidenciaram-se dificuldades em relação à leitura por parte das crianças. Algumas relataram que não tinham livros em casa e que acessavam a leitura apenas na escola. Diante disso, a partir dos primeiros encontros, produzimos uma bolsa literária para fortalecer a prática da leitura em casa. A bolsa foi entregue de forma presencial, uma para cada criança com um livro e um jogo pedagógico. Nos atendimentos remotos mostrávamos os livros e jogos e cada criança escolhia um para o empréstimo. Quando realizávamos as visitas domiciliares fazíamos as trocas, conforme as escolhas das crianças.

Essa atividade foi significativa para o andamento das atividades. Durante a conversa inicial as crianças contavam como tinham realizado os jogos e narravam suas percepções em relação as histórias. Percebemos que, além das crianças, os livros e os jogos foram compartilhados pelo grupo familiar. Inclusive, em alguns atendimentos, os responsáveis também relatavam entusiasmados os momentos de trocas durante o jogo ou a leitura.

Durante a leitura, jogos e brincadeiras, as crianças e os adultos ressignificam vivências e aprendizados. Entende-se aqui a brincadeira enquanto processo de inserção e compreensão de mundo, descobertas e autorrealizações, em conjunto com outras atividades que venham a se realizar no dia a dia. Na brincadeira, crianças e adultos criam, produzem conhecimento, experiências e novas formas de perceber o que os cercam.

A seguir apresentamos a imagem demonstrativa da produção dos kits pedagógicos, outro material organizado para qualificar a realização das atividades remotas e potencializar as práticas pedagógicas nos atendimentos. Os kits pedagógicos foram organizados com os estudantes voluntários que desenvolveram ações no projeto de extensão Pedagogia na Rua.

Imagem 2: Kits Pedagógicos

Fonte: Programa Experiências do Brincar.

Os kits continham material escolar (caderno, lápis, borracha, lápis de cor, canetas hidrocor), pois durante o atendimento remoto percebíamos que as crianças não tinham materiais básicos utilizados cotidianamente nas atividades escolares. Além desses, cada voluntário doou para o kit um jogo pedagógico. Cada criança recebeu um kit e ainda foram entregues, nas atividades de “Passeio pelo bairro”, mais kits para outras crianças que circulavam ou eram vizinhas do público atendido pelo projeto.

Durante as entregas e, principalmente, ao observar o envolvimento das crianças durante as atividades voltadas à leitura e ao brincar, foi possível perceber o envolvimento e o compromisso delas em relação às atividades organizadas pelo projeto. Foi comum identificar a preocupação das crianças em acessar a aula e a atenção direcionada às atividades lúdicas organizadas de forma remota, na maioria das vezes sem mediação de um adulto, até porque nos atendimentos a maioria das crianças não tinham os responsáveis por perto.

Para a criança em situação de vulnerabilidade social o fechamento das escolas foi de certa maneira negativa, tanto para o seu desenvolvimento quanto para o acesso aos direitos básicos, como educação e proteção. As crianças relatavam a vontade de voltar para escola e poder encontrar os professores e interagir com os colegas. Além disso, fica evidente a necessidade que as crianças apresentam de socializar, pois o tempo de confinamento, para muitas, representava uma carga de responsabilidades que elas não devem ter.

O presente artigo buscou relatar nuances das vivências do projeto Pedagogia na Rua durante as ações desenvolvidas em um dos períodos mais difíceis do contexto pandêmico causado pela covid-19. O projeto aproximou-se das crianças para minimizar os efeitos causados pelo isolamento social e principalmente pelo fechamento das escolas, pois reconhecemos que para a criança em situação de vulnerabilidade a escola é o lugar privilegiado para a sua proteção e desenvolvimento integral.

 

Considerações

Em meio ao contexto pandêmico, com o fechamento das escolas e a emergência do isolamento social em função da crise sanitária causada pelo novo coronavírus (SARS-COV-2), causador da covid-19, foi necessário repensar as ações extensionistas na universidade. Para dar continuidade ao compromisso universitário com a comunidade regional, novas práticas foram elaboradas com o intuito de atender as demandas e minimizar os efeitos causados pelo fechamento das intuições educativas. A possibilidade de articular as atividades do projeto Pedagogia na Rua com o projeto Tamo Junto foi umas das estratégias para manter o diálogo com a comunidade e garantir mudanças qualitativas diante do cenário atual.

As vivências durante o ano de 2020, nos diferentes atendimentos realizados pelo Pedagogia na Rua, junto ao grupo de crianças atendidas, reafirmaram a necessidade de ampliação de políticas sociais que atendam meninos e meninas em situações de vulnerabilidade social e a emergência dessas políticas em crises pandêmicas como a que vivemos.

Considera-se que as práticas realizadas na extensão são indicadores para fomentar discussões em torno da garantia dos direitos das crianças e promoção de práticas de proteção destes sujeitos, principalmente em relação ao papel que a escola estabelece para a garantia e proteção das crianças. A escola é lugar privilegiado para a infância, um direito das crianças, por isso faz-se emergente repensar as práticas pedagógicas para que os efeitos causados pela pandemia não sejam problemas a longo prazo.

 

 

Referências bibliográficas

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UNOCHAPECÓ – Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Vice-Reitoria de

Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação. Plano de Desenvolvimento da Extensão. Chapecó: UNOCHAPECÓ, 2010.

Recebido em 30/09/2021.

Aceito em 08/11/2021.

 



[1] Doutora em Educação. Docente do curso de Pedagogia da Unochapecó. Brasil. E-mail: alinel@unochapeco.edu.br | https://orcid.org/0000-0001-9766-293X



[1] Conforme Plano de desenvolvimento da extensão (2010).

[2] A RAIA é uma rede de atendimento à infância e Adolescência. É uma iniciativa do Ministério Público de Santa Catarina, Comarca de Chapecó em articulação com a Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ) e do executivo municipal e políticas de Assistência Social, Educação e Saúde. O Objetivo geral da RAIA é discutir o atendimento à infância e adolescência para a construção de práticas profissionais articuladas, interdisciplinares e intersetoriais, por meio de relações construtivas, promovendo ações que facilitem o desenvolvimento saudável, potencializando capacidades afetivas, cognitivas e sociais. Para saber mais acessar: https://www.unochapeco.edu.br/rede-atendimento-infancia-adolescencia.

[3] O projeto na íntegra pode ser acessado em: https://drive.google.com/file/d/1jMwrR1u0nOCUg1P1t0uNlSCqiy4zp1yb/view?usp=drivesdk.

[4] Sobre o relatório ver em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-05/violencia-contra-criancas-pode-crescer-32-durante-pandemia.

[5] Respeitando as prerrogativas do ECA, optamos em não expor as imagens das crianças nos atendimentos.

 

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