História global à prova: um balanço sobre críticas e proposições historiográficas

 

Proof global history: a balance on historiographical criticism and propositions

 

 

Gil Karlos Ferri[1]

 

 


Resumo

A história global encontra-se em constante disputa acadêmica e representa um espaço para experimentações narrativas, temáticas e teórico-metodológicas. Através de revisão bibliográfica sobre o tema, este artigo objetiva apresentar um balanço acerca das críticas e proposições de autores e autoras das áreas da história intelectual e cultural para o campo da história global. (Re)conhecer as críticas ao giro global pode auxiliar na superação de suas fragilidades historiográficas e favorecer o aprimoramento de pesquisas que visam contemplar as conexões e interações multiníveis entre temas, espaços e sujeitos.

Palavras-chave: História Global; Historiografia; Balanço propositivo.

Abstract

Global history is in constant academic dispute and represents a space for narrative, thematic and theoretical-methodological experiments. Through the bibliographical review on the subject, this article aims to present a balance about the criticisms and propositions of authors from the areas of intellectual and cultural history for the field of global history. To recognize the criticisms of the global turn can help to overcome its historiographic weaknesses and favor the improvement of research aimed at contemplating the multilevel connections and interactions between themes, spaces and subjects.

Keywords: Global History; Historiography; Propositional balance.


 

 

 

Introdução

 

Definida de múltiplas maneiras – ora como campo, ora como método, ora como objeto de pesquisa – a história global tem atraído a atenção dos pesquisadores que buscam ultrapassar as fronteiras tradicionais em seus estudos históricos. Desde seu despontar, na virada do século XXI, a história global vem ganhando espaço entre os historiadores acadêmicos e se estabelecendo nos departamentos de História de diversas universidades.[2] Entretanto, assim como todas as tendências na historiografia, sejam elas mais ou menos embasadas em rígidas teorias e metodologias, a história global não é uma receita pronta para ser utilizada em quaisquer temas de pesquisa. Por isso, a reflexão sobre suas origens e engajamentos, bem como suas potencialidades e fragilidades, pode favorecer uma crítica mais propositiva para o desenvolvimento de pesquisas neste campo.  

Partindo da observação do historiador John-Paul Ghobrial de que “a história global tem sido um campo em busca de sua alma” (GHOBRIAL, 2019, p. 01), a gênese desse campo ainda é incerta e passível de contra-argumentações. Para fins práticos, podemos situar seu advento após 1950, no contexto do colapso dos impérios europeus e a demanda de narrativas que dessem conta das nações pós-coloniais e suas próprias histórias. A partir deste cenário-mundo alguns historiadores e intelectuais passaram a prestar mais atenção aos agentes históricos que estavam abaixo do nível do estado. Assim, sobretudo depois da década de 1990, o campo da história global passou a ser configurado e considerado como uma resposta historiográfica às mudanças conjunturais da sociedade na virada do século XX para o século XXI (DRAYTON; MOTADEL, 2018, p. 05).

Por uma análise do contexto político e intelectual que vem proporcionando uma inflexão historiográfica em direção ao “global”, o historiador Henrique Espada Lima destaca que:

 

O interesse corrente por um recorte mais amplo se desenvolve em um ambiente intelectual que alguns comentadores percebem como saturado pela atenção a contextos desconectados, temas dispersos, sujeitos sociais fragmentados e histórias locais. Em oposição a essa “história em migalhas”, uma atitude intelectual que enfatiza as conexões e adota uma perspectiva de larga escala apresenta-se como um antídoto aos excessos de uma história social e cultural que parece ter abandonado qualquer ambição de abordar de modo sintético e amplo a realidade social no tempo (LIMA, 2015, p. 05).

 

Certamente, incontáveis são os fatores conjunturais que propiciam a adesão ou o malogro de determinadas correntes entre os historiadores. De qualquer modo, a observação de Henrique Espada Lima nos leva a perceber a história global como a ampliação teórica e metodológica que busca contemplar as conexões e interações multiníveis entre temas, espaços e sujeitos.

 

A configuração de um campo de estudos históricos com apelo global

A configuração de um campo global na História ainda é um processo em curso. Entretanto, alguns historiadores nos auxiliam a compreender os caminhos que a perspectiva global vem percorrendo em diversos lugares e sua aplicação em variados temas de pesquisa.

De acordo com os historiadores John Robert McNeill e Erin Stewart Mauldin, a história ambiental em escala global é construída sobre a base de trabalhos locais e pesquisas regionais, pois, a título de exemplo, nenhum historiador pode dominar os detalhes da história do solo ou da poluição da água em todos os lugares do mundo. A história global possui o mérito de resgatar a ambição da escrita da história em uma escala mais ampla. Assim, uma história com pretensão global é frequentemente um processo de costurar estudos de múltiplas perspectivas e escalas geográficas para elaborar uma narrativa ou uma análise das mudanças ecológicas a nível planetário (MCNEILL; MAULDIN, 2012, p. XVIII).

Para o historiador alemão Sebastian Conrad diversas abordagens concorrem simultaneamente com a história global no atual mercado acadêmico. Dentre as abordagens que tentam explicar as dinâmicas do mundo moderno, destacam-se os estudos comparativos, a história transnacional, a teoria dos sistemas-mundo, os estudos pós-coloniais e os conceitos de múltiplas modernidades. De modo geral, todas elas partilham um interesse em ir além da hegemonia interpretativa do Ocidente e das perspectivas estritamente nacionais, buscando explorar problemas a priori às fronteiras e se afastando do projeto de construção dos Estados-nação que permeou a academia nos últimos 150 anos (CONRAD, 2019, p. 53).

Os trabalhos produzidos no âmbito da história global têm valorizado as mobilidades. Porém, seguindo a ressalva de Sebastian Conrad, ao celebrar a mobilidade não podemos correr o risco de ignorar as estruturas que a controlam. O reconhecimento das estruturas de poder é fundamental para não se exagerar na atribuição de autonomia de ação a todos os que estão envolvidos nas trocas e interações (CONRAD, 2019, p. 91).

Para Sebastian Conrad, o slogan da história global pode ser definido em três palavras-chave: comparações, conexões e causalidades. Dentre essas, a palavra-chave mais associada ao termo “global” tem sido “conexões”. Um conjunto de termos afins também se tornou significativo, como: intercâmbio, relações, vínculos, entrelaçamentos, redes e fluxos. As conexões, analisadas em suas causalidades e contextos específicos, podem transmitir o grau de fluidez com que as interações ocorrem ao longo das fronteiras espaço-temporais. Sebastian Conrad também chamou atenção para o conceito de integração, o qual auxilia os historiadores a prestar atenção nas transformações estruturais em escala global – como tecnologias, impérios e biologia –, sempre analisando os contextos sistêmicos (CONRAD, 2019, p. 83 e 92). Neste ponto é interessante resgatar as críticas de Jürgen Osterhammel a Sebastian Conrad. Osterhammel considera Conrad um “historiador da globalização”. Sua definição de história global está relacionada ao estudo da mudança histórica em função das conexões espaciais. Esse problema toca os paralelos entre o conceito de integração – definido como mudança estrutural em escala global (Conrad) – e globalização (OSTERHAMMEL in TAMM; BURKE, 2018, p. 28).

A demanda por uma abordagem transnacional trouxe novos questionamentos, ampliando a compreensão de processos históricos que vão além das fronteiras convencionadas pelas políticas administrativas. De acordo com o historiador Jani Marjanen, os historiadores devem fazer perguntas que revelem como e até que ponto as fronteiras nacionais foram atravessadas no passado. Neste sentido, os estudos sobre migrações, comércio ou influências intelectuais podem fornecer descobertas interessantes (MARJANEN in STEAINMETZ et al., 2017, p. 142). No caso da história conceitual transnacional, uma de suas principais vantagens seria relativizar a visão universalista dos conceitos, demonstrando como a tradução de conceitos em novas línguas ou culturas políticas sempre implica uma reinterpretação e adaptação por parte dos agentes envolvidos neste processo. Entretanto, conforme a ressalva do próprio Marjanenm, devemos estar cientes que o reconhecimento de elementos transnacionais em conceitos atuais e do passado não elimina a primazia dos limites nacionais nos debates políticos e nas produções historiográficas. Ao tentarmos minar o nacionalismo metodológico buscamos entender melhor a mudança do papel do Estado-nação em diferentes períodos. O objetivo não é construir um mundo "sem nação", mas sim adicionar uma nova perspectiva de interpretação histórica (MARJANEN in STEAINMETZ et al., 2017, p. 143 e 153).

A perspectiva de uma interpretação histórica que valoriza as interações transfronteiriças foi defendida pelo historiador Sebastian Conrad nos seguintes termos:

 

A história global coloca-se fora deste enquadramento internalista ou genealógico. Presta particular atenção às interações e aos entrelaçamentos ao longo das fronteiras e admite o impacto das estruturas que ultrapassam os limites fronteiriços das sociedades individuais. Com isso, a história global reconhece a relevância causal de fatores que não se encontram ao alcance de indivíduos, nações e civilizações. Em última análise ela promete superar, por inteiro, a dicotomia entre o interno e o externo (CONRAD, 2019, p. 110).

 

Para além da pauta sobre fronteiras, a história global busca colocar em questão os próprios conceitos de globo e planeta. Neste sentido, o historiador indiano Dipesh Chakrabarty descreve duas escalas: a global, ligada à história dos impérios, do colonialismo e do capitalismo (processos que ganharam força nos últimos 5 séculos) e a planetária, a qual nos lança a uma longuíssima duração (podendo chegar a bilhões de anos) dentro da qual a espécie humana não é central. A primeira estaria ligada ao problema da sustentabilidade; a segunda, à habitabilidade. Para Chakrabarty, a questão mais imediata é que os seres humanos não são centrais para o problema da habitabilidade, mas a habitabilidade é central para a existência humana. Por isso, as concepções de planeta pairam no debate científico e filosófico “justamente porque a acentuação do global nos últimos setenta anos – sintetizada na expressão ‘a grande aceleração’ – expandiu o domínio do planetário para os intelectuais humanistas” (CHAKRABARTY, 2020, p. 47 e 50).

Tratando-se de um empreendimento intelectual em curso, a história global apresenta a possibilidade de intervenção dos historiadores no processo de configuração do campo. De acordo com os historiadores João Júlio Gomes dos Santos Júnior e Monique Sochaczewski, a história global favorece uma interpretação histórica que vai além das fronteiras nacionais e possibilita “provincializar” o Ocidente (SANTOS JÚNIOR; SOCHACZEWSKI, 2017, p. 483). O desafio metodológico de “desparoquializar” as histórias nacionais e “provincializar” o Ocidente busca conhecer e traçar relações com outras regiões do mundo, evitando o eurocentrismo e aplicando às sociedades não europeias uma igualdade de tratamento documental, defendendo uma “história em partes iguais”. Conscientes de que o espaço de vivência do pesquisador interfere na produção histórica, é necessário prestar atenção na intensidade que os conceitos são influenciados pelo contexto regional, cultural e intelectual. Nesse caso, as interpretações históricas de distintos contextos regionais e culturais, competindo entre si, podem ajudar a ampliar e desnaturalizar algumas questões e vícios atrelados aos lugares de fala dos pesquisadores (SANTOS JÚNIOR; SOCHACZEWSKI, 2017, p. 491, 493 e 494). Em cada empreendimento de pesquisa torna-se fundamental que se reconheça explicitamente o local a partir do qual se pensa o passado global.

Ao propor a provincialização da Europa nas interpretações históricas, a história global busca revisar narrativas antes consideradas hegemônicas. De acordo com o historiador Sanjay Subrahmanyam, ao invés de focar apenas na comparação, a história global apresenta-se mais fecunda por focar na conexão. As diversas partes do mundo são muito mais do que apresentam os simples modelos de difusão e ação-reação. Além do mais, reconhecer os agentes que estão em outros locais – mesmo que em condições desiguais – possibilita encará-los não apenas como contraponto para reflexões sobre a Europa, mas a pensar sobre a importância de seus próprios processos históricos (SUBRAHMANYAM, 2017, p. 14).

Além do embate dialético entre estudos de matriz europeia versus estudos decoloniais e pós-coloniais, há dinâmicas internalistas que contribuem na configuração da história global. Tendo em vista que parcela significativa dos historiadores e historiadoras globais provém dos area studies, torna-se também significativo pensar a história global como um guarda-chuvas que vem reorientando o engajamento desses trabalhos com debates mais amplos. Trata-se, a título de exemplo, de uma reflexão que está esparsa na obra da historiadora Margrit Pernau – ela mesma advinda dos area studies –, a qual externou essa visão em entrevista concedida ao II Simpósio de História Global da UFSC (PERNAU, 2020).

Na visão dos historiadores Richard Drayton e David Motadel, a história global está sob ataque, pois é acusada de negligenciar a história nacional e os small espaces por ser um perigoso projeto globalista e hegemonista de elite que foca exclusivamente em pessoas e coisas móveis. Entretanto, os historiadores argumentam que a história global está entrelaçada com as histórias das nações e dos lugares, bem como com indivíduos e espaços subalternos, pequenos e isolados. Além disso, a história global busca abordar diretamente a imobilidade e as resistências ao fluxo. Os autores reforçam que, em vez de nos afastarmos da história global, precisamos mais do que nunca lutar contra os mitos do passado imperial e nacional que frequentemente sustentam os populismos nacionalistas (DRAYTON; MOTADEL, 2018, p. 01).

Ainda de acordo com Richard Drayton e David Motadel, a história global possui dois modos principais de operação: o comparativo e o conectivo. Por um lado, a abordagem comparativa busca compreender os eventos em um lugar examinando suas semelhanças e diferenças com outro lugar. Por outro lado, a abordagem conectiva busca elucidar como a história é feita através das interações de comunidades separadas geograficamente ou temporalmente. A combinação desses modos possibilitaria o entrelaçamento de lugares pequenos e isolados com histórias mais amplas, possibilitando voz aos indivíduos forasteiros e/ou subalternos e representando uma alternativa aos pesos e medidas que os europeus imprimiram na interpretação do passado (DRAYTON; MOTADEL, 2018, p. 03).

Ao notarmos o quão autocentrada é a narrativa da história veremos a necessidade de reconhecermos o outro em nossas narrativas. O historiador Sanjay Subrahmanyam observou que o “auto” da história pode ser a família, o grupo étnico, a cidade ou a região de origem e, por fim – especialmente a partir de fins do século XVIII – o Estado-nação. Nessa construção autocentrada, história e memória são constantemente colocadas em atrito uma à outra, e o resultado é uma história geralmente escrita em estilo solene e moralizador, que tem a tarefa de “formar bons cidadãos” ou patriotas leais. De acordo com Subrahmanyam, se os historiadores não forem bastante cuidadosos, poderão facilmente se tornar os porta-vozes de um grupo ou posicionamento ideológico, de uma “identidade” (SUBRAHMANYAM, 2017, p. 223).

Ao apresentar suas considerações sobre o giro global na história cultural, o historiador Marek Tamm propõe que não se trata de estender a pesquisa histórico-cultural a todo o globo, mas sim de estudar todos os tipos de mobilidades transfronteiriças, tomando a integração estruturada como um contexto, mesmo quando não é o tópico principal. A história cultural global deve rastrear as trajetórias de textos, ideias, objetos, conceitos, práticas e pessoas em espaços multiculturais, prestando atenção aos mediadores culturais, vozes subalternas e enfatizando os processos de tradução, circulação, mediação e integração (TAMM, 2020, p. 139). Para Tamm, um dos objetivos da história cultural global poderia ser estudar as várias maneiras de fazer o mundo, considerando o global como parte de um imaginário cultural e ideológico (TAMM, 2020, p. 146).

 

Críticas e proposições para o aprimoramento da história global

Não podemos assumir a história global como um guia em nossas pesquisas considerando apenas seus benefícios. As inúmeras críticas que esse campo vem sofrendo podem servir para aprimorar suas perspectivas e métodos. Conforme observaram os historiadores Richard Drayton e David Motadel, de modo geral a história global ainda é dominada por historiadores anglófonos que “parecem incapazes ou indispostos” para ler histórias escritas em outras línguas (DRAYTON; MOTADEL, 2018, p. 08). Essa crítica, muito realista, nos serve de alerta para não corrermos o risco de apenas dialogarmos com autores que escrevem em inglês. Neste sentido, conforme observaram os historiadores João Júlio Gomes dos Santos Júnior e Monique Sochaczewski, é importante o investimento linguístico, pois, uma vez que historiador decida se ater a algum tópico específico, é essencial o domínio do idioma mais diretamente relacionado ao seu desenvolvimento na pesquisa (SANTOS JÚNIOR; SOCHACZEWSKI, 2017, p. 492).

O debate sobre quais fontes devem ser mobilizadas para embasar “um modo de fazer história global” permanece em aberto. O historiador John-Paul Ghobrial observou essa indefinição: alguns estudiosos consideram a história global um fórum para escrever sínteses em larga escala baseadas em literatura secundária, já outros propõem que a história global priorize um envolvimento próximo com filologia, o contexto local e, sobretudo, com as fontes primárias (GHOBRIAL, 2019, p. 08). Longe de optarmos por um estilo ou outro, acreditamos que tanto a análise de fontes primárias como a leitura do trabalho de outros historiadores e pesquisadores são úteis e complementares para diversas pesquisas.

O privilégio que as fontes escritas geralmente possuem em detrimento de outras fontes representa um desafio para buscarmos novos caminhos na produção historiográfica. Ao criticar a ênfase que é dada demasiadamente nos textos, a estudiosa da performance Diana Taylor concorda com o etnógrafo Dwight Conquergood ao citar sua crítica de que “só acadêmicos de classe média poderiam presumir alegremente que o mundo todo é um texto porque textos e leituras são centrais para o seu mundo” (CONQUERGOOD apud TAYLOR, 2013, p. 59). Nesta mesma linha crítica os historiadores Knud Haakonssen e Richard Whatmore alertam que os historiadores intelectuais não podem compreender a perspectiva do “outro” (como pobres, indígenas e oprimidos) estudando apenas os escritos publicados pelos proeminentes sujeitos da elite (HAAKONSSEN; WHATMORE, 2017, p. 19). Somando-se a essas críticas, os historiadores Javier Fernández Sebastián e Luis Fernández Torres nos chamam a atenção para a necessidade de os historiadores se questionarem propedeuticamente sobre a historicidade e temporalidade interna dos conceitos que manejam, sejam eles forjados por historiadores ou noções utilizadas por agentes do passado (SEBASTIÁN; TORRES, 2017, p. 172). Todas essas observações acerca do trabalho com fontes escritas nos levam a reexaminar o papel do encontro intercultural na circulação dos saberes. Questões sobre os agentes envolvidos na transmissão e apropriação de saberes podem elucidar se conexões atuais ou do passado foram de simples difusão e aceitação ou se houve um processo ativo de recepção e reconfiguração dos conhecimentos e habilidades circulantes (SMITH in MOYN; SARTORI, 2013, p. 88).

Ao trabalharmos com história global não podemos nos esquivar do fato que ela se encontra no centro de diversas polêmicas. Em sua aula inaugural proferida no Collège de France em 2013, o historiador Sanjay Subrahmanyam alertou seus pares que por vezes pensa-se na história global como “um desejo do imperialismo acadêmico americano de destruir a boa e velha tradição da história nacional e substituí-la por uma perspectiva imperial e imperialista” (SUBRAHMANYAM, 2017, p. 236). Neste sentido, Giovanni Levi também criticou “uma certa marca da história global” que se colocou em um pedestal, vendo-a como parte de um projeto político maior de hegemonia ocidental (GHOBRIAL, 2019, p. 21). Apesar de muitos considerarem como certo que esse campo funciona como antídoto contra a dominância do imperialismo acadêmico ocidental, também devemos considerar o contrário, e estarmos atentos aos projetos políticos implícitos nos jogos de poder da ciência histórica.

Outro aspecto que precisa ser considerado criticamente diz respeito aos limites econômicos que a história global impõe a muitos pesquisadores, inviabilizando pesquisas e podendo tornar esse um campo de historiadores privilegiados. Os historiadores Richard Drayton e David Motadel questionam quantos estudiosos fora de universidades ricas em países ricos têm acesso aos materiais de pesquisa ou podem viajar facilmente para os arquivos e conferências no exterior. Igualmente, ainda precisa ser combatida a ideia de que esse campo é “o comércio de luxo de uma minoria de elite”. Em outras palavras, os autores questionam o acesso aos recursos que os historiadores precisam para jogar o jogo da história global. Certamente, nesses termos, “o jogo da história global” é menos acessível do que os pretensos postulados de uma “cidadania global” parecem supor (DRAYTON; MOTADEL, 2018, p. 08 e 09).

Desde a ascensão da história global, um dos temas mais caros para os historiadores tem sido o processo de globalização. Para o historiador Sebatian Conrad, o conceito de globalização é teoricamente vago e relativamente indefinido. De qualquer modo, a abordagem da história global tem mais potencial quando aplicada aos períodos em que a integração foi duradoura e de certa densidade, pois a qualidade e o impacto das conexões dependem do grau em que pessoas e locais se integram em totalidade mais ou menos sistêmicas. A plausibilidade e o poder explicativo das abordagens globais serão tanto mais fortes quanto mais densas as conexões e mais intensas as interações de determinado período. Esta argumentação é pertinente para pesquisas que trabalham com recortes temporais após o século XVI e mais especialmente a partir do século XIX (CONRAD, 2019, p. 112, 116 e 135).

A realidade de que o sistema-mundo é um espaço com relações econômicas e políticas desiguais nos convida a desconfiar do quão integrador está sendo o chamado “processo de globalização”. Por todo o planeta, continuam a existir grupos de pessoas excluídas dos chamados fluxos globais, pois nem mesmo em nossa atualidade aparentemente global todas as pessoas se encontram interligadas. Uma integração genuinamente global nunca ocorreu e – de acordo com o palpite de Sebastian Conrad – talvez nunca chegue a ocorrer (CONRAD, 2019, p. 116). Neste sentido, precisamos estar atentos ao risco observado pelo historiador John-Paul Ghobrial de que, em certa medida, a história global pode perder sua seriedade de propósitos em uma era de crescente antipatia pela globalização (GHOBRIAL, 2019, p. 10).

Para evitarmos apenas corroborar os sucessos do processo de globalização, devemos considerar em nossas pesquisas temas que há algum tempo são do interesse dos historiadores globais, como as interrupções, reversões e processos de desglobalização. As conexões globais podem ser frágeis e as dinâmicas de ruptura demonstram repetidamente que períodos de integração global podem acabar (DRAYTON; MOTADEL, 2018, p. 09). Neste sentido, medir o impacto de diferentes graus e diversas formas de integração é uma das tarefas dos historiadores globais, como, por exemplo, aferir historicamente as cooperações e/ou entraves internacionais existentes entre pesquisadores na área de melhoramento fitogenético de videiras.

Ao analisarmos as conexões entre pesquisadores, não podemos incorrer no erro de elevá-los como agentes exclusivos em sua área de atuação. A crítica do brasilianista Zephyr Frank, de que os historiadores têm se concentrado em demasia em redes sociais formadas pela elite social e política das sociedades (políticos, comerciantes, intelectuais) nos serve de alerta (FREITAS; FRANK, 2014, p. 387). Não devemos olhar apenas para os “vencedores da globalização” (DRAYTON; MOTADEL, 2018, p. 09), mas também perceber outros sujeitos que fazem parte direta ou indireta dos processos históricos que elegemos como tema em nossas pesquisas – mesmo que esses indivíduos nunca tenham saído de seus locais de origem. Qualquer que seja o alcance da integração, uma perspectiva de história global pode ultrapassar os meros estudos de conectividade e nos instigar a perseguir o problema da causalidade em uma escala maior, até atingir a escala global (CONRAD, 2019, p. 87 e 139).

Metodologicamente, o jogo de escalas mobilizado para as análises históricas representa um dos elementos mais valorizados pela história global. De acordo com a análise do historiador Sebastian Conrad, a história global faz parte de uma viragem espacial (spatial turn) que vem ocorrendo de forma ampla no âmbito das disciplinas das humanidades. Via de regra, as histórias globais experimentam noções alternativas de espaço. Porém, vale destacar que a utilização do termo “global” não implica necessariamente que as pesquisas possuem alcance planetário. Em cada temática analisada pelo viés da história global, o historiador deverá fazer escolhas e decidir qual a real extensão das estruturas e dos processos de larga escala envolvidos nos processos estudados (CONRAD, 2019, p. 84, 85 e 92).

Inseridos no giro espacial historiográfico estão os trabalhos desenvolvidos com a utilização da Spatial History. De acordo com o brasilianista Zephyr Frank, Diretor do Spatial History Project no Center for Spatial and Textual Analysis (Stanford University), dados georreferenciados podem nos ajudar a perceber novos processos e padrões que não perceberíamos utilizando as fontes tradicionais da história. Entretanto, o risco de situar cartograficamente os dados é que muitas vezes as informações obtidas das fontes primárias são incompletas, complexas e às vezes duvidosas. Considerando que ao longo do tempo muitas coisas não possuem e/ou não mantém um limite espacial claro, os dados históricos muitas vezes não são completamente confiáveis ou então não possuem informações exatas sobre o espaço. Por isso, é fundamental a complementação e relativização dos dados que são apresentados em mapas ou outras mídias que utilizam georreferenciamento (FREITAS; FRANK, 2014, p. 379 e 383).

Alguns métodos utilizados por micro-historiadores podem ser úteis para a reflexão crítica da prática da história global. Conforme observou o historiador Henrique Espada Lima, a micro-história procura questionar os modelos gerais de explicação que por vezes obscurecem as experiências individuais e as ações de atores sociais menos visíveis, bem como os elementos contraditórios que destoam do “grande quadro” (big picture). A micro-história não representa uma oposição ao “grande quadro”, mas sim um modo de evitar considerá-lo como uma realidade preestabelecida e utilizá-lo sem exame (LIMA, 2015, p. 582 e 583).

As pesquisas em micro-história procuram levar em conta a questão de como relacionar o foco específico de suas análises com processos mais amplos. De costume, os micro-historiadores reduzem o foco de suas análises para ler suas fontes como se fossem através de um microscópio. Neste método, pequenos detalhes e pistas são revelados, relativizando a teleologia e o triunfalismo das grandes narrativas (GHOBRIAL, 2019, p. 13). Assim, pesquisas em espaços específicos podem contribuir para elucidar processos históricos relevantes a nível global, como nos adverte o historiador John-Paul Ghobrial:

 

Espaços "pequenos" não são simplesmente espaços que sentem o impacto das forças globais. Em alguns casos, eles servem como laboratórios de mudança profundamente intensos e dinâmicos, e os processos de mudança que ocorrem neles são muito mais do que simples reações às forças globais que os afetam. A Arábia na era de Mohammed, a Alemanha na era de Lutero ou Paris na Revolução Francesa são todos espaços desse tipo (GHOBRIAL, 2019, p. 08).

 

Na “era da globalização”, mais ou menos direta ou percebida, ninguém quer que a história do seu local seja um mísero ponto no mapa, sem agência ou significado, reduzido a uma mera estação no caminho de um fluxo global (GHOBRIAL, 2019, p. 10). De modo pragmático ou sutil, a escrita da história se baseia em comparações que nos levam a contribuir para a formação de identidades (MARJANEN in STEAINMETZ et al., 2017, p. 158).

Para finalizar, destacam-se três proposições elencadas pelos historiadores João Júlio Gomes dos Santos Júnior e Monique Sochaczewski para as pesquisas em história global: 1) a necessidade de se trabalhar com a longa duração[3]; 2) a validade de se trabalhar tanto com fontes primárias quanto com secundárias; e 3) a necessidade de uma pesquisa multiarquivo que contemple todos os lados tratados na investigação (SANTOS JÚNIOR; SOCHACZEWSKI, 2017, p. 494). Tais proposições são relevantes para o trabalho com temáticas globais e servem de guia básico para a composição de uma narrativa histórica mais ampla e inclusiva em temas, espaços e sujeitos.

 

Considerações finais

O artigo buscou sintetizar observações de diferentes áreas ligadas à historiografia, entretanto, produções de autores e autoras que trabalham com história intelectual e cultural constituíram o foco analítico para a composição deste balanço. Considerando que a história global não diz respeito somente aos domínios da história intelectual e cultural, análises acerca de trabalhos nas áreas de história econômica e social, bem como de temas como globalização e capitalismo, poderiam ampliar o debate aqui esboçado. 

De qualquer forma, a história global contempla teorias e métodos adequados para pesquisas que mobilizam estudos de diversas escalas espaciais e perspectivas sociais para a elaboração uma história de conexões e interações multiníveis. Para tanto, ela não se limita a uma tradição fixa. Pelo contrário. É um campo em constante disputa e com espaço para experimentações narrativas, temáticas e teórico-metodológicas.

Longe de ser uma compilação absoluta acerca dos desafios epistemológicos da história global, as críticas e propostas apresentadas neste artigo buscam contribuir para a reflexão e o aprimoramento das pesquisas neste campo.

 

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Recebido em 29/09/2021.

Aceito em 19/12/2021.

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[1] Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História Global da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH/UFSC). Brasil. E-mail: gilferri@hotmail.com | https://orcid.org/0000-0003-3110-4745

[2] Na UFSC, por exemplo, desde 2018 o Programa de Pós-Graduação em História tem como área de concentração a história global. Cf.: <https://noticias.ufsc.br/tags/historia-global/>. Acesso em: 02 jan. 2022.

[3] “A sugestão de Santos Júnior & Sochaczewski de que a história global deveria se engajar com a longa duração contradiz parte do estado da arte, especialmente aquele representado por Sebastian Conrad e seu grupo (Global Intellectual History) da FU-Berlin. No meu entendimento*, trata-se de uma resposta, a qual me parece em desenvolvimento, vinda da apropriação brasileira da história global (muito atenta ao fenômeno da ‘presença do passado’ em nossos país, vide o problema da escravidão ou do genocídio indígena). A história global, tal como pensada por Conrad et al., se atém à fenômenos cujas conexões são percebidas em recortes temporais muito curtos.” * Agradeço a pessoa (anônima) avaliadora deste artigo por esta nota explicativa.