“Pensa numa dor dolorosa”: colonialidade, infâncias e maternidades indígenas Guarani e Kaiowá

“Think of painful pain”: coloniality, indigenous childhoods and motherhoods Guarani and Kaiowá

Claudia Regina Nichnig[1]

 


Resumo

Neste artigo pretendo abordar de que modo um olhar colonial sobre as maternidades e infâncias indígenas importam em preconceitos e levam a desconsiderar as formas de cuidado e as possibilidades que as crianças indígenas têm de experienciar a infância junto de suas famílias e comunidades. Ao problematizar a existência de um olhar colonial sob o cuidado, o qual impõe uma forma correta a ser seguida em detrimento de outras formas tradicionais de cuidar e ser criança, busco perceber como este olhar fundamenta o direito da interferência estatal em relação as mães indígenas, as quais são impedidas de exercer o direito de guarda sobre seus filhos, os quais crescem longe da cultura e do modo de viver Guarani e Kaiowá.

Palavras-chave: Infâncias indígenas; Retirada compulsória de crianças indígenas; Colonialidade.

 

Abstract

In this article, I intend to approach how a colonial look at indigenous maternity and childhood influences prejudices and leads to disregarding the forms of care and the possibilities that indigenous children have to experience childhood together with their families and communities. By problematizing the existence of a colonial perspective on care, which imposes a correct way to be followed at the expense of other traditional ways of caring and being a child, I seek to understand how this perspective underlies the right of state interference in relation to indigenous mothers, who are prevented from exercising the right of custody over their children, who grow up far from the Guarani and Kaiowá culture and way of life.

Keywords: Indigenous infancy and maternity; Compulsory withdrawal of indigenous children; Coloniality.


 

 

Infâncias e maternidades se conectam quando refletimos sobre as vulnerabilidades e a ausência de direitos das crianças indígenas no Brasil. Neste artigo pretendo abordar de que modo um olhar colonial sobre as maternidades e infâncias indígenas importam em preconceitos e desconsideram as formas de cuidado e as possibilidades de experienciar a infância junto de suas famílias e comunidades. Ao problematizar a existência de um olhar colonial sob o cuidado, o qual impõe uma forma correta a ser seguida em detrimento de outras formas tradicionais de cuidar e ser criança busco perceber como este olhar fundamenta o direito da interferência estatal em relação as mães indígenas, as quais são impedidas de exercer o direito de guarda sobre seus filhos, os quais crescem longe da cultura e do modo de viver Guarani e Kaiowá.

As populações indígenas Guarani e Kaiowá estão situadas no sul do Mato Grosso do Sul, habitam locais como a Reserva Indígena de Dourados - RID, localizada na cidade de Dourados, bem como áreas de retomada, em que se busca o direito as terras tradicionalmente ocupadas, bem como territórios indígenas já demarcados, em toda esta região. Os estudos sobre essas comunidades (MELIÁ, 2015; CHAMORRO, 2015; MOTA; CAVALCANTE, 2019) apontam para uma ausência de direitos básicos, os quais são fundamentais para a sobrevivência, como a alimentação e a água potável, e ainda a ausência de políticas públicas como o saneamento básico, educação e segurança para estas populações que vivem em territórios, o que acentua situações de vulnerabilidades sociais, sendo que situações de violência são comuns. Entendo que esta ausência do Estado e de política públicas ocasiona uma política de morte, ou uma necropolítica, como nos ensina Achile Mbembe (2018), sendo que a ausência do próprio Estado faz com que este considere negligente as próprias populações que nega assistência e direitos sociais básicos.

Neste artigo, me debruço em especial sobre o caso das mães indígenas, que devido a sua condição de vulnerabilidade, que compreende o escasso acesso à alimentação, à água potável e ao fato de residirem em situação bastante precarizada, faz com o que o Estado considere negligente este modo de cuidar e, como forma uma de medida protetiva e diante da situação do risco social, as crianças são encaminhadas para o acolhimento. Os representantes do sistema de proteção do Estado, especialmente os profissionais do Conselho Tutelar, consideram o modo de vida e a cultura indígena, quando encaminham estas denúncias ao Ministério Público do Estado? É sobre este caso, extremamente delicado e controverso que proponho este diálogo, que entrelaça direito à infância, o exercício da maternidade e a existência de um olhar colonial do Estado e seus representantes em relação às vidas indígenas.

Assim, neste texto a intenção é problematizar um dos desdobramentos da pesquisa que desenvolvo junto às meninas e mulheres indígenas do Mato Grosso do Sul, em que infâncias, maternidades e vulnerabilidades se conectam e afetam os direitos (ou a sua ausência) dos mesmos. Ao me aproximar das reivindicações propostas durante a Kuñangue Aty Guasu, Grande Assembleia de Mulheres Indígenas Guarani e Kaiowá, observo que a temática das infâncias e das maternidades foram centrais nas últimas assembleias, especialmente a partir do ano de 2018 (ANZOATEGUI, 2017; 2018). As assembleias indígenas e os coletivos de mulheres indígenas são espaços em que compartilham com os presentes suas angústias e emoções, relatam e denunciam as violências acometidas por familiares no âmbito doméstico e familiar, mas também pelo Estado. As assembleias também são espaços de agência e enfrentamento, em que o verbo resistir e esperançar são uma constante, já que buscam coletivamente uma vida digna, com respeito e sem violências.

Além das narrativas impactantes de mulheres indígenas sobre as violências sofridas em suas relações familiares e conjugais, apresentadas durante as assembleias, apontam que as relações familiares são marcadas por violências e sofrimentos. Mas em relação a impossibilidade de exercer a maternidade esse cerceamento provém do Estado, mais precisamente da atuação de seus representantes, como o Conselho Tutelar, e posteriormente a Justiça, em especial a Vara da Criança e Juventude. Uma das importantes reivindicações do coletivo é o direito das mães indígenas darem a seus filhos uma vida digna e, sobretudo, exercerem o poder familiar e terem direito a manutenção da guarda de seus filhos e filhas. A reivindicação decorre principalmente da atuação da assembleia diante das denúncias dos reiterados casos de “retirada de crianças” ou o afastamento forçado de crianças Guarani e Kaiowá, na cidade do Mato Grosso do Sul, pelo Conselho Tutelar do município. Diante da acusação da negligência das mães indígenas em relação aos cuidados dos seus filhos e filhas, a atuação do órgão assistencial encaminha uma denúncia ao Ministério Público que autoriza o acolhimento das crianças em instituições do Estado, que se trata de uma medida excepcional e provisória. Silvana de Jesus do Nascimento aponta que este tipo de medida protetiva do Estado tem sido vista pela antropologia como “um modo de reprodução politizado, pois envolve a redistribuição – e não apenas a produção – de crianças” (NASCIMENTO, 2019, p. 186). A retirada forçada de crianças indígenas pode ser entendida como forma de circulação de crianças bastante comum desde o violento processo de colonização, impactando diretamente nas mulheres “cujos efeitos corporificados, permanecem como as principais causas de violências e sofrimentos de homens, mulheres e crianças (NASCIMENTO, 2019, p.187). Esses efeitos de inferioridade e desrespeito das culturas e das pessoas indígenas, fazem com que ao serem adotadas por famílias brancas, as crianças indígenas crescem longe de sua cultura, enfraquecendo-a, o que traz como consequência o desconhecimento da criança de sua ancestralidade, mas também o enfraquecimento e consequentes danos psicológicos para as mães e para toda a comunidade.

As mulheres indígenas afirmam em assembleia a responsabilidade do Estado diante da atitude violenta e desrespeitosa:

Quem é o culpado de tudo, dessa retirada de crianças guarani? O culpado é próprio governo, […], porque nós não temos mais rios, não temos mais bicho, não temos mais caça, não temos mais mel, não tem mais, por isso estamos morando na beira da estrada, embaixo de lona, estamos tomando água suja. Isso é que vocês têm que entender. Quem é o culpado? É o próprio governo.[1]

 

Os casos relatados durante as denúncias realizadas por mulheres indígenas Guarani e Kaiowá reunidas em assembleia, mas principalmente através das narrativas expostas no documentário “Negligência de quem?”, que é um importante instrumento de denúncia, importa problematizar que o Estado impõe obrigações que, muitas vezes não são acessíveis, impossibilitando as mães indígenas de exercer o direito em relação aos seus filhos (exercício do poder familiar). Assim, o Estado passa atuar no lugar das mães e das famílias, os quais estão em situação de vulnerabilidade social devido a ausência do próprio Estado, que nega às famílias seus direitos básicos. Estou partindo da ideia de que ocupam um não lugar no sistema-mundo, conceito que se contrapõe ao de “sociedade” como sinônimo de “Estado-nação”, e trata de “processos e estruturas sociais cujas temporalidades são mais amplas que as do ‘Estados-nações’(...) capturam dentro de suas fronteiras, de forma ativa/passiva, singularidades de processos globais de ampla duração e ampla espacialidade” (GROSFOGUEL, 2019, p. 56). Desta forma, ao ocuparam temporalidades amplas, dentro das fronteiras nacionais estão em situação de vulnerabilidade, nos quais são sujeitos passivos da assistência do Estado. A ausência de condições materiais, que implica em desconsiderar o modo de viver das comunidades indígenas, o Estado impõe suas regras, e quando se trata de crianças, um sistema protetivo estatal se articula para proteger as crianças como indivíduos que necessitam da proteção do Estado quando as famílias não cumprem seu papel social de proteção. Mas quando a situação de risco social e vulnerabilidade se estende a toda uma comunidade, através de meu marcador étnico? A separação de suas famílias e seus territórios por determinação do Estado, o consequente abrigamento e um possível encaminhamento para a adoção destas crianças é a melhor solução? Está sendo respeitado o direito ao convívio comunitário das crianças indígenas e assistência dos órgãos de proteção aos indígenas nestas situações? Neste artigo vamos dialogar sobre crianças em situação de acolhimento institucional o que foi conhecido como o caso das “retiradas de crianças”[2] da etnia Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul. A alegação de negligência de cuidados que levou ao abrigamento institucional, implica ainda e outras indagações: a partir de que olhar estes cuidados foram problematizados? Como desconsiderar o estado de vulnerabilidade de toda a população indígena desta região? Quais são os parâmetros de cuidado utilizados por esses profissionais? Qual é o conhecimento em relação ao modo de vida das populações indígenas que possuem os conselheiros e conselheiras tutelares que atuam no município de Dourados e em todo o país?

Entendo que a ausência de direitos, as vulnerabilidades e o possível risco social se conectam com bastante intensidade quando enfocamos as infâncias indígenas. A vulnerabilidade das populações indígenas está presente nos dias atuais, mas atravessa a história do Brasil, que é marcada por um verdadeiro genocídio em relação a estas pessoas, por uma proposta estatal de assimilação para que fossem integrados a nação Brasileira e fizessem parte do povo brasileiro[3], o que importou em violências, desrespeitos ao direito à vida, à cultura e à própria subsistência. Quando se trata de crianças indígenas, o desrespeito à infância e a ausência de direitos básicos, faz com que, em alguns momentos estas sejam consideradas em risco social e portanto, deva ocorrer a intervenção do Estado através de seus mecanismos protetivos. É evidente que estes mecanismos são importantes nos casos de vulnerabilidade social, como os que podem resultar em crimes violentos, como o brutal de feminicídio que foi vítima a menina Raíssa Silva, da etnia Guarani e Kaiowá, que após ter sofrido violência sexual por cinco homens, sendo um deles seu tio, foi arremessada de um penhasco, na localidade da Reserva Indígena de Dourados – RID, em agosto de 2021. No caso de Raíssa houve uma total ausência do Estado, sendo que as representantes do Kunangue Aty Guasu, em nota, afirmam que “chegam onde o Estado não chega”, mas no caso de Raíssa Silva, o coletivo declarou com pesar, que as lideranças femininas não chegaram a tempo de evitar sua morte brutal. O feminicídio que foi vítima Raíssa foi destaque durante a Segunda Marcha das Mulheres Indígenas, ocorrida em Brasília[4], em setembro de 2021, e impulsionou a realização de uma audiência pública requerida pela deputada indígena Joenia Wapichana (Rede-RR) e Erika Kokay (PT-DF),[5] durante a qual foram abordados as diferentes formas de violências contra as mulheres indígenas, sendo que as violências letais que foram vítimas as meninas Raíssa Silva, da etnia Guarani e Kaiowá e Daiane Griá, da etnia Kaigang, provocaram a realização da audiência. A ausência estatal em políticas públicas de enfrentamento às violências contra as meninas e mulheres indígenas, as desigualdades sociais e de gênero, refletem em inúmeras formas de violências, sendo que estas não estão restritas ao tempo presente, mas são fatos que aconteceram desde a colonização e perpassam diferentes momentos históricos brasileiros (SAMPAIO, 2019). Em relação às violências sexuais, estão são muitas vezes sub-representadas e não enfrentadas através de políticas públicas efetivas, o que muitas vezes é acentuado pela falta de segurança nos territórios indígenas, bem como a falta de energia elétrica que impede meninas e mulheres de ir e vir, como se não tivessem direito à proteção do Estado, para que possam manter seus corpos e suas integridades físicas protegidas.

Em relação aos bebês e crianças retiradas de suas mães, as mesmas são direcionadas para o processo judicial de adoção, sendo que estas ficam impedidas do convívio de suas famílias e comunidades indígenas. Este posicionamento me faz questionar como e o porquê da interferência Estatal de forma tão seletiva? De um lado, uma ausência do Estado para proteger meninas e mulheres vítimas de violências, mas que de outro lado interfere prontamente quando mães indígenas são consideradas “negligentes” ao cuidarem seus filhos de acordo com seus costumes, sua cultura e sua condição econômica, que são conhecidamente de vulnerabilidade social. 

Mas ao adentrar a temática das infâncias indígenas, inicialmente é importante explicar como são poucas as produções científicas sobre este período da vida. Antonella Tassinari explica como esta fase da vida ainda é pouco estudada no Brasil e que “entre o nascimento e a vida adulta há um grande vazio de informações” (TASSINARI, 2007, p. 12). Para a antropóloga a “ausência de informações sobre as crianças decorre do ‘adultocentrismo’ que marca o pensamento ocidental, dificuldade que não é compartilhada pelas sociedades indígenas que reconhecem a autonomia e a legitimidade das falas infantis” (TASSINARI, 2007, p. 12). Para Renato Noguera, o adultocentrismo seria uma das formas de dominação e opressão, sendo que para o filósofo “devido ao adultescimento, fazer política tem sido uma atividade de colonização da vida. Para descolonizá-la é preciso uma política brincante” (2019, p. 137). Para o autor, a infância como este espaço, tempo, e lugar poderoso que possibilita tornar a vida uma experiência brincante, tem um significado ainda mais potente e de completude nas culturas biointeracionistas, como as indígenas e quilombolas, nas quais “as crianças vivem em função do presente, não de uma utopia futurista na qual elas passarão a ser ‘gente’ apenas quando forem adultas” (NOGUERA, 2019, p. 129).

Por outro lado, um olhar ocidental sobre as infâncias indígenas impede que se perceba a forma de cuidar e maternar dos e das indígenas que é diferente do cuidado que serve como parâmetro para o Estado, por exemplo. Segundo Tassinari “a liberdade e autonomia infantis foram muitas vezes interpretadas como ausência de autoridade dos pais e inexistência de uma pedagogia ativa” (TASSINARI, 2007, p. 12), ou seja, uma falta de cuidado que se traduz no termo utilizado judicialmente: a negligência.

Através das falas e das atuações das mulheres pretendo expor de que forma esse coletivo se relaciona com seu passado ancestral e colonial, e ainda com as imbricações entre suas tradições culturais e as percepções de seus próprios direitos e deveres impostos pelo Estado. Para essas mulheres relacionar seus direitos, aos princípios dos direitos humanos, reconhecidos na Constituição brasileira, faz com que o conceito de interseccionalidade seja alçado, pois são mulheres/mães marcadas pelo seu gênero e por sua etnia. Este conceito, mesmo que formulado e utilizado há bastante tempo, principalmente pela militância negra brasileira e estadunidense, se popularizou nos últimos cinco anos, conforme nos ensina Angela Figueiredo. Para Figueiredo, o conceito é “mais utilizado para analisar as relações e interconexões possíveis entre as categorias de gênero, raça, classe, sexualidade, geração etc.” (2020, p. 12).

A historiadora Graciela Chamorro, estudiosa da história Kaiowá, evidencia que os povos indígenas estão vivenciando desde anos os anos 80 o “tempo do direito” (CHAMORRO, 2015), que com seus operadores tem aprofundado crises sociais, econômicas e a ambientais desses povos. Linda Smith afirma que o “estabelecimento e o restabelecimento, em alguns casos, de vínculos internacionais ou relações com outras comunidades indígenas” (2018, p. 133), fortaleceram a luta por direitos desses povos. A autora também aponta como “protestos semelhantes no que tange ao direito à terra, à língua e à cultura, e também aos direitos humanos e civis, tiveram lugar literalmente em todo o mundo” (SMITH, 2018, p. 130). A partir da perspectiva da história do tempo presente, articulo as categorias de memória e temporalização da experiência, refletindo como as mulheres indígenas resistem e agem a partir de suas experiências, sobretudo em relação ao enfrentamento das violências.

Pensando o tempo histórico, a historiadora Graciela Chamorro afirma que os Kaiowá, que dividem sua história em três tempos: primeiro o tempo do ymã guare, chamado do tempo da liberdade; o tempo do sarambi, também chamado de tempo do espalhamento e da perda do território, sendo que o tempo vivido hoje seria o “tempo do direito”, em que os povos indígenas reivindicam e lutam por seus direitos. Explica a professora Graciela:

Até 1978, data da primeira retomada, pode-se dizer que os Kaiowa e os Guarani viveram o tempo do ñemosarambipa ou espalhamento. A partir de então, começam a reagir e a pressionar o órgão ‘tutelar’, a FUNAI, para lhes restituir parte do que eles haviam perdido com o contato. Iniciava-se um novo tempo em sua história, a que eles denominam tempo do direito e que hoje conta com o apoio, entre outros, da Constituição Federal de 1988, da FUNAI, da Convenção 169 “sobre Povos Indígenas e Tribais” da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do Ministério Público Federal e das políticas públicas de inclusão social. (CHAMORRO, 2015, p. 307)

Neste “tempo do direito” é que as mulheres vivenciam os processos de resistências e como sujeitas de direito e sujeitas políticas que travam lutas, não somente buscando a recuperação de suas terras ancestrais, mas na efetividade de seus direitos com uma vida sem violência e com (re)construção de suas histórias, e sobretudo como aquelas que enfrentam um olhar colonial que desconsidera seus modos de ser, cuidar e maternar.

Ao discutir questões como a memória, e “os passados que não passam” na História do Tempo Presente, percebemos a partir de alguns autores e autoras, que embora a colonização tenha terminado, os efeitos do colonialismo permanecem presentes. Estudos sobre colonialidade, abordam em países da América Latina, como as pessoas, sobretudo, os afrolatinos e indígenas tem sofrido, com aquilo que Anibal Quijano (2005) identificou como colonialidade do ser, do saber e do poder. Mas foram os estudos e os aprofundamentos de Maria Lugones (2008) e Rita Laura Segato (2012) que acrescentam que o marcador de gênero impõe ainda um lugar de inferioridade as mulheres nesta lógica colonial moderna, que são elas que sofreram ainda mais com este jugo colonial e, sobretudo, foram vítimas das violências e de práticas criminosas de estupro, que levaram a miscigenação da população dos países marcados pela colonização. Então o debate que impõe a Colonialidade de Gênero traz questões como as violências sofridas por mulheres indígenas e mulheres escravizadas no processo colonial moderno, em que as marcas dos episódios de violências em seus corpos, trazem em si memórias de violências, entendendo seu corpo como um território que foi invadido e ultrajado pelos colonizadores, mas que pleiteiam justiça e respeito. Há uma latente ideia de que estes estudos buscam que os discursos institucionais precisam ser descolonizados, ao trazerem o debate a partir das narrativas de mulheres indígenas e negras, pois são enormes os desafios para o enfrentamento das violências e dos racismos cotidianos e institucionais vivenciados e experienciados diariamente no Brasil.

Fatores que geram ou estão relacionados à invisibilidade social e a exclusão econômica e política desses sujeitos. Ou seja, afrolatinos e indígenas estão alijados do poder, seja ele econômico ou políticos, pois seus conhecimentos e os próprios sujeitos foram desconsiderados, ou reconhecidos como de segunda classe. A colonialidade do saber, que Catherine Walsh aprofunda importa no posicionamento do “eurocentrismo como la perspectiva única del conocimiento, la que descarta la existencia y viabilidad de otras racionalidades epistémicas y otros conocimientos que no sean los de los hombres blancos europeos o europeizados” (WALSH, 2008, p. 137). O eurocentrismo e a imposição destas formas de poderes e saberes eurocentrados, são debatidos ainda a partir do que Silvia Rivera Cusicanqui chama de “colonialismo interno”, ou seja, além da produção do sul global ser inferiorizada em relação as produção do norte global, em que este, em tese, produziria teoria e o sul somente material empírico, a autora destaca um “complejo de superioridade de los intelectuales de clase media respecto de su pares indígenas y todas las derivaciones politicas de este hecho” (CUSICANQUI, 2010, p. 67).

A partir destes argumentos, compartilho reflexões manifestadas pelas mulheres indígenas que lideram o movimento sul-matogrosense e pelas mães indígenas, que afirmam que, seus posicionamentos, suas culturas e formas de cuidar não são consideradas pelo Estado. Como afirma Cusicanqui (2010) é possível modificar esta perspectiva de colonialismo, pois essas mulheres, através de suas experiências e ainda em conexão com suas ancestralidades, afirmam que não foram e não pretendem deixar de cuidar de seus filhos. A partir destes argumentos se faz importante descrever o contexto e a relevância do documentário que problematiza como o colonialismo e a colonialidade do poder, do ser e do saber se impõem, a partir do caso da retirada compulsória de crianças indígenas.

A produção "Negligência, de quem?"[6], foi realizado pela Muzungu Producciones e teve o apoio da Le Monde Diplomatique Brasil. A Muzungu Producciones é uma produtora independente, uma cooperativa com profissionais de diferentes partes do mundo, com objetivo de “escutar, sentir, compreender e contar”. A proposta é a de um jornalismo em que “os protagonistas não são os jornalistas”, mas suas histórias são ouvidas com sensibilidade e respeito para a produção dos documentários:

Quando temos que mostrar realidades duras, evitamos chafurdar na dor dos outros. Dirigimos nossa atenção e nossas lentes para a desigualdade e a injustiça, mas também para as pessoas que se organizam para combatê-las. Não estamos aqui para “dar voz”, mas para ouvir aquelas vozes que os outros não ouvem.[7]

O documentário recebeu apoio do Le Monde Diplomatique Brasil, jornal originalmente publicado na França Le Monde Diplomatique, mas que conforme explica o site da edição brasileira é uma publicação de cunho reflexivo: “É importante ressaltar que não se trata de uma publicação noticiosa, voltada à cobertura dos fatos correntes, mas de uma publicação reflexiva, que busca identificar, para além dos fatos, os cenários maiores que lhes conferem sentido e inteligibilidade”[8].

Tendo recebido apoio do jornal, o documentário está disponibilizado no site do canal youtube da edição brasileira. No documentário atuaram a cineasta e jornalista Joana Moncau[9], como diretora, câmera, roteirista, na montagem e na finalização, e o antropólogo Spency Kmitta Pimentel[10], que além de consultor, atuou como argumento e assistente de roteiro. Ouvir vozes que os outros não ouvem, através da escuta de denúncias relatadas pelas populações indígenas, é a intenção do documentário que aborda um tema bastante sensível, a retirada das crianças indígenas Guarani e Kaiowá de suas mães, sob a alegação de negligência e abandono, levando em consideração o estado de vulnerabilidade social em que vivem.

Os filmes documentais, para Paulo Menezes, analisam os fenômenos culturais. Por esta perspectiva utilizei o exercício mencionado pelo autor: para utilizá-lo como fonte de pesquisa é necessário “enxergá-lo como um recorte cultural do mundo fundado em conceitos (ou preconceitos) que se desdobram na constituição de conceitos visuais de construções do outro” (MENEZES, 2005, p. 82). Neste caso, embora não seja uma produção realizada pelas próprias mulheres indígenas, “esse outro” é problematizado através da escuta sensível da produção do filme, que enfatiza a intenção de “ouvir vozes que os outros não ouvem”. Penso esta produção a partir de uma “opção teórica decolonial”, que pretende realizar um “desprendimento’ das epistemologias ocidentais que colonizaram os saberes e as disciplinas modernas”, apresentando “um pensamento-outro que inaugura uma nova forma de pensar a partir da pluralidade de pontos de enunciação geo-historicamente situados.” (LÉON, 2019, p. 62).

O documentário traz uma problemática geo-historicamente situada e que, por consequência, está invisibilizada socialmente. Não é tratada pelas grandes mídias e foi noticiada apenas por canais de mídia alternativa brasileiros, como o canal do Intercept Brasil[11]. A temática do cuidado a partir de um olhar eurocêntrico e colonial está no centro deste debate, e das experiências e narrativas traumáticas de mães Guarani e Kaiowá, que tiveram seus filhos retirados de seus cuidados sob a alegação de maus tratos e a negligência. Essa prática evidencia a atuação racista e desrespeitosa das instituições do Estado em relação aos povos indígenas, especialmente às mães e às crianças. Paulo Menezes ao analisar as produções fílmicas e documentárias observa que deve se considerar os pressupostos de produção e realização:

Analisar filmes é conceber culturalmente os elementos que nos permitem, como em Magritte, distinguir a figura do fundo, compreender os valores culturais de seleção e construção do mundo, como gostaria Weber, ao invés de apenas buscar construir as leis naturais de sua própria constituição, ao invés de ver ali um mero registro isento de pressupostos, ou fontes de informação, mesmo com pressupostos (MENEZES, 2005, p. 80).

Uma produção fílmica ou documentária não é isenta. A produção de documentários antropológicos pretende denunciar o que a civilização, a partir de uma visão eurocêntrica, não reconhece como outras formas de ser e estar no mundo. Michèle Lagny (2012) também demonstra a importância dos documentários militantes ou de denúncia para se refletir sobre determinados cenários, como os cenários de violências contra grupos minoritários.

É importante ressaltar que assim como outras ciências, o direito está inserido nesta lógica eurocêntrica, e portanto, fundamenta suas bases em um modo de ser, agir e cuidar, que é eurocentrado. Nesta lógica eurocêntrica, o direito também impõe suas bases que são ocidentais. A lógica dos Direitos Humanos estabeleceu valores universais, mas apresenta apenas uma forma perspectiva que é ocidental, e que reconhece direito para os sujeitos, de forma individual, sendo que os direitos indígenas são muitas vezes pleiteados em prol da comunidade, são direitos comunitários. É importante ressaltar que o Estatuto da Criança e do Adolescente[12] expõe como um direito da criança e do adolescente “ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”, conforme dispõe o artigo 19 da Lei 8069/1990. Quando trata das crianças e adolescentes indígenas e quilombolas que não estão sob a proteção de suas famílias, a lei observa que para estas crianças é necessário considerar e respeitar “sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituição Federal”, conforme dispõe o parágrafo sexto, inciso primeiro do artigo 28 que trata da retirada excepcional da criança de sua família e o acolhimento provisório em uma família substituta. O que quero dizer é que mesmo que a lógica do direito brasileiro seja colonial, a lei específica de proteção às crianças e adolescentes teve o cuidado de impor o respeito à “identidade social e cultural, seus costumes e tradições” e ainda a importância da convivência comunitária para as crianças indígenas. Desta forma, o fato das crianças serem retiradas de suas mães, esta deveria ser forma excepcional e provisória, o que não justifica a grande quantidade de crianças indígenas acolhidas naquela localidade, o que faz crer a existência de racismo institucional, marcado pela forma como o Estado e o próprio Conselho Tutelar local agem, o que se confirma na resposta que dá as mães e aos parentes das crianças recolhidas, os quais buscam reverter essa situação e retornar ao convívios de seus filhos e filhas. O descaso e o pouco caso com essas pessoas indica um desrespeito à cultura, os costumes e as tradições da etnia, o que se traduz pela ausência de esforço estatal para que seja efetivado o convívio comunitário e o restabelecimento de vínculos comunitários, durante o período em que as crianças estão sob a guarda do Estado, o que fica bastante evidente a partir do documentário analisado.

O próprio título “Negligência, de quem?”, expõe a dúvida em relação a quem estaria sendo negligente neste caso: as mães indígenas, que cuidam a partir de sua cultura e dentro de suas possibilidades econômicas e sociais, ou o próprio Estado que retira as crianças indígenas do convívio comunitário e não considera ou respeita sua cultura e tradições?

O documentário traz as narrativas de mães indígenas acusadas de negligentes por não estarem cuidando de seus filhos de uma forma correta, segundo o que afirma a representante do Conselho Tutelar e o Juiz da Vara da Infância e da Juventude de Dourados, fica evidente que estes partem de uma visão ocidental de cuidado, não considerando as diferenças culturais e étnicas. Além do juiz de direito, as representantes do Conselho Tutelar expressam uma forma de cuidado, que no meu entender, não considera a forma indígena de cuidar. Assim, se o conselho tutelar expressa formas de cuidado conforme legislações em vigor, mas que visivelmente reiteram uma forma colonial de cuidado, a visão indígena em relação ao cuidado não é respeitada, tampouco respeita a criança indígena “como sujeito de sua própria educação” (TASSINARI, 2007, p. 15).

 O documentário é utilizado não só “para interrogar a forma com que o momento presente é apresentado ou pelo qual determinados atores querem que ele seja percebido” (LAGNY, 2012, p. 23), mas para questionar um posicionamento. Neste caso, uma narrativa estatal que define um modo “certo” de cuidar e não considera outras formas de maternar, sendo que a permanência na terra indígena resulta em estar junto da terra, e segundo esta visão que não respeita o modo de ser indígena, estar em contato com a terra vermelha significa que as crianças permanecessem sujas e mal cuidados.

Entendo o documentário analisado como uma forma de denúncia, de publicização de um caso não divulgado pela grande mídia, em que uma situação de invisibilidade ou até mesmo uma suposta aceitação social desta forma de violência institucional, se dá diante da vulnerabilidade das famílias. Será que uma mãe não indígena, nas mesmas condições de vulnerabilidade social, teria o mesmo tratamento? A ausência de condições materiais interpretada como uma forma de negligência ou/e abandono justifica o acolhimento institucional? Há um olhar diferenciado quando estão presentes elementos de culturas diversas, que diferem nas formas de cuidado, ou ainda quando se trata de comunidade em que o acesso à alimentação, a habitação e até mesmo o acesso à água é negado pelo próprio Estado? Estes questionamentos me fazem crer que, assim como entendeu a própria defensora pública do município de Dourados, está presente um racismo institucional em relação às mães e famílias indígenas da região.

No documentário, as afirmações de Elizabeth demonstram o seu sentimento de inferioridade e desamparo diante do sistema de proteção do Estado que não a reconhece como uma sujeita de direito e se percebe sem forças diante do mesmo. Afirma que “eles tiveram essa força de tirar minhas crianças de mim!”, tendo que aceitar a retirada de duas de suas filhas, as quais no momento da visita do Conselho Tutelar a residência da família estavam sob os cuidados da irmã mais velha para que a mãe pudesse trabalhar para o sustento de todos. Outro caso apresentado é o de Marilda, que teve seu filho retirado ainda na maternidade, além de perder a guarda de outros três de seus cinco filhos. O caso mais emblemático abordado no documentário é o de Elida, que teve seu filho levado diretamente da maternidade para um abrigo, com apenas oito dias de vida. O caso foi denunciado pelo movimento indígena das mulheres do Mato Grosso do Sul, Kuñangue Aty Guasu, e problematizado pela pesquisadora Silvana Nascimento de Jesus que a partir de inúmeras fontes, além das entrevistas com Elida e sua filha constatou que: “o caso destacou-se face à Rede de Proteção Social e as mídias locais e internacional, após sua experiência de sofrimento e luta para conviver com o filho acolhido institucionalmente chamar atenção de Gomes, a indigenista especializada da Funai”. (NASCIMENTO, 2019, p. 193). Apesar das considerações da indigenista e da comprovação de que a mãe não faz uso de drogas e álcool e tampouco submeteu qualquer de seus filhos à situação de violências “a rede não consegue fazer com que eles voltem a conviver” (NASCIMENTO, 2019, p. 193).

Assim, mesmo que o afastamento tenha se dado inicialmente diante da dúvida em relação a maternidade, muito tempo se passou para que essa mãe tivesse o direito de comprovação de sua maternidade, e após a realização do exame de DNA passados quais dois anos do nascimento e acolhimento da criança, a maternidade foi comprovada. Ainda que comprovada a maternidade, a justificativa para permanência da criança na instituição foi a necessidade de um tratamento médico especializado devido ao fato de ser acometida de uma doença no coração, e sob o argumento da necessidade de cuidados especiais, a criança permaneceu sob os cuidados do Conselho Tutelar, que se posiciona no sentido de que a mãe não poderia ter o cuidado médico necessário, o que discordam a mãe e a irmã mais velha. A irmã questiona o posicionamento dos representantes do sistema de proteção do Estado, que afirmam “nós indígenas não temos condições de cuidar das crianças, então como minha mãe criou seis filhos, porque só o meu irmão ela não tem condições de cuidar?”, sendo que esta justificativa reforça a ideia de que as crianças indígenas “estariam entre aquelas mais vulneráveis, principalmente pela ‘questão cultural’” (NASCIMENTO, 2019, p. 187).

Para a irmã, as inúmeras justificativas dadas pelo Estado para a impossibilidade da sua mãe em permanecer com o irmão não tem fundamento, como o fato da mãe não conviver mais com o seu pai, sendo que o se sobressai é a ausência de condições econômicas da família e seu estado de vulnerabilidade social. Quando a entrevistadora do documentário pergunta para a filha mais velha se esta ausência se refere a condições materiais, ela responde: “isso, sem ter condições de comida”, o que foi confirmado pelo próprio depoimento do juiz da Vara da Família que cuida do caso. Ao se referir a situação de abrigamento que já durava mais três anos naquele momento, ou seja, extrapola qualquer situação de excepcionalidade ou provisoriedade previsto em lei, afirmou “este ano tenho que decidir sobre a situação do menino: se ele vai voltar para a mãe ou se vai ser encaminhado para a adoção”. Afirmou ainda que de acordo com as fotografias do processo, a família vive em situação precária, em casa de lona e chão batido, e que mesmo que este não considere a ausência de condições materiais ou a “pobreza por si” como justifica para negar o direito ao retorno ao lar e o exercício do poder familiar, no caso de pobreza extrema “o juiz balança na decisão de devolver a criança para a família”, e segundo o despacho judicial o direito foi negado pois a mãe “é ‘pobre’ e mora em ‘barraco de lona” (NASCIMENTO, 2019, p. 193). De acordo com o magistrado, no abrigo a criança “se alimenta do bom e do melhor e dorme no ar condicionado”, o que para ele se traduz em segurança, o que é bastante distante diferente da realidade em que vive o restante da família da criança que mora em uma área de retomada, próxima da RID (NASCIMENTO, 2019).

 Além das falas das mães indígenas, outras falas também divergem do poder estatal que determinou a retirada das crianças de suas mães. O procurador da República, Marco Antônio de Almeida, do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul, se posiciona no sentido que é preciso considerar as formas de cuidado que são forjadas pela cultura, pois não pode ser considerada negligente “a mãe que teoricamente cuida da criança de uma forma diferente do que a sociedade ocidental entende como cuidado”. Também afirma que a definição de cuidado está sob “uma zona cinzenta”, pois “permitir que uma criança fique com um celular por 12 horas sem cuidado, na sua casa no ar-condicionado, é uma forma de negligência, que teoricamente não vai ser verificada e cerceada pelo Estado, pois há uma presunção do cuidado”. Então a fala do procurador no documentário nos permite perceber “que no cuidado com as crianças há uma diferença cultural significativa” entre a visão dos povos indígenas e das pessoas influenciadas pela visão ocidental.

Segundo Silvana Nascimento de Jesus:

O debate sobre as políticas de proteção sobre as crianças indígenas pode ser sintetizados em dois argumentos. Primeiro em nome do amor e da bondade a criança é defendida desde uma perspectiva individual que a higieniza de seu pertencimento étnico. Este tipo de intervenção é acusado de reproduzir o racismo e o etnocídio contra os povos indígenas ao considera-los incapazes de cuidar das suas crianças. Segundo em nome do reconhecimento da diversidade e o respeito à diferença, a criança indígena é defendida desde a perspectiva dos direitos coletivos que tende a ‘reduzir’ sua particularidade geracional. Este tipo de defesa é acusado de preconceito e discriminação contra as crianças indígenas por negar-lhes o direito a igualdade (CARIÁGA, 2012; ALBUQUERQUE, 2013; NASCIMENTO, 2013; OLIVEIRA, 2014; COSTA, 2016). Ambas as perspectivas constituem em pautas disputadas respectivamente pela agenda política de partidos de esquerda e de direita. (NASCIMENTO, 2019, p.187).

 

Assim, estão imbricados os direitos da criança e do adolescente indígena, que além de ser respeitado e protegido como sujeito individual, tem direito a ter reconhecida a sua diversidade cultural e étnica e ainda da convivência comunitária, o que será aprofundado a partir dos relatos de diferentes pessoas, indígenas ou não, que participam desta trama, através do uso do audiovisual como fonte histórica.

 

Um diálogo com Michèle Lagny e o cinema como fonte histórica

No século XX, a escola francesa dos Annales, colaborou com o alargamento do uso de fontes históricas. Mas foi na terceira geração, com a publicação do livro Faire de l’histoire que esta possibilidade se tornou mais viável, com a proposição de novas fontes e objetos. Especificamente em relação às fontes audiovisuais, foi nos anos 70, na França que “o audiovisual, sob a forma do cinema, torna-se uma fonte documental para os historiadores (LAGNY, 2012, p. 23), o que se deu de forma concomitante ao desenvolvimento do conceito de História do Tempo Presente e a criação do Instituto de História do Tempo Presente, em Paris, França. Para a Lagny (2012), “dois elementos intervêm no interesse do historiador pela imagem animada: o sentimento de que ela dá conta do real e o de que o fato de ser ‘armazenada em uma lata’ fará dela um testemunho durável” (LAGNY, 2012, p. 23). Ainda explica a importância da publicação de Jean Louis Comolli e Jacques Rancière explicitando que o cinema faz parte da história do Século XX, e assim permite “tornar traço visível, arquivo, espetáculo” (LAGNY, 2012, p. 23). Assim, quando uma memória é transformada em filme, o/a historiador/a ao analisá-lo e incorporá-lo como fonte, irá “fazê-lo falar, o transformará em documento cujo valor de verdade caberá a ele avaliar e cujo significado caberá a ele construir” (LAGNY, 2012, p. 24). A História do Tempo Presente problematiza a utilização do documentário como fonte histórica, pois como afirma Michèle Lagny, a homogeneidade cronológica entra em pauta:

O audiovisual acentua esta coexistência, pois a filmagem é contemporânea à cena filmada e produtora do vestígio de uma relação real entre duas presenças, a dos acontecimentos ou testemunhos filmados assim como daqueles que as filmam (cineastas e operadores, eles mesmos às vezes aparecendo nos registros) embora, como veremos adiante, seja frequentemente necessário produzir um trabalho prévio de encenação (LAGNY, 2012, p. 26).

 

Temporalidades que se entrelaçam eis que “o relato histórico audiovisual fornece um testemunho tanto do presente no qual ele é realizado, quanto daquele que ele tenta evocar, nos colocando deliberadamente numa temporalidade já desdobrada” (LAGNY, 2012, p. 31). A filmagem concomitante aos testemunhos, mas que evoca um passado, diante da produção e a recepção do documentário pelos espectadores no presente, faz com que todos/as estejam implicados em “um passado sempre presente na tela” (LAGNY, 2012, p. 27). Assim, ainda que “o historiador ou o operador desapareceram, mas seu testemunho e sua voz permanecem vivos na imagem e os fatos parecem sempre diretamente apreensíveis por novos espectadores” (LAGNY, 2012, p. 27).

No caso de “Negligência, de quem?” cada novo espectador e/ou espectadora, ao tomar conhecimento das denúncias apresentadas no documentário, mantém viva uma imagem de sofrimento e desespero. Somos ainda arrebatados por um sentimento de indignação diante de um Estado desrespeitoso. Neste sentido a negligência, é de todos e todas, que são incapazes de respeitar o modo de ser e viver indígena, mesmo que a vulnerabilidade seja uma triste realidade. Reitero que todos e todas somos responsáveis pela situação que hoje estão acometidos os povos indígenas em nosso país. Retirar as crianças de suas mães é enfraquecer a sua cultura, afastar a criança do convívio com a sua família, sua cultura, sua terra. Além de ferir muitas mães lentamente, todo o dia a espera do retorno de seus filhos retirados, literalmente, de seus braços.

Outra questão apontada por Michèle Lagny que afeta a História do Tempo presente é a capacidade de uma fonte audiovisual apresentar seu “poder emocional” (LAGNY, 2012, p. 36). Os testemunhos das mães indígenas, que exprimem suas dores e traumas diante dos afastamentos de seus filhos, em contraponto com os relatos sem sentimento do Juiz da Vara da Infância e da Juventude de Dourados, homem, branco e de meia idade, mostram como nossa sociedade é desigual, privilegiando uns em detrimento de outros, com uma lógica ocidental e excludente que justifica sua decisão pelo fato da criança abrigada estar em um ambiente seguro e limpo. Neste caso, o documentário traz o debate de uma questão que deveria ser mais abordada em nossa sociedade, pois trata de pessoas comuns já marcadas por experiências de vulnerabilidades, exclusões sociais e racismos estatais. O documentário ao mostrar cenas do cotidiano destas famílias que vivem em situação precária e com ausência de recursos materiais, mas que demostram afeto e preocupação com suas crianças, revelam “a temporalidade particular onde se desenvolve a história das pessoas por mais comuns que elas sejam, autorizando a irrupção de seres singulares no relato do conjunto da história” (LAGNY, 2012, p. 26). Assim como outras famílias indígenas, que vivenciam o afastamento e a retirada de suas crianças contra a vontade de seus familiares, estes parentes buscam de forma incansável o retorno das mesmas, pois entendem que é necessário crescer em suas comunidades para aprender e experienciar uma vida indígena, que as comunidades são essenciais.

Trata de mulheres que tem voz, mas que não são ouvidas, porque suas falas escancaram o quão terrível e excludente pode ser um sistema criado para proteger as crianças, mas que não considera as especificidades e as diferenças culturais. A produção audiovisual é uma alternativa para evidenciar a dimensão afetiva das narrativas das mulheres indígenas, pois por serem pessoas em estado de vulnerabilidade social pesa sob suas trajetórias a força de um racismo estrutural, uma evidente herança colonial que não considerava os indígenas como pessoas detentoras de direitos. É uma oportunidade, portanto, dessas mulheres, pessoas comuns, terem “o direito de ocupar a mesma imagem”, mesmo quando “não têm o direito de ocupar o mesmo lugar social” (LAGNY, 2012, p. 38).

Assim, mesmo que os direitos dessas mulheres como mães tenham sido negados pelo sistema de proteção do Estado, elas resistem e usam as suas imagens e falas contundentes e emotivas através do documentário. Expõem seus sentimentos e suas dores, diante do afastamento, retirada e posterior abrigamento de seus filhos, fato este que aconteceu de forma compulsória, contra a vontade dessas mães, as quais não quiserem ou querem abandonar seus filhos. Suas falas interrogam “não apenas a noção de presente, mas também da história do presente, que só pode falar do presente em relação a um passado ainda vivo, e por um futuro do qual ele já está repleto” (LAGNY, 2012, p. 40). Para essas mães, os momentos que puderam conviver com seus filhos, para algumas apenas o período da gravidez e do parto, é um passado que está vivo e presente. Um passado que não passa. Para elas o futuro é de luta e resistência, em que a esperança de um reencontro se renova a cada dia. E a certeza que não estão sozinhas nesta luta, pois os coletivos indígenas estão juntos, promovendo uma resistência coletiva diante de casos como este de um evidente racismo estrutural.

 

Algumas conclusões para futuros diálogos

 

“Pensa numa dor dolorosa”, é o grito de desespero de uma das mães que tiveram seus filhos retirados contra a sua própria vontade, buscando traduzir uma dor sem tradução. Pois se suas duas filhas, não podem viver nas condições que a maioria dos habitantes da Reserva Indígena de Dourados vive, de extrema vulnerabilidade social, em que falta comida, água potável e energia elétrica, dentre outros ítens básicos, porque o restante da família poderia? Quem tem direito a uma vida digna?

A retirada de crianças indígenas de suas famílias, além das dores e sofrimentos de todas as pessoas envolvidas, ocasiona o afastamento das mesmas de sua cultura, de suas tradições, de sua ancestralidade. Afasta da vivência junto à natureza, da possibilidade de pisar os pés na terra vermelha e brincar livremente em meio às plantas e os animais. A mãe do menino que teve o mesmo retirado de seus braços com apenas oito dias de vida, que na época do documentário analisado já vivia há três anos no abrigo, ressalta que a criança nunca tinha ido à aldeia indígena, o que o impedia de conviver com outras pessoas de sua etnia e de ter acesso a sua cultura. A irmã mais velha, que luta ao lado da mãe para ter seu irmão de volta ao convívio da família destaca que “em três anos em língua guarani, a criança já fala bem”, reforçando a importância do aprendizado da língua materna para o acesso aos signos culturais.

Mas a irmã pondera em relação à situação do irmão: “isso não é criança feliz”, pois para ela viver naquela condição é uma espécide de prisão, pois para ela o irmão é um prisioneiro que não pode enxergar a vida com “o olho dele”, pois ele pode enxergar apenas “aquele pisalado, o muro, as paredes, as telhas”, ou seja, para a menina o irmão está crescendo e aprendendo através da televisão aquilo que ela pode aprender junto à terra e à natureza, pois “só na televisão que ele vê as brincadeiras e os animais”. A menina afirma que na aldeia ele teria diferentes experiências e a vivência do “real, no olho dele”, conhecendo e vivendo junto aos animais e a terra. E finaliza dizendo que “a criança quer viver solta, com alegria, junto da terra, que a gente pisa e pode ver as plantas nascendo, crescendo”. Vivenciar sua cultura e conviver com os elementos que são importantes para a cultura Kaiowá, como a terra, as plantas e os animais, a criança tem liberdade para experienciar o mundo e pode conviver e aprender com as pessoas de sua comunidade. A mãe do menino finaliza dizendo que quando o menino pisar na terra indígena quer lhe “fazer solto”, ensinando a ele como “engolir o vento”. Para a família Kaiowá, as crianças precisam de experiências brincantes, de liberdade, de afeto, sendo que o “fazer indígena” é aprendido junto a sua a sua comunidade. Nesta história dolorosa para as pessoas indígenas, ter acesso a alimentação é  urgente, mas a vida não pode ser vivida longe da terra e da natureza. Aqui está evidente uma visão comunitária, em que o bem viver se faz na coletividade e junto a terra e natureza, e uma visão que foca apenas no indivíduo, na proteção da criança de forma individualizada. Precisamos fazer conversar estas duas visões de mundo, para uma infância mais digna e feliz.      

 

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Recebido em 15/09/2021.

Aceito em 08/11/2021.

 



[1] Doutora em Ciências Humanas – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora de História – Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Doutoranda em História – Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Brasil. E-mail: claudianichnig@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-9689-8112



[1] Disponível em: https://diplomatique.org.br/criancas-indigenas-retiradas-das-familias-o-culpado-e-o-proprio-governo/. Acesso em: 14.09.2021.

[2] Segundo Silvana Nascimento este foi termo utilizado pela mídia que noticiou o caso à época (2019).

[3] Para saber mais sobre o indígena brasileiro e a formação do Estado Nacional ver: LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

[4] Disponível em: https://cimi.org.br/2021/09/mulheres-indigenas-nao-violencia-genero-marco-temporal/. Acesso em: 15.09.2021.

[5] Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/802672-comissoes-debatem-violencia-contra-mulheres-indigenas/. Acesso em: 15.09.2021.

[6] O documentário estreou em 24 de novembro de 2020 e tem 39 minutos e 26 segundos de duração. Disponível em: https://www.youtube.com/c/diplobrasil/videos. Acesso em 06.07.2021.

[7] Disponível em: http://www.muzungutv.com/es/quienes-somos/. Acesso em 06.07.2021.

[8] Disponível em: https://www.youtube.com/c/diplobrasil/about. Acesso em 06.07.2021.

[9] Joana Moncau é uma cineasta e jornalista brasileira. Disponível em: http://www.muzungutv.com/es/authorsmz/joana-moncau/. Acesso em: 05.07.2021.

[10] Antropólogo e professor na Universidade Federal do Sul da Bahia-UFSB.

[11] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KrUJcPRHS9c&t=61s. Acesso em: 15.09.2021.

[12] Brasil. Lei 8069/1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 12.11.2021.

 

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