Pedofilia, entre o real e a ficção: possibilidade de diálogo entre a revista Veja e o cinema (1996 – 2010)
Pedophilia, between reality and fiction: the possibility of dialogue between Veja magazine and cinema (1996 - 2010)
Elisangela da Silva Machieski[1]
Resumo
A pedofilia não está nas definições legais; ela não consta como crime. O que se pode considerar crime são as práticas que dela resultam. Cotidianamente, porém, ouvimos a expressão ‘crime de pedofilia’. Ao utilizar como fonte o cinema e a revista Veja, dentro do recorte temporal selecionado entre 1996 e 2010, apresenta-se como objetivo a percepção pela qual o termo pedofilia foi entendido. Para refletir sobre o uso do termo em questão, será utilizada a análise por oposição, que consiste em entender o conceito em sentido que se opõe ao de outros termos utilizados para retratar a violência sexual contra crianças e adolescentes. Os resultados obtidos se encaixam na perspectiva de que o conceito de pedofilia é utilizado de maneira errônea no senso comum, no cinema e na Revista Veja.
Palavras-chave: Pedofilia; Violência sexual; Revista Veja; Cinema.
Abstract
Pedophilia is not within the legal definitions; it does not appear as a crime. What can be considered a crime is the practices resulting from it. Every day, however, we hear the expression 'crime of pedophilia'. The objective is, by using cinema and Veja magazine as a source, to comprehend how the term pedophilia was understood within the selected time frame from 1996 to 2010. To reflect on the use of the term in question, the analysis by opposition will be used, which consists of understanding the concept in a sense that is opposed to other terms used to portray sexual violence against children and adolescents. The results obtained fit the perspective that the concept of pedophilia is misused in common sense, in cinema and Veja Magazine.
Keywords: Pedophilia; Sexual violence; Veja Magazine; Cinema.
A pedofilia é um tema atual, presente na mídia. Não raramente, ao abrir jornais, revistas ou até mesmo ao assistir a noticiários televisivos, nos deparamos com essa temática. Embora seja um assunto que se faz presente, temos, muitas vezes, receio de abordá-lo, e até de mencioná-lo. Por conta dessa reserva, que faz desse um dos assuntos mais polêmicos da atualidade – talvez e justamente por ser dos mais noticiados – escrever sobre ele representa para este artigo um imenso desafio. Considerado por muitos como um tema subterrâneo, o caminhar sobre o labirinto da escrita sobre a temática iniciou-se em passos inseguros.
Inicio com a proposta de abordar a pedofilia no cinema, o primeiro passo foi relacionar os filmes que abordavam essa temática; alguns, de forma direta; outros, por insinuação. Iniciada a sessão de cinema, a pipoca ficou de lado. Sentia um embargo na garganta: como trabalhar com um tema tão delicado? Como abordar essa violação aos direitos de crianças e adolescentes?
Em um primeiro momento busquei correlacionar o filme ao contexto social e temporal em que surgiu. Um grande número de obras cinematográficas que abordam a temática pedofilia pode ser situado na última década do século XX e na primeira do século XXI. Isso talvez possa refletir o elevado número de reportagens, noticiários e publicações relacionados à questão. Este fato serviu de baliza para o recorte temporal do presente trabalho – entre 1996 e 2010 – e sobre como abordar a temática em questão.
Trabalhar com cinema não foi para mim uma das tarefas mais fáceis. A ideia de casar cinema com mídia impressa, no entanto, ofereceu-me uma possibilidade de chão, de terra firme. Assim, busquei estabelecer elos entre os documentos, construir pontes, estradas que caminhavam, na maioria das vezes, de forma paralela, ainda que por vezes se cruzassem. Perseguir, entre imagens e reportagens, uma ordem a respeito do tema significou perceber a existência de uma relação entre mídia, cinema e realidade, guiados pelo propósito de encontrar um fio condutor entre realidade e ficção.
A revista Veja e o cinema, fontes selecionadas para este artigo, em momento algum foram pensadas de maneira dicotômica, ou seja, cinema, como ficcional, e as reportagens, como realidade. Ambos foram vistos como produtos construídos dentro de determinado recorte de espaço e tempo, e interpretados como construções históricas. A escolha pela revista Veja se deveu ao fato de ser um veículo de circulação nacional, e também por sua disponibilidade on-line, o que facilitaria a pesquisa. Ao elencar a revista como fonte, tive o entendimento de que sua produção esteve inserida dentro de um contexto e impregnada pelos discursos que nele circulam. O discurso, por isso, pode ser interpretado como via de mão dupla: ao mesmo tempo em que é formador de opinião, sofre influência dos discursos que circulam no meio no qual está inserido.
Já o cinema lida com sensações e emoções. É principalmente percebido como uma forma de expressão cultural, mas também pode ser pensado como um meio de representação. Sendo assim, não diferente das revistas, deve ser analisado como ponto de observação do contexto em que foi produzido. Tentarei aqui pensá-lo no contexto espacial e temporal, aos muitos aspectos vinculados a determinada sociedade historicamente localizada, pois, mesmo a obra mais fantasiosa apresenta em meio ao seu enredo ideologias, imaginários, mentalidades, além de relações de poder, hierarquias sociais e formas discursivas de determinado contexto (BARROS, 2011, p. 180).
O objetivo deste trabalho, ao utilizar como fontes o cinema e a revista Veja, foi perceber a maneira como se entendia e empregava o termo pedofilia. Para refletir sobre o uso desse termo utilizei a análise por oposição, método empregado por Tatiane Landini (2003), que consiste em entender um conceito por antagonismo ao de outros termos utilizados para retratar determinada realidade, no caso a violência sexual contra crianças e adolescentes. Para facilitar o processo, procurei pelos pontos em que os discursos dialogavam, mesmo quando em posições distintas, ou seja, em momentos em que se entrelaçavam ou em que se repeliam. Pensar a análise por oposição com os termos/conceitos utilizados pela revista Veja não pareceu tarefa difícil, aliás, um tanto árdua. Mas, e como pensar isso no cinema?
Parto da informação de que os filmes serão trabalhados em série; isso talvez implique uma análise não aprofundada e individualizada de cada peça e seu enredo. O processo de seleção dos filmes muito contribuiu para a ideia que germinava, isto é, para a proposta de coletar indicações de filmes que abordassem a temática. Encontrei algumas referências na internet; outras, por indicação de pessoas próximas e até por sugestão de funcionários/as da locadora. Eu precisava perceber, pelas sugestões dessas pessoas, o que entendiam por pedofilia e, a partir disso, empregar com os filmes o procedimento de análise (oposição) utilizado com os artigos da revista. O procedimento me permitiria entender como os filmes sugeridos abordavam esse conceito e sua relação com as diversas formas de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Os filmes selecionados foram, por ordem cronológica, os seguintes: “Sleepers: A vingança adormecida”, 1996, Estados Unidos, direção de Barry Levinson; “Sobre meninos e lobos”, 2003, Estados Unidos, direção de Clint Eastwood; “Mistérios da carne”, 2004, Holanda, direção de GreggAraki; “O lenhador”, 2004, Estados Unidos, direção de Nicole Kassell; “Anjos do sol”, 2006, Brasil, direção de Rudi Lagemann; “Dúvida”, 2008, Estados Unidos, direção de John Patrick Shanley e “Confiar”, 2010, Estados Unidos, direção de David Schwimmer. A seleção dos filmes estabeleceu o recorte temporal do artigo e, consequentemente, definiu as edições da Revista Veja que seriam utilizadas na investigação.
A revista Veja, fundada no final da década de 60 e publicada semanalmente, é um dos maiores veículos de circulação nacional. O procedimento metodológico consistiu em buscar no site do acervo digital da publicação[1], dentro do recorte temporal selecionado, 1996 a 2010, reportagens que tivessem como temática a pedofilia e a violência sexual infantojuvenil. O termo, por sua abrangência, é amplo e junta um número diverso de categorias. Neste trabalho, foram utilizados os termos: violência sexual infantojuvenil, estupro, abuso sexual, atentado violento ao pudor e “prostituição” infantojuvenil[2].
Não muito diferente foi o procedimento em relação aos filmes: foram selecionados sete filmes-indicações, relacionados à temática da pedofilia, que abordam diferentes tipos de violência sexual. Assim, tanto os filmes quanto as reportagens foram analisados pelo método de oposição, que consiste em identificar o termo pedofilia contrapondo-o a outros utilizados para retratar a violência sexual contra crianças e adolescentes. Esta análise tem por objetivo perceber como a pedofilia é entendida na revista Veja e nos filmes, procurando-se responder à questão: O que é pedofilia? Tentei identificar, ainda, o pedófilo, o/a agredido/a, onde, como e por que acontecem essas situações/crimes. Propostas essas inspiradas no trabalho da professora e psicóloga Jane Felipe pontuou, a partir de uma abordagem pós-estruturalista, que embora exista um esforço em categorizar ou normatizar alguns comportamentos relacionados à sexualidade, a partir de campos de conhecimento específicos, eles não são fixos e escapam a essas regras e aos sentidos que lhes são conferidos (FELIPE, 2006).
Antes de partirmos em direção às fontes, há um ponto considerado indispensável para pensar esse trabalho: articular as leis brasileiras que criminalizam as práticas de violência sexual contra crianças e adolescentes. Para esta reflexão, foi necessário percorrer um trajeto pela legislação brasileira relativa ao público infantojuvenil.
A criança nas linhas e entrelinhas da lei – violência sexual no Brasil
Atualmente, as crianças e adolescentes são protegidos de maneira integral através de leis, mas nem sempre foi assim. A legislação referente à infância e à adolescência, até a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, pode ser considerada repressiva e assistencialista.
A primeira interpretação dessa característica parece provir das tensões sociais do tempo e do meio em que foram criadas. É possível apontar que as modificações não aconteceram apenas no judiciário, como algo resultante de um aperfeiçoamento do sistema legal, mas que corresponderam a transformações sociais. Cabe ressaltar que em diversas temáticas se podem perceber as modificações referentes às leis destinadas à proteção de crianças e adolescentes. Aqui, me aterei ao quesito violência sexual.
Violência sexual é um termo amplo. Ao relacioná-lo às práticas sofridas pelo público infantojuvenil, pode ser associado a possíveis ramificações, como: pornografia; tráfico para fins sexuais e exploração sexual infantojuvenil; incesto; estupro; abuso sexual. Estas formas de violência podem ser categorizadas em dois grupos distintos: a violência sexual comercial e a não-comercial. O primeiro grupo está vinculado a fins lucrativos; já o segundo, é formado por violências que não visam ao lucro, configurando-se apenas como abuso sexual.
Com base nas ramificações desse tipo de violência, um dos caminhos é o mundo das leis. Evidentemente, as alterações terão decorrido dos trajetos percorridos no trato da violência sexual sofrida por esse público. Para desenvolver a tarefa, utilizarei a legislação específica para a infância e adolescência: os Códigos de Menores de 1927, de 1979, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990[3].
O primeiro código, implementado em 1927, é um tanto ambíguo, pois, ao mesmo tempo em que se afirmava como protecionista, tinha em seu corpo inúmeros dispositivos inspirados no Código Penal. Pode-se perceber uma forte conotação moralista em suas leis, principalmente quando se refere a questões sexuais. Nele, pouco ou quase nada se encontra sobre violência sexual não-comercial. Já a prática da “prostituição” aparece de maneira indireta: a punição é destinada aos “menores” e a seus responsáveis. No artigo 30, a “prostituição” infantojuvenil é relacionada à libertinagem. Destaco o inciso b, que caracteriza como libertinos os/as crianças e adolescentes que “se entregam à prostituição em seu próprio domicílio, ou vivem em casa de prostitutas, ou frequentam casa de tolerância, para praticar actos obscenos” (CÓDIGO DE MENORES, 1927). A punição para essas crianças e adolescentes, quando pegos em atos de libertinagem, variava entre repreendê-los, entregá-los às pessoas que detinham sua guarda, confiá-los/as, até completarem 18 anos, a uma pessoa idônea, a uma sociedade ou instituição de caridade. Entretanto, se a libertinagem fosse caracterizada como algo habitual, deveriam ser internados, até maioridade, em escola de preservação.
O Código de Menores de 1927 também pode ser interpretado como uma tentativa de regulamentação do trabalho realizado por crianças e adolescentes, mas sem o intuito de proibi-lo. Exemplo disso é o artigo 112, quando afirma:
Nenhum varão menor de 14 anos, nem mulher solteira menor de 18 anos, poderá exercer occupação alguma que se desempenhe nas ruas, praças ou logares públicos; sob pena de ser apprehendidoe julgado abandonado, e imposta ao seu responsável legal 50$ a 500$ de multa e dez a trinta dias de prisão cellular (CÓDIGO DE MENORES, 1927).
Embora se refira, de maneira direta, ao que podemos chamar de regulamentação do trabalho infantojuvenil, pode-se estabelecer uma ligação indireta com a “prostituição” quando associa a privação de trabalho na rua à questão de moralidade. À época, a jurisprudência considerava o vaivém de crianças e adolescentes pelas ruas como um ato de desvirtuamento moral. Outro ponto que merece atenção é a diferença de idade entre o sexo masculino e o feminino. Enquanto aos garotos acima de 14 anos era permitido para realizar tarefas em lugares públicos, às meninas só se permitia com idade superior aos 18 anos. Esta proibição pode ser interpretada como uma forma de prevenir que a adolescente perdesse a honra e a moralidade, pois, na rua, espaço em que seria possível encontrar todo o tipo de pessoas, poderiam ser tomadas por libertinas.
A punição para as práticas de violência sexual, quando não a repressão às crianças e adolescentes, caía sobre seus responsáveis, como aponta o artigo 143: “Si o menor vier a soffrer algum attentado sexual, ou se prostituir, a pena póde ser elevada ao dobro ou ao triplo, conforme o responsavel pelo menor tiver contribuido para a frequenciaillicita deliberadamente ou por negligencia grave e continuada” (CÓDIGO DE MENORES, 1927).
Pode-se perceber, neste artigo, uma única menção do código, sob o termo atentado sexual, ao que hoje se chama de abuso sexual. A punição se destinava aos responsáveis, pais ou tutores, com variações de acordo com o nível de negligência. Nesse ponto, é necessário refletir que o código repreende a criança/adolescente, pune o responsável, porém, em momento algum faz referência a quem faz uso dessas práticas. Não seria ele/a passível de punição?
O Código de Menores de 1979 tem sua base na teoria da situação irregular, segundo a qual os/as “menores” – crianças e adolescentes fora da norma, ou seja, em situação de abandono e/ou de rua, carência, vitimização e infração penal – eram vistos e tratados como uma patologia social. Por isso, pode ser interpretado como um meio de regularização da situação do/a “menor” em caráter de assistência, proteção e vigilância.
Nesse código de leis, há três pontos que podem ser vinculados à temática da violência sexual. Eles aparecem de maneira indireta, todos relacionados com a “prostituição”. O primeiro aparece no artigo 2, inciso III – b, quando aponta como “menor”, em situação irregular, aquele/a que se encontra em “exploração em atividade contrária aos bons costumes”, referência não-explícita que pode ser vinculada à “prostituição” (CÓDIGO DE MENORES, 1979). Afinal, a “prostituição” sempre foi alvo de questões morais e era, por essa ótica, interpretada como contrária aos bons costumes, fora do padrão de moralidade. Em sequência, pode-se pensar o artigo 56, que proíbe a hospedagem de “menor” de 18 anos, desacompanhado dos pais ou responsável, em hotel, motel, pensão ou estabelecimento congênere. Pode-se interpretar a proibição como uma maneira de restringir a “prostituição de menores”, supondo-se que não restariam muitos lugares para que essa prática fosse realizada (CÓDIGO DE MENORES, 1979).
Por último, o artigo 51 que informa que nenhum “menor” com idade inferior a 18 anos não poderiam participar de espetáculos públicos, nem mesmo aos seus ensaios, quando sem autorização dos pais ou responsáveis. Para a jurisprudência, esses ambientes estavam fora dos padrões de moralidade. Acreditava-se que coexistissem, nesses espaços, atividades vinculadas à “prostituição” ou que as facilitassem (CÓDIGO DE MENORES, 1979).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, implantado em 1990, diferente dos códigos antecessores, destinados ao público infantojuvenil, tem sua base fundada na doutrina de proteção integral. Ao se iniciar as reflexões sobre violência sexual no Estatuto, é preciso ressaltar que o caráter moralista presente nos códigos anteriores foi ignorado pelo Estatuto. Logo, passa a prevalecer a vitimização das crianças e adolescentes. Isso fica evidente no artigo 5, que garante que: nenhuma criança ou adolescente será alvo de negligência, exploração, discriminação ou de qualquer forma de violência (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, 1990)[4].
Merece destaque o artigo 130, assim disposto: “Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum”. Este artigo apresenta dois pontos que merecem reflexão. O primeiro, por tratar de uma violência sexual não-vinculada à prática da exploração sexual; o segundo, pelo fato de considerar a hipótese de o abuso sexual ser praticado por pais ou responsáveis, ou seja, ser tipificado como violência sexual intrafamiliar.
No que diz respeito à “prostituição” ou exploração sexual, diz o artigo 244, inciso A: “Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2o desta lei, à prostituição ou à exploração sexual: Pena – reclusão de quatro a dez anos, e multa”. Esta disposição, incluída no Estatuto, determinada pela lei n. 9.975, de 2000, lida de forma explícita sobre a temática. No que se refere à penalidade, diferentemente dos códigos de menores, impõe pena ao proprietário e ao gerente do local onde acontecem as referidas práticas, assim como aplica a pena de cassação da licença de funcionamento do estabelecimento. O artigo 239 afirma que promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro: pena – reclusão de quatro a seis anos –, e multa. Ainda que não se refira de maneira explícita à temática da “prostituição”, pode ser a ela vinculada, tendo em vista o crescente número de crianças e adolescentes enviados de forma ilegal para fins vinculados à exploração sexual.
No ano de 2003, foi incluída no Estatuto pela lei n. 10.764, que aborda formas de violência sexual via internet. Podemos atribuir o surgimento da referida lei ao aumento da circulação de fotografias pornográficas e/ou de sexo explícito, que envolvem crianças e adolescentes. Em 2008, a referida lei passou por mudanças de redação, com a inclusão de novos incisos da lei nº 11.829, fato que atendia as necessidades da época. O artigo 240 condena quem (re)produz fotografias, filmes e imagens, dá sequência sobre a temática prevista no artigo 241, que pune quem vende, expõe ou até mesmo armazena fotografias de pornografia infantojuvenil. O inciso D condena quem “aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso”, por qualquer meio eletrônico, inclusive salas de bate-papo.
São evidentes as diferenças entre os códigos de menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Os códigos de menores tinham a preocupação de normalizar a situação dos “menores”, propunham livrar as ruas da circulação dos/das “menores” e estabelecer parâmetros morais de controle para com o público infantojuvenil. O Estatuto, por sua vez, não mais dominado por questões morais, considera a criança e/ou adolescente como ser em formação, com necessidade de proteção integral face aos riscos da sociedade a que estaria exposto/a, inclusive a violência sexual.
Pedofilia: na telinha e na telona
O termo pedofilia provém do grego, paidos-philia, que significa amor/carinho (philia) pela criança (pais/paidós), sem conotação perversa. Atualmente, o termo passou a ser utilizado para designar o desejo/atração sexual de um adulto por uma criança. A pedofilia não está associada a uma definição legal, ou seja, não é contemplada nos termos jurídicos, mas a um parecer clínico.
Apresentada como uma doença pela Organização Mundial de Saúde, registrada entre os transtornos da preferência sexual, identificada, sob código F65.4 da Classificação Internacional de Doenças, como preferência sexual por crianças, quer se trate de meninos, meninas ou de crianças de um ou do outro sexo, geralmente pré-púberes[5]. Já no discurso utilizado pela Psicologia, com base no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV, é apresentada como um distúrbio parafílico, identificado em pessoas adultas que sentem atração sexual por crianças, geralmente, em período de pré-púbere.
Podemos concluir que pedofilia não consta na legislação como crime; o que é ou pode vir a ser criminalizado são as práticas decorrentes dessa situação. É importante ressaltar que nem todo adulto que comete abuso sexual contra uma criança é um pedófilo, assim como nem todo pedófilo coloca em prática o seu desejo; ele pode ficar apenas no plano das fantasias.
Mesmo que não conste na legislação, a pedofilia tem sido vista como um grande problema, pois é considerada responsável pelo grande número de crianças e adolescentes que sofrem/sofreram violência sexual. Com base nas afirmações acima, usa-se equivocamente o termo ‘crime de pedofilia’, tanto pelos meios de comunicação, como pelo senso comum. Faz-se muita confusão entre pedofilia e outros termos relacionados aos diferentes tipos de violência sexual contra a criança e o adolescente. Isto posto, parte-se rumo às fontes, com o intuito de perceber como a pedofilia é interpretada pelo cinema e pela revista Veja.
Na telinha, ao folhear as páginas – virtuais – da revista, a palavra pedofilia, ao ser selecionada, apareceu, dentro do recorte temporal selecionado, oitenta e três vezes, sendo cinquenta e quatro vezes em edições diferentes. O termo abuso sexual infantojuvenil apareceu vinte e oito vezes em vinte e oito edições. Salienta-se que esta expressão é a que mais apareceu relacionada a outros termos, principalmente ao de pedofilia.
Nas telonas, os filmes selecionados tratam de diferentes formas desse tipo de violência contra crianças e adolescentes. Embora todos tenham sido indicados pela temática relacionada à pedofilia, apenas o filme “O lenhador” tratou especificamente dos dilemas do tema. Em “Mistério da carne”, foi possível perceber a questão em relação ao treinador e à forma como abordou seus alunos de beisebol. A trama, porém, deu maior ênfase ao que aconteceu após o abuso sexual, sofrido pelas personagens Brian e Neil. “Sobre meninos e lobos” e “Sleepers: a vingança adormecida” trataram de abuso sexual, com uso de muita violência. “Dúvida” tocou no tema de abuso sexual, mas de uma forma muito sutil; apenas insinuou a violência sexual de um padre para com um menino. “Confiar”, o mais recente dos filmes, foi o único que abordou a questão da internet. E, por fim, “Anjos do sol”, lidou com a temática da exploração sexual infantojuvenil no Brasil.
A reportagem “Luta exemplar”, datada de 30 de outubro de 1996, narrou a prisão de Vitor Baumann, rico e poderoso industrial, que vivia no Sri Lanka. O termo molestar foi aqui utilizado para caracterizar o abuso sexual. Embora a matéria sugerisse que sua prisão tenha desencadeado um movimento de luta contra a pedofilia, em momento algum o personagem foi chamado de pedófilo. Isto também aconteceu na reportagem “Gênio no Xadrez”, de 26 de fevereiro de 1997, que apontou Daniel Carleton Gajdusek, neurologista americano, como “abusador de menores”. Diferente dos dois casos anteriores foi o caso de Dutroux, na Bélgica, que, na reportagem datada de 27 de novembro de 1996, teve seu nome substituído pela designação de pedófilo ao longo de todo o texto. É válido frisar que Dutroux era eletricista desempregado, suspeito de envolvimento com produção e distribuição de pornografia infantojuvenil e admitiu o assassinato de duas meninas.
A primeira reportagem sobre pedofilia em território nacional estabeleceu ligação entre Brasil e França, mais precisamente entre Argenil Pereira e Gérad Lebrun. O primeiro foi apontado como alguém que vivia de exploração sexual; o segundo, como possível pedófilo. Pereira, 42 anos, gari desempregado, acusava Lebrun de ter encomendado um material sobre exploração sexual. Cerca de dezessete fotografias pornográficas, nas quais apareciam duas meninas, de 7 e 9 anos.
Em solo brasileiro, a reportagem “Agressão à Infância”, de 17 de fevereiro de 1999, noticiava a prisão de Leonardo Chain, 27 anos, biólogo e monitor de colônia de férias, sob a acusação de atentado violento ao pudor. Em seu carro, após denúncia feita pelo dono do acampamento, foram encontradas dezenove fitas de vídeo, cento e quarenta e três fotos pornográficas, quarenta cuecas infantis. Em um dos vídeos, Chain apareceu fazendo sexo oral em um adolescente de 12 anos. Chain confessou a autoria do crime e acrescentou: “Na Grécia Antiga, a pedofilia era comum. Platão nunca foi condenado pelo que eu fiz... o problema é que a sociedade atual não aceita o pedófilo”. A revista indagava: O que faz com que um rapaz bonitão, de classe média alta, inteligente, formado pela Universidade de São Paulo, como Chain, acabe se envolvendo com a pedofilia? Nessa reportagem foi apresentado o perfil psiquiátrico de um pedófilo:
Aparentemente são pessoas desprovidas de qualquer agressividade, incapazes de praticar atos de violência aberta. Mas são também pessoas com um grande complexo de inferioridade que só conseguem exercer um mínimo de sedução e autoridade com garotos e garotas. (REVISTA VEJA, 1999, p. 85)
Chain declarou que fazia parte de um grupo chamado boylovers – amantes de meninos – que não faziam uso de violência e sim de conquista da confiança dos garotos. Chain, além de encaixar-se no perfil, assumiu abertamente que era um pedófilo e em momento algum a revista associou a ele ou utilizou o termo para designá-lo.
Assumido como pedófilo, Walter vivia em crise consigo mesmo no filme “O Lenhador”, de 2004, o único que abordou o tema de maneira direta. Após doze anos de reclusão por abuso sexual, o personagem, em liberdade condicional, conseguiu um emprego em uma madeireira e arrumou um lugar para morar – um apartamento em frente a uma escola. O filme é bem polêmico, pois mostra a luta de um pedófilo para conseguir controlar seus desejos e superar as piadinhas e ofensas dos colegas de trabalho. Entre idas e vindas, Walter venceu o desejo de abusar de uma adolescente que ele conheceu em um parque enquanto a garota observava pássaros. Nesse mesmo dia, a caminho de casa, ele encontrou alguém que havia observado, em diferentes ocasiões, da janela de sua casa, outro pedófilo. O resultado foi uma surra no sujeito.
“Sacerdotes do Pecado”, assim foi noticiada a primeira reportagem que apresenta a ligação entre a pedofilia e a Igreja, de 27 de março de 2000. Segundo a notícia, a Igreja católica, nos Estados Unidos, além de moralmente desestabilizada, ficaria também financeiramente, pelo valor das multas que deveria pagar às vítimas de abusos sexuais cometidos por seus padres. Aproximadamente após um mês, no dia 24 de abril de 2002, foi editada uma reportagem em caráter especial sobre a convocação de cardeais pelo papa. O tema foi a pedofilia de batina. O termo abuso sexual foi utilizado para designar as ações dos padres. O escândalo envolvia padres de vários países. Na semana seguinte, 1° de maio de 2002, foi publicada a reportagem “Os Cardeais decepcionaram”, pois a cúpula da Igreja católica iria expulsar apenas os padres pedófilos contumazes. Fosse apenas a primeira vez, o padre poderia continuar na Igreja; seria apenas transferido para outra paróquia. A reportagem trouxe a definição do termo pedofilia do ponto de vista clínico, afirmando ser o pedófilo uma pessoa que sente atração sexual apenas por crianças de no máximo 12 ou 13 anos de idade.
O filme “Dúvida”, de 2008, trava um diálogo com as reportagens que trataram do tema ‘pedofilia de batina’. O filme se passou na escola Santo Nicholas, ano de 1964. A escola aceitou o primeiro aluno negro, Donald Miller. Ao passar por uma série de humilhações, o garoto foi ajudado pelo padre Flynn, o que despertou as atenções da irmã Aloysius, que dirigia a escola com mãos de ferro. No desenrolar do filme, a relação entre o padre e o garoto acontecia em gestos sutis, o que explica, inclusive, o nome do filme. Algumas cenas, porém, levaram a crer que houve abuso sexual. O padre pediu afastamento da escola e da Igreja. Ao analisar o tipo de relação que o padre estabeleceu com o garoto negro, pode-se pensar que ele se encaixe no perfil de pedófilo: ele não faz uso de violência, conquista na base da confiança e o enredo deixa subentendido que isso já aconteceu em outras paróquias.
O termo violência sexual foi utilizado pela primeira vez em 1998, mas em contexto geral, não especificando violência sexual infantojuvenil. A expressão, destinada exclusivamente ao público infantojuvenil, apareceu na reportagem do dia 15 de março de 2000.
Aline tem sete anos, aos seis enfrentou um demorado interrogatório. Sozinha em depoimento a dois promotores e um juiz de menores do Rio de Janeiro, contou o detalhe de como o seu pai a dopava com tranquilizantes e, no banco traseiro do carro, dava início a uma interminável sessão de sevícias sexuais. (REVISTA VEJA, 2000, p. 104)
Assim começava a reportagem que abordou a temática da violência sexual intrafamiliar em seu contexto geral e tratou de algumas de suas ramificações. Com referência à violência sexual, a reportagem apresentou a estimativa de que 90% dos agressores foram pais ou padrastos; as vítimas eram, em 90%, meninas e metade delas tinha entre 2 e 5 anos. Embora a grande maioria dos envolvidos, agressor e vítima, fossem da classe baixa, a reportagem apontava a Clínica Violência, estabelecimento privado que atendia a crianças da classe média-alta, vítimas de abuso físico e sexual. Os prontuários revelam que, em 55% dos casos, a vítima sofreu abuso sexual. Em 87% das denúncias, descobriu-se que o algoz da criança era o pai biológico, e esses tinham curso superior. Embora apareça o termo violência sexual, o termo mais utilizado no texto foi abuso sexual. Em outras substituições do termo, faz-se uso de expressões que remetiam a valores morais, como foi o caso narrado na abertura da reportagem. Em momento algum apareceu o termo pedofilia, nem mesmo o termo incesto, apesar de o abuso sexual ter sido cometido pelo pai biológico, diferentemente da reportagem “Quando a infância é um inferno”, de 5 de maio de 2004, que, ao tratar da violência sexual infantojuvenil em âmbito doméstico, utilizou o termo incesto.
A reportagem apresentou um livro de psiquiatras que se debruçaram sobre os prontuários de atendimento de crianças com idade entre 2 e 9 anos, para tornar público o drama do incesto sob o ponto de vista das crianças. Faz parte da obra um conjunto de trinta imagens desenhadas pelas vítimas. Algumas crianças não entendiam a situação pela qual estão passando; outras não conseguiam explicar e assim elas desenhavam. O medo é comunicado através de seres monstruosos ou, ao contrário, de situações absurdamente realistas, povoadas por pessoas com órgãos sexuais enormes. A reportagem em questão apontou o caso de uma mãe que, ao descobrir que sua filha era abusada por seu companheiro e pai da criança, fez a denúncia, mas, por falta de provas, o companheiro não foi preso. A reportagem afirmava que, para caracterizar o abuso sexual, seria necessária a conjunção carnal.
Por outro lado, a matéria “A carícia que destrói a inocência”, de 31 de janeiro de 1996, traz um parecer diferente sobre a questão do abuso sexual. O psiquiatra Claudio Cohen diz: o que define o abuso sexual não é o ato em si, que na maioria das vezes dispensa a relação sexual completa entre o adulto e a criança, mas a intenção com que é praticado. Isso no parecer psiquiátrico em relação à vítima, porque aos olhos do judiciário é um crime difícil de ser provado, principalmente quando não deixa marcas físicas, palavras de Francisco José Parahiba Campos, juiz da Vara da Infância e Juventude do Fórum de Pinheiros (SP), na mesma reportagem.
O filme “Mistérios da Carne”, 2004, pode ser pensado em associação com a reportagem “Quando a infância é um inferno”. Apesar de fazer uma menção à pedofilia, o filme aborda a temática do abuso sexual. Claro que o abuso sexual, neste caso, pode ser relacionado como uma prática resultante da pedofilia. Brian e Neil são personagens desse filme, com personalidades opostas; eles têm em comum o treino de beisebol. Neil era o melhor do time e o preferido do treinador; Brian, era um menino tímido, que estava no time por ordem do pai. Um dia Brian acordou a poucos metros de casa e com o nariz a sangrar; não conseguia lembrar o que se tinha passado nas últimas horas, mas depois daquele dia passou a ter medo do escuro e a fazer xixi na cama. Neil passava boa parte do tempo com o seu treinador; tinham uma ligação muito forte. Ambos cresceram. Brian acreditava ter sido abduzido por extraterrestres e os desenhava de diversas maneiras e cores, mas em todos os desenhos os extraterrestres usavam tênis de beisebol.
Assim como as crianças da reportagem, Brian não sabia como lidar com a questão do abuso do qual fora vítima durante a sua infância. Criou em sua memória um lapso. Qualquer situação que o remetesse ao ocorrido fazia sangrar seu nariz. Já para Neil, o abuso sexual foi interpretado de outra maneira, um pouco mais polêmica, talvez; ele era apaixonado pelo treinador; gostava de todos os momentos que passaram juntos e muito sofreu quando ele foi embora. Brian lembra-se de Neil e achava que ele poderia ajudar a recuperar a memória daquele curto espaço de tempo. Os dois, agora com 18 anos, sentados no sofá da casa do ex-treinador, começavam a entender que suas lembranças eram bem diferentes da realidade vivida.
Vinculados à temática de abuso sexual, porém diferentes de outros filmes, “Sobre meninos e lobos” e “Sleepers: a vingança adormecida” não possuem vínculo algum com a pedofilia, mas retratam de forma muito cruel o abuso sofrido por seus protagonistas. No primeiro filme, três amigos – Jimmy, Sean e Dave – brincavam na rua, quando decidiram deixar seus nomes gravados na calçada, pois o cimento ainda estava fresco. Jimmy e Sean escreveram seus nomes; o nome de Dave ficou pela metade, pois foi interrompido por um possível policial que parou em um carro não oficial; depois de repreender os meninos, o policial levou Dave com ele. No carro, estava um homem que, ao lhe apertar a mão, mostra um anel que tem referência religiosa, trata-se, possivelmente, de um membro da Igreja. Dave foi estuprado por dias seguidos e somente se livrou da situação porque conseguiu fugir. O fato de não ter conseguido completar seu nome pode ser interpretado como alusão à maneira como o menino se sentiria depois do ocorrido naquele dia: pela metade ou incompleto. De uma forma muito cruel, o filme “Sleepers” lida com a questão do abuso sexual. Quatro amigos adolescentes resolvem fazer uma brincadeira e feriram gravemente um homem. Condenados a ir para um centro de reabilitação, sofreram as mais terríveis formas de violência, inclusive a sexual. Assemelhavam-se a sessões de tortura: eles eram levados a um local afastado, uma espécie de porão e lá eram abusados sexualmente. Este caso nada tem a ver com pedofilia. Ele pode ser associado à questão de abuso de poder, de um homem para com um adolescente, como também de um policial sobre um detento, inclusive quando relacionado ao fato de obrigá-los a realizar favores sexuais.
O termo pedofilia apareceu, também, vinculado à pornografia infantojuvenil na internet; assim mostra a reportagem “Rede de Horrores”, de 9 de setembro de 1998. O site Wonderland, uma rede mundial com aproximadamente cem mil fotos, resultou na prisão de cem pessoas intituladas ‘tarados cibernéticos’. No Brasil, a divulgação de fotografias ou vídeos pornográficos apareceu nas reportagens: “Entre a lei e a censura”, de 23 de julho de 1997, que relatou a apreensão de um computador, na Bahia, e a retirada de sites pornográficos do ar, e “Rede Proibida”, que apontava o endereço da USP como hospedagem para fotografias de pornografia infantojuvenil, contendo aproximadamente quinhentas imagens desse cunho. Por fim, a reportagem afirmou que pornografia infantil era crime e o responsável poderia ter como penalidade quatro anos de reclusão. Merece destaque, por fazer menção a uma rede pedófila no Brasil, a reportagem “Eles têm dinheiro, educação e família. E se divertiam trocando fotos de crianças torturadas sexualmente”, datada de 10 de maio de 2000. Um economista, um geólogo, um funcionário público federal, estudantes dos melhores colégios e universidades do Rio de Janeiro, e uma médica participavam de uma intensa troca de fotografias. A operação Catedral-Rio, começou em 1998, conseguiu identificar, em todo o país, duzentos pedófilos.
O filme “Confiar” foi o único que tratou da questão virtual, embora não lidasse com os sites que exibiam pornografia infantojuvenil. Sua temática estava relacionada com a pedofilia; porém, o perfil do pedófilo apresentado pela revista Veja talvez colocasse em jogo essa afirmação. Annie, uma adolescente que, ao completar 14 anos, ganhou de presente um computador. Ela conheceu pela internet Charles, que se apresentou como garoto de 16 anos. Eles conversaram, riram, se declararam, e ele confessou ser um pouco mais velho e esse processo repetiu-se por mais duas vezes. Marcaram um encontro em um shopping, mas, para surpresa de Annie, Charles era um homem de no mínimo 35 anos. Mesmo assim, ela topou ir para um lugar mais reservado, assim como também aceitou usar a lingerie que ganhou dele de presente. Nesse ambiente, eles acabaram tendo uma relação sexual, se assim pode ser chamada. Depois de muito tempo foi que Annie caiu na real, dando-se conta de ter sido estuprada. O FBI foi acionado e acompanhou o caso, tentando prender Charles, mas, pelo que pareceu, ele sabia muito bem o que fazia, e não deixou nenhum tipo de rastro. No final, ele apareceu em uma filmagem caseira, na qual ele passa a impressão de ser um homem comum, com família – mulher e filho – passeando no parque.
Tratarei, agora, de outra forma de violência sexual, a exploração sexual infantojuvenil. A primeira reportagem, datada de 2 de abril de 1997, abordou a temática da “prostituição infantil” em Manaus, onde adolescentes, com idade entre 11 e 17 anos, cobravam cerca de cinco reais a hora. Uma segunda reportagem narrou a descoberta, através de grampos telefônicos, de um esquema de “prostituição” infantojuvenil. O esquema foi dividido em três partes: na ponta superior, os homens, geralmente bem-sucedidos, que buscavam por jovens meninas; na outra ponta, elas, com idade entre 11 e 17 anos, e como intercâmbio entre as duas extremidades, Jane. As meninas recebiam cerca de cinquenta reais por programa.
Ao chegar em Jane, a polícia achou uma agenda com números telefônicos de homens. Alguns deles foram acusados de corrupção de menores, outros não. Caminha ao encontro dessas reportagens o filme “Anjos do sol”, de 2006, que abordou a problemática da “prostituição” infantojuvenil no Brasil. Maria, uma adolescente de 12 anos, foi vendida pela família; passou por um leilão de moças virgens e acabou em um prostíbulo no meio da floresta amazônica. Em uma das cenas mais chocantes, a adolescente, que foi apresentada como “carne nova no pedaço”, passou sua primeira noite de prostíbulo em um quartinho. Lá ela atendeu um cliente após o outro, sem intervalo e sem preservativos. Conseguiu fugir do local; porém, novamente, a “prostituição” atravessou seu caminho. Ela, mais uma vez, foge e segue por um caminho que não sabe ao certo onde vai dar.
Considerações finais
Entre o cinema e as revistas existia um rio; aqui se tentou construir uma ponte. Talvez não seja tão sólida; é preciso caminhar com cautela. A pedofilia não está nas definições legais. Ela não consta como crime. São considerados crimes as práticas que dela resultarem, como no caso do Walter, o pedófilo do filme “O lenhador”, preso não por ser pedófilo, mas pelo fato de ter colocado em prática os seus desejos. Ele abusou sexualmente de uma adolescente e isso é considerado crime. Da mesma forma, se pensarmos na confusão que se faz com pedofilia na internet: o termo correto seria pornografia infantojuvenil. Claro que não se quer dizer que os pedófilos não utilizem e criem sites, mas isso não pode ser vinculado direta e exclusivamente a eles. Há por trás dessa rede a questão financeira.
O termo pedofilia, tanto no cinema quanto na revista, apareceu de forma confusa. Poucas foram as narrativas que o conseguiram definir como um termo clínico; muitas vezes, a pedofilia apareceu como sinônimo de abuso sexual. Por que os filmes “Sobre meninos e lobos” e “Sleepers” estariam em uma lista sobre filmes de pedofilia? Seria pelo fato de em sua trama abordar o ato sexual entre um adulto e um adolescente? Não seria isso estupro? Se a revista Veja, numa reportagem, afirma que os pedófilos são pessoas desprovidas de agressividade e incapazes de praticar atos violentos, por que em outra chama Dutroux de pedófilo?
E as representações sobre os pedófilos? Na revista Veja eles são da classe média alta; muito deles estrangeiros e conhecidos em grande parte do mundo. Nas reportagens, em sua maioria, nenhum deles têm o nome associado ao termo pedófilo. Já Dutroux, porém, tem seu nome substituído pelo termo, ou seja, em toda a reportagem, ao referir-se a ele, a revista emprega “pedófilo”. Teria isso a ver com a profissão de mecânico ou com a morte das meninas das quais ele havia abusado sexualmente?
Se pensarmos que as fontes – produções históricas –, inseridas em determinado contexto, refletem o meio no qual estão inseridas, como conceituar o termo pedofilia na revista e no cinema? Sim, esta é uma boa pergunta. E a resposta talvez seja: uma grande confusão.
Referências bibliográficas
AREND, Silvia Maria Favero. rompendo o “silêncio”: Violências sexuais, infâncias e direitos (1989-2000). Outros Tempos: Pesquisa Em Foco - História, 2020, 17(29), p. 205-220.
Disponível em: https://www.outrostempos.uema.br/index.php/outros_tempos_uema/article/view/762.
Acesso em setembro de 2021.
BARROS, José D'Assunção. "Cinema e História - considerações sobre os usos historiográficos das fontes fílmicas". Comunicação & Sociedade, 2011. Ano 32, n. 55. p.175-202.
FELIPE, Jane. Afinal, quem é mesmo pedófilo? Cadernos Pagu, 2006, Jun 26, p.201-223. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
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LANDINI, Tatiana Savoia. Pedófilo, quem és? A pedofilia na mídia impressa. Cadernos Saúde Pública, 2003, vol.19, suppl.2, p.S273-S282. Disponível em:
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Fontes virtuais
Classificação Internacional de Doenças (CID-10) Organização Mundial da Saúde.
Disponível em: http://www.medicinanet.com.br/cid10.htm. Acesso: em setembro de 2021.
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV. Disponível em: http://virtualpsy.locaweb.com.br/dsm.php?ltr=P. Acesso: em setembro de 2021.
Fontes documentais
LEIS
BRASIL. Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927;
BRASIL. Lei nº 6697, de 10 de outubro de 1979;
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990;
REVISTA VEJA
Revista Veja. 1996. 1429, A caricia que destrói a inocência, p 76-82.
Revista Veja. 19961468. Luta exemplar, p 45.
Revista Veja. 1996, 1472. Uma nação engolfada pela fúria, p 44 - 46.
Revista Veja. 1996, 1476. A sombra da suspeita, p. 23.
Revista Veja. 1996, 1484. Gênio no xadrez, p 42.
Revista Veja. 1996, 1505. Entre a lei e a censura, p 15.
Revista Veja. 1997, 1489. Cenas de barbárie, p 35.
Revista Veja. 1998, 1531. Rede Proibida, 63.
Revista Veja. 1998.1563. Rede de horrores, p 82 – 83.
Revista Veja. 1999, 1585. Agressão a infância, p 84, 85 e 86.
Revista Veja. 2000, 1640. Futuro ferido. p 102 – 106.
Revista Veja. 2000, 1648. Perversão na rede, p 52 – 55
Revista Veja. 2000, 1744. Sacerdotes do Pecado. p. 134.
Revista Veja. 2000, 1748. Uma mancha no coração da igreja, p 83-88.
Revista Veja. 2000, 1749. Os cardeais decepcionaram, p 94 – 95.
Revista Veja. 2004, 1852. Quando a infância é um inferno. p 152-154.
Filmografia
Anjos do sol, 2006, Brasil, Direção: RudiLagemann.
Confiar, 2010, Estados Unidos, Direção: David Schwimmer.
Dúvida, 2008, Estados Unidos, Direção: John Patrick Shanley.
Mistérios da carne, 2004, Holanda, Direção: GreggAraki.
O lenhador, 2004, Estados Unidos, Direção: Nicole Kassell.
Sleepers: A vingança adormecida, 1996, Estados Unidos, Direção: Barry Levinson. Sobremeninos e lobos, 2003, Estado Unidos, Direção: Clint Eastwood.
Recebido em 15/09/2021.
Aceito em 08/11/2021.
[1] Doutora em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Professora na Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP. Brasil. Contato: lismachieski@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-1394-5180
[1] O acervo da revista Veja foi disponibilizado em caráter online, desde o seu primeiro até o último exemplar do ano de 2009.
[2] Nas últimas décadas a expressão prostituição infantojuvenil passou a ser amplamente criticada, principalmente por remeter a uma ideia de consentimento, o que não procede por envolver crianças e adolescentes. A indicação é que o termo seja substituído por “exploração sexual comercial de crianças e adolescentes”. A opção aqui foi de utilizar a expressão usualmente empregado no contexto de análise, com a ressalva de apresentá-la entre aspas: “prostituição”.
[3] As legislações aqui apresentadas encontram-se disponíveis em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/
[4] Cabe registrar que a temática da violência sexual não era um tema exclusivo do Estatuto – ou de uma discussão apenas presente em território nacional –, o tema foi alvo da Convenção sobre os Direitos da Criança, no decorrer da década de 1980, resultando nos artigos 32, 33, 34, 35 e 36 da referida Convenção. Para conhecer mais sobre o tema ver: AREND, Silvia Maria Favero. ROMPENDO O “SILÊNCIO”: Violências sexuais, infâncias e direitos (1989-2000). Outros Tempos: Pesquisa Em Foco - História, 17(29), 205–220. 2020.
[5] Informações retiradas do site: http://www.medicinanet.com.br/cid10.htm, consultado em setembro de 2021.
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