A saúde, a peste, a ciência e a ignorância: uma reflexão da História Ambiental sobre a Peste da Manchúria

Health, Plague, Science and Ignorance: A Reflection of Environmental History on the Plague of Manchuria

 

                                                                                               Hélio José Santos Maia[1]

 

 


Resumo

Esse trabalho representa o extrato de uma pesquisa que objetiva relacionar um fragmento da História Ambiental com o conceito de saúde, sua constituição, a doença e aspectos culturais, além de imigrações a partir da análise da chamada Peste da Manchúria ocorrida entre os anos de 1910 e 1911 na Sibéria Oriental. O estudo também envolve aspectos ecológicos, epidemiológicos, uma percepção social e cultural em confluência com a pandemia de SARS Cov2 e o papel que a Ciência exerce na produção de conhecimento e na delimitação de ações para o entendimento necessário à tomada de decisões. Como metodologia a pesquisa é de caráter bibliográfico e para sua consecução realizou-se investigação em materiais técnicos como manuais de Epidemiologia, Virologia, Educação e História Ambiental, bem como materiais específicos como relatórios e publicações em periódicos. Entre seus achados é possível mencionar que o alcance de conhecimento seguro no campo do recorte do trabalho, aponta para importância de se analisar diversas fontes científicas, como a História Ambiental, em consonância com outros saberes, incluindo o cultural.

Palavras-chave: História Ambiental; Epidemia; Imigração.

Abstract

This work represents the extract of research that aims to relate a fragment of Environmental History with the concept of health, its constitution, disease and cultural aspects, as well as immigration from the analysis of the so-called Plague of Manchuria that occurred between 1910 and 1911 in Eastern Siberia. The study also involves ecological, epidemiological aspects, a social and cultural perception in confluence with the SARS Cov2 pandemic and the role that Science plays in the production of knowledge and in the delimitation of actions for the understanding necessary for decision-making. As a methodology, the research is bibliographical in nature and, for its achievement, research was carried out in technical materials such as Epidemiology, Virology, Education and Environmental History manuals, as well as specific materials such as reports and publications in journals. Among its findings, it is possible to mention that the reach of safe knowledge in the field of the work, points to the importance of analyzing different scientific sources, such as Environmental History, in line with other knowledge, including the cultural one.

Keywords: Environmental History; Epidemic; Immigration.


 

 

 

Introdução

Pelo conceito de saúde construído historicamente, alcançá-la representa um desejo do ser humano aparentemente inatingível. Os componentes contidos no conceito variaram ao longo do tempo, entre especialistas e filósofos, em caminhos míticos, religiosos e culturais de modo geral. O principal objetivo deste artigo é refletir sobre alguns aspectos envolvendo a saúde em certas dimensões, como as relacionadas à ecologia, a aspectos sociais e ao cultural em uma perspectiva de História Ambiental. Como metodologia, a pesquisa é bibliográfica e recorreu a fontes relacionadas às ciências naturais, como parasitologia, ecologia, virologia e epidemiologia, mas também às ciências humanas como a História visto que se evocou o caso emblemático da chamada "Peste da Manchúria", ocorrida na Sibéria Oriental entre os anos de 1910 e 1911, para tecer as considerações que norteiam os argumentos presentes.

O texto está organizado em pequenos tópicos que auxiliam na sua compreensão. Assim, no primeiro tópico, intitulado “Humanos e saúde: uma incomensurabilidade” se procura situar a construção do conceito de saúde e se faz uma crítica sobre a impossibilidade de alcançá-lo diante dos caminhos de complexidades que o conceito tem ganhado.

No tópico intitulado “A peste da Manchúria, um caso emblemático da contemporaneidade”, são constituídos os caminhos de uma História Ambiental que se consubstanciaram para o estabelecimento de uma das epidemias mais mortais que se tem conhecimento no século XX. Para isso se recorre à História a partir de fontes da época e de outros momentos, mas também são utilizadas fontes técnicas que procuram lançar luz sobre o processo de infecção, as relações ecológicas entre organismos e os aspectos culturais envolvidos.

Já no tópico intitulado “A temporalidade da ignorância”, procura-se refletir sobre a natureza da ciência em tempos de cobranças por soluções rápidas para problemas que outros tipos de conhecimentos não podem oferecê-las, ao tempo que se argumenta sobre os limites da Ciência ao se deparar com o desconhecido. Por fim, nas considerações finais são retomadas reflexões sobre cultura e saúde, ciência e ignorância com a intenção de ponderar algo importante: a ciência pode tudo desde que tenha tempo, mas nunca será capaz de aniquilar o desconhecido, haja vista o que nos ensina a História.

Humanos e saúde: uma incomensurabilidade

A saúde, por certo, sempre foi uma preocupação dos povos. A humanidade em sua travessia pelo tempo sempre se conectou com o desejo de uma vida incólume diante das doenças. Na infância da História humana, corpos indenes começaram a construir todas as condições para suportar, superar e até evitar doenças. O trânsito filosófico que o homem comum sempre fez em busca de estruturas explicativas para quase tudo, o liga a uma compreensão simplista cuja definição se baseia na comparação maniqueísta dos seus contrastes. Desse modo é possível entender que saúde é ausência de doença e o seu inverso também é inteligível. Mas, quanto se perde de compreensão sobre as dimensões da saúde quando se foca apenas em seu oposto? Esse questionamento nos oferece pistas para o entendimento da complexidade que definir saúde envolve. Como nos explica Straub (2014, p. 3),

O termo saúde vem de uma antiga palavra da língua alemã que é representada, em inglês, pelos vocábulos hale e whole, os quais se referem a um estado de "integridade do corpo". Os linguistas observam que essas palavras derivam dos campos de batalha medievais, em que a perda de haleness, ou saúde, em geral resultava de um grave ferimento corporal. Atualmente, somos mais propensos a pensar na saúde como a ausência de doenças, em vez da ausência de um ferimento debilitante contraído no campo de batalha. Todavia, como se concentra apenas na ausência de um estado negativo, tal definição é incompleta. Embora seja verdade que as pessoas saudáveis estão livres de doenças, a saúde completa envolve muito mais. Uma pessoa pode estar livre de doenças, mas ainda não desfrutar de uma vida vigorosa e satisfatória. Saúde envolve o bem-estar físico, assim como o psicológico e o social.

 

            Decerto as considerações de Straub (2014) estão presentes na definição de saúde adotada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) “divulgado na carta de princípios de 7 de abril de 1948 (desde então o Dia mundial da Saúde) como sendo ‘Saúde é o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade’” (SCLIAR, 2007, p. 37). O conceito de saúde tornou-se complexo e difícil de enquadrar pessoas no estado de completude. Quando se introduz então o componente psicológico apontado por Straub (2014) a plenitude que o conceito abarca, torna praticamente impossível abranger grande contingente de seres humanos. Por ele é perfeitamente aceitável dizer que o planeta Terra comporta uma humanidade doente.

            Gozar de completo bem-estar físico envolve um desafio que para uma parcela de humanos não é alcançado. Nesse sentido, é preciso definir-se o que é bem-estar físico. O que a expressão atinge? Diferenças anatômicas presentes nos seres humanos, ainda que funcionais, mas que dificulte ou limitem de alguma forma a liberdade dos indivíduos denota falta de saúde? Alguém que não está bem com sua aparência, ainda que ela não represente nenhum fator limitante, mas que de alguma forma gere desconforto psicológico ou algum mal-estar, também não estará com saúde? Isso implica uma série de incompatibilidade entre o que se é, e a não aceitação do que se é.

            A integralidade do conceito de saúde da OMS, largamente adotado representa um paradoxo para o seu estabelecimento. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que se pauta pelos três pilares, renda, educação e saúde, por certo incorpora o conceito de saúde preconizado pela OMS. Nesse sentido, torna-se mais complicado ainda avaliar o quanto de “saúde” contribui para o IDH. Sabe-se que entre os fatores que concorreram para a longevidade das populações estão, além da melhoria das condições de saneamento básico, o avanço científico tanto das ciências médicas, quanto da farmacologia. Há muitos casos de longevidade que se deve ao amparo químico, ou seja, a administração de fármacos para o controle de doenças crônicas. Nesses casos, as condições de portadores de doenças controladas quimicamente entram no cômputo de saúde?

            Mais grave ainda é o contorno “mental” no conceito de saúde. Os avanços das pesquisas na psiquiatria e na psicologia “desencavaram” uma miríade de quadros patológicos mentais, dos mais sutis transtornos obsessivos compulsivos (TOC) como aqueles em que o indivíduo precisa checar se fechou uma porta dezenas de vezes, aos complexos quadros de ímpetos homicidas. O largo espectro dos transtornos mentais torna ainda mais complicado o alcance pleno do ter saúde. Os quadros patológicos mentais, com todo exagero, praticamente não deixariam nenhum ser humano incólume.

            No campo do social envolvido no conceito de saúde, resta saber o que é bem-estar social. Vivemos em sociedades conflagradas, nas quais grupos se organizam para disputar poderes, pontos de vista, desrespeitar uns aos outros. Não parece nada saudável o quadro social existente. Longe de ser a diversidade com base na pluralidade de ideias e o respeito ao direito de defendê-las com os argumentos lastreados pelas ideias existentes, vive-se a base de insultos aos membros dos grupos opostos. A menos que essa barafunda seja o conceito de bem-estar social, não se pode compreendê-lo como tal. Diante desses argumentos, ainda que simplistas, a cada dia que se passa mais complexo se torna alcançar a plenitude do conceito de saúde da OMS.

            Na evolução do conceito já se viu entendimentos simples como o de que “saúde é ausência de doenças”, expressão que o próprio conceito da OMS nega. Já se viu expressões “poéticas” como a de René Leriche "A saúde é a vida no silêncio dos órgãos". Em todas, exige-se um desdobramento de conceitos que as integram e que necessitam de definições. Doenças, por exemplo, parece ser um conceito cultural e com construções contextuais que podem ser observados ao longo da História. Muitos são os preceitos de culturas diversas para a manutenção da saúde. Alguns expressos, e outros velados como simples proibições, outros na base de preceitos religiosos, como se fossem tabus, linhas tênues que não podem ser ultrapassadas. No caso de preceitos religiosos, por exemplo, tanto no Judaísmo quanto no Islamismo, é vedado o consumo de carne suína, com passagens nominalmente expressas em seus livros sagrados, como na Bíblia em Levítico 11:7 “Tereis como impuro o porco porque, apesar de ter o casco fendido, partido em suas unhas, não rumina”. Sem maiores explicações, a dita impureza do porco é suficiente para evitá-lo como alimento. Segundo Scliar (2007), as restrições dietéticas do judaísmo têm como finalidade mais evidente a coesão grupal, uma vez que representa uma distinção do povo hebreu em relação a outros povos do Oriente Médio. Em uma época em que não se conhecia patógenos microscópios ou um conhecimento mais amplo de verminoses, muito menos causas para diversas doenças infecciosas, não é possível fundar um temor na ingestão da carne de porco como uma ação preventiva para evitarem-se triquinoses. Sobre esse preceito do judaísmo quanto ao consumo de carne de porco, Scliar (2007, p. 31) apresenta uma explicação:

Seria muito difícil, por exemplo, associar a carne de porco à transmissão da triquinose. Para isto há uma explicação ecológica, por assim dizer. A criação de suínos, no Oriente Médio, seria um contra-senso. Trata-se de uma região árida, sem a água de que esses animais necessitam como forma de manter seu equilíbrio térmico. Além disso, povos nômades teriam dificuldades em manter um animal que se move pouco, como o porco. Finalmente, ao contrário dos bovinos, que servem como animal de tração e que proporcionam leite, o suíno só fornece a carne - uma luxúria, portanto, uma tentação que era evitada pelo rígido dispositivo da lei.

 

            No entendimento da potencial transmissão de doenças em relação a preceitos dietéticos, povos diversos criaram mitos e explicações lendárias para impedir que o consumo de determinadas carnes fosse feito, sobretudo em proteção à saúde. Um exemplo disso, diz respeito ao episódio epidêmico do início do século XX, conhecido como “Peste da Manchúria”. Entre os antecedentes desse fato que será apresentado a seguir, circulava uma lenda entre os Mongóis, que, ao que tudo indica, era um preceito dietético. Apesar da carne e da gordura da marmota entre as populações de caçadores da Mongólia sempre terem sido consideradas apetitosas, evitavam ao máximo consumir excrescência de tecido adiposo sob o baço desses animais e uma explicação para isso vem da lenda mongol de que o animal abrigava a alma de um caçador morto. Gruntov, Mazo, Solovyova (2016) em estudo sobre tabus mongóis e animais de caça, mencionam tabus envolvendo o tarbagan, nome da marmota nessas regiões das estepes da Mongólia, onde se considera que marmotas possuem a mesma origem das pessoas. As autoras recolheram uma mitologia muito popular ancestral mongol que explica esse entendimento popular: a do caçador chamado Erxii Mergen, um hábil atirador, que jurou derrubar todos os sóis, mas não conseguiu derrubar o sétimo e último, e então cortou fora seu polegar e se transformou em marmota. Assim, é crença comum entre grupos mongóis, a de que a marmota tenha carne e ossos humanos em algumas partes. Comer essas partes é, portanto, um tabu.  Diante disso, enquanto os mongóis seguiam o impedimento de caçar e consumir animais doentes e que, sobretudo, apresentavam essa situação no baço, o mesmo não aconteceu com caçadores chineses motivados pela febre da riqueza fácil que em levas migratórias invadiram a Manchúria e encontraram a morte.

 

A peste da Manchúria, um caso emblemático da contemporaneidade

Já se passou mais de um século de um grande surto de peste pneumônica acontecido no mundo, conhecida como “Peste da Manchúria”. O ano era 1910 quando uma infecção de Yersinia pestis (LEHMANN; NEUMANN, 1896), ceifou a vida de sessenta mil pessoas na Sibéria Oriental. A Y. pestis é uma bactéria do tipo bacilo, causadora da chamada “Peste Negra” na Europa Medieval, que possui como reservatório[2], roedores, e o modo de transmissão, ou seu vetor[3], a picada de pulga, mas comumente da espécie Xenopsylla cheopis (ROTHSCHILD, 1903) ou pulgas de rato (TORTORA; FUNKE; CASE, 2017). “Poucas doenças afetaram de forma tão drástica a História humana quanto a peste, conhecida na Idade Média como a Morte Negra. Esse termo vem de uma se suas características: as áreas de coloração azul-escura da pele causadas por hemorragias” (TORTORA; FUNKE; CASE, 2017, p. 647).

            Porém, como informa Lynterris (2016) a Yersinia pestis apresenta um espectro extraordinário de hospedeiros animais. São contabilizados mais de 203 hospedeiros roedores e muitos outros mamíferos e até aves. Além desses hospedeiros se contabilizam uma variedade de vetores parasitas, como várias espécies de pulgas, mas, não exclusivamente.

No organismo do vetor, a Yersinia pestis causa uma fome intensa. Assim, a pulga, que por seu hábito hematófago, segue em busca de sangue para sua refeição. Caso o seu hospedeiro morra, ela buscará outro imediatamente, ampliando sua ação na infecção. O modo de agir da bactéria no interior da pulga em decorrência do seu crescimento intenso leva-a à produção de um bilfilme que oblitera o trato digestivo da pulga, fazendo com que haja regurgitação do sangue ingerido, o que mantém seu constante estado de fome, uma vez que o processo digestivo não ocorre como deveria. Ainda que esse entendimento da infecção por intermédio do vetor seja o mais frequente, segundo Tortora, Funke e Case (2017, p. 647), “um vetor artrópode nem sempre é necessário para a transmissão da peste. O contato com a pelagem de animais infectados, arranhaduras, mordeduras e lambidas de gatos domésticos e incidentes similares foram registrados como causa de infecção”. Por certo, apesar de ainda existirem regiões endêmicas nos nossos dias para a peste bubônica, sobretudo em decorrência do avanço de áreas residenciais sobre territórios silvestres com animais infectados, o conhecimento sobre sua etiologia, bem como tratamento e vacinação[4] é amplo.

            Do ponto de vista técnico sobre a infecção, Tortora, Funke e Case (2017, p. 648) nos ensinam que,

Após a picada da pulga, as bactérias entram na corrente sanguínea humana e proliferam na linfa e no sangue. Um fator de virulência da bactéria da peste é sua capacidade de sobreviver e proliferar dentro das células fagocíticas, em vez de ser destruída por elas. Um número elevado de organismos altamente virulentos acaba emergindo, resultando em uma infecção devastadora. Os linfonodos da virilha e das axilas tornam-se aumentados, e a febre se desenvolve à medida que as defesas do corpo reagem à infecção. Esses edemas, chamados de bubões, refletem a origem do nome peste bubônica.

Mas afinal o que ocorreu na Sibéria Oriental que desencadeou essa última epidemia de peste bubônica informada acima? A literatura a respeito, como o clássico relatório sobre o assunto de Wu (1914), Benedict (1996), Knab (2011), apontam que essa epidemia da Manchúria não se relaciona com algumas epidemias da peste bubônica no sul da China, mas, ocorreu em áreas da Mongólia e da Sibéria onde a Marmota sibirica (RADDE, 1862), marmota Sciuridae, tem seu habitat, sendo, portanto, muito comum nessas regiões. Esse roedor é considerado um reservatório natural da Y. Pestes, ou seja, alberga a bactéria, sem, no entanto, sofrer grandes prejuízos, embora muitos animais adoeçam. 

            Entre os anos de 1907 e 1910 esses animais tiveram suas peles valorizadas a custos que alcançaram um aumento de cerca de 400% do que normalmente eram vendidas no mercado. Comerciantes internacionais de peles encontraram nessa espécie de marmota um substituto à altura das supervalorizadas e escassas peles de Martes zibellina (LINNAEUS, 1758), conhecida simplesmente por marta ou zibelina. A ganância internacional nesse mercado de peles, associada à cessação na época das tradicionais proibições à migração para a Manchúria, levou milhares de caçadores chineses a deslocarem-se para a área em busca da fortuna que a promessa do comércio internacional dessas peles de marmotas anunciava.

            Por tradição e em observância a mitos e lendas, como mencionadas acima, havia um temor entre os caçadores mongóis em abaterem animais doentes e inclusive existia uma interdição local que proibia o consumo como alimentação de carnes de animais doentes e, sobretudo, de tecido adiposo produzido sob o baço desses animais. Era de entendimento comum entre os caçadores mongóis que a peste atacava facilmente o baço e sua utilização como alimento podia infectar os seres humanos.

Mas, a avidez pelo sonho de fortuna dos recém-chegados caçadores chineses estimulava a captura de qualquer animal que encontrassem, sadios ou doentes. Associado à essa falta de controle e cuidados, os alojamentos precários e improvisados, nos quais esses caçadores chineses se amontoavam, funcionavam também como armazéns de peles de marmotas. Nesses ambientes insalubres, geralmente localizados ao longo da principal ferrovia da região, por certo para facilitar o escoamento das peles obtidas, se respirava um ar malcheiroso e com muitas moscas, um potencial viveiro de patógenos (WU, 1914). Essas condições representaram a fórmula ideal para o início de uma tragédia. Em 13 de outubro de 1910, um caçador chinês em busca de sua fortuna em Manzhouli, região autônoma da Mongólia, mas, sob administração chinesa, desenvolveu a peste pneumônica. Variante infecciosa da peste bubônica. Segundo Tortora, Funke e Case (2017, p. 649),

Uma condição particularmente perigosa, chamada de peste septicêmica, surge quando as bactérias entram no sangue e proliferam, causando choque séptico. Finalmente, o sangue transporta as bactérias para os pulmões, resultando em uma forma da doença chamada de peste pneumônica. A taxa de mortalidade por esse tipo de peste é de quase 100%. Até mesmo nos dias de hoje, essa doença raramente pode ser controlada se não for reconhecida dentro de 12 a 15 horas após o início da febre. A peste pneumônica é facilmente disseminada por gotículas trazidas pelo ar de seres humanos ou animais. Deve-se ter muito cuidado para impedir infecções transmissíveis pelo ar de pessoas em contato com pacientes.

 

            Assim, diferentemente da peste bubônica, a pneumônica não precisa dos vetores para sua transmissão, uma vez que pode ser veiculada entre humanos pela tosse ou espirro. Segundo Coura (2018, p. 1547) ela “é considerada a forma maior da doença por sua gravidade, letalidade elevada na ausência de tratamento precoce, e, sobretudo, por seu caráter de extrema contagiosidade”. Diante dessas condições a doença do caçador chinês em Manshouli se espalhou por aqueles alojamentos apinhados de forma acelerada, vitimando rapidamente cerca de seiscentos homens (BENEDICT, 1996). Frente à calamidade e diante do medo, hordas de caçadores tomadas pelo pânico fugiram para o sul, já transportando a peste ao longo dos 2.700 km do sistema ferroviário da Manchúria, vitimando milhares de pessoas ao longo dos anos de 1910 e 1911.

Como balanço final, segundo Knab (2013), autoridades chinesas, russas e os japoneses que se relacionavam, sobretudo, com as ferrovias da região da Manchúria, implementaram medidas preventivas frente ao avanço e à letalidade da peste da Manchúria. Estas medidas incluíam vigilância rígida da população, quarentena, queima de alojamentos, cremação dos cadáveres, uso de máscaras e o estabelecimento de áreas sanitárias rígidas. Embora o conhecimento acumulado sobre a peste bubônica historicamente, permitisse que na época já existissem diferentes soros, todos eram ineficazes e muitos laboratórios improvisados trabalhavam incansavelmente em experimentos infrutíferos, vacina alguma tinha eficácia. Por fim, em março de 1911, a epidemia chegou ao fim, por si só, sem maiores explicações. Mas, a calamidade havia produzido a marca de sessenta mil mortos, a maioria de chineses.

                Os elementos que originaram esse episódio epidêmico trágico colocam em tela algumas reflexões que podem auxiliar no entendimento de outros quadros epidêmicos e até pandêmicos, como o mundo vivencia nestes anos de 2020 e 2021, com reflexos para anos vindouros. A primeira dessas reflexões é de ordem ecológica e se refere à especificidade parasita/hospedeiro, a segunda é de ordem sociológica e a terceira é de ordem cultural. Em relação à primeira, é de conhecimento da ecologia que os hospedeiros potenciais de um parasita, "representam uma parte diminuta da flora e da fauna disponíveis. A grande maioria dos outros organismos é totalmente incapaz de servir como hospedeiro: muitas vezes, não sabemos por quê" (BEGON, 2007, p. 351). 

            Begon (2007) aponta alguns padrões para a especificidade parasito/hospedeiro, como por exemplo, o fato de uma maior relação íntima na associação do parasito e seu hospedeiro específico, determinará uma maior probabilidade de que o parasito se restrinja a um tipo único de hospedeiro. Porém, alerta para o fato de que nem sempre os limites do hospedeiro e seu parasita são tão diretos. Segundo o autor,

As espécies fora dos limites do hospedeiro são relativamente de fácil caracterização: os parasitos não podem causar uma infecção no interior delas. Porém, para aquelas dentro dos limites, a resposta pode variar de uma patologia grave, seguida de morte, até uma infecção sem sintomas claros. É mais comum a ocorrência de hospedeiro "natural" de um parasito, ou seja, aquele com o qual este coevoluiu e cuja infecção é assintomática. Nos hospedeiros "acidentais", a infecção provoca uma patologia frequentemente fatal. (BEGON, 2007, p. 352).

Evidencia ainda o autor que o termo "acidental" para hospedeiro de determinado parasito, se aplica, pois que frequentemente morre com o estabelecimento de infecção, isso leva o patógeno a não evoluir com o hospedeiro "acidental", sendo esse tipo de infecção, terminal. Portanto, não seria possível, em tese, adaptar-se a eles. E aqui, parece residir o principal ponto de análise nesse aspecto. Já que há uma propensão para a morte de um hospedeiro acidental frente a um parasito com o qual não coevoluiu, é coerente se deduzir que não é prudente a exposição a potenciais riscos em habitats e/ou a incursões a nichos ecológicos onde vivem hospedeiros e seus parasitos. Todavia, isso parece ser o principal motivo para infecções, o cruzamento de barreiras interespecíficas. Conceito, fundamental nessa discussão, ou seja, a capacidade de um parasito que coevoluiu com hospedeiro específico, em infectar outro organismo que normalmente não infecta.

Nesse sentido, parece haver um equilíbrio que impede que patógenos que se desenvolvem em coevolução com seus hospedeiros, dificilmente cruzem essas barreiras entre espécies diferentes. Porém, a literatura aponta muitos exemplos de doenças virais que advieram da quebra de barreiras interespecíficas. Santos, Romanos e Wigg (2015) apontam que se supõe que os afloramentos de viroses que atingem os humanos são provenientes de outras espécies, portanto, em transmissão interespecífica. Nesse sentido, as autoras ilustram essa suposição com alguns exemplos como a descoberta de primatas não humanos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV). Exemplificam também algumas espécies de morcego como reservatórios do vírus da SARS (severe acute respiratory syndrome), o famoso SARS-CoV, no qual se integra o causador da pandemia de Covid-19, o SARS-CoV-2. Porém no campo dos estudos dessas quebras de barreiras interespecíficas, há também exemplos em que não se identificam de forma precisa espécie-reservatório e seu patógeno preferencial, como é o caso do vírus Ebola, que após análises de milhares da amostra de animais, não foi possível se identificar isso precisamente.

No caso do vírus SARS-CoV-2 que se tornou o flagelo da humanidade atualmente, a hipótese aceita é de que seja natural de morcegos e que quebrou a barreira interespecífica ao infectar humanos. Nesse sentido, parece que a tese largamente aceita como infecção terminal no caso de hospedeiros acidentais, afigura-se ter encontrado uma forte exceção, uma anomalia como mencionaria Kuhn (2011), já que a alta taxa de infectados assintomáticos, embora ditos positivos, é grande. Por outro lado, a contabilização de suas vítimas é alarmante. Estamos diante de um patógeno que age em hospedeiros acidentais como se fosse um hospedeiro com o qual coevoluiu e ao mesmo tempo em que o leva à morte, comportamento clássico nessas situações?

            A questão acima sinaliza para uma simples constatação, quase tautológica, a de que a ciência não se pauta por conhecimentos cristalizados em linearidades deterministas. A História tem mostrado que a flexibilidade e elasticidade sobre o conhecimento do fenômeno material do mundo real parece guiar-se sempre por exceções. Os especialistas de hoje falam uma linguagem pautadas em consensos de suas comunidades científicas. Mas, o que normalmente não se investiga são as “vozes do dissenso”. O que, os que discordam de determinado postulado no seio de uma comunidade científica, têm a dizer? E quando são vencidos pelos argumentos contrários aos seus, que postura adotam? Realizam a ruptura com o consenso dos pares e promovem novos caminhos de pesquisa? Ou se adequam mansamente ao posicionamento da maioria? Compreender o funcionamento da ciência é fundamental para compreender o que vivemos nos tempos de incertezas que pandemias promovem, por exemplo.

Com relação às reflexões de ordem sociológicas, estão as condições geradas por uma imigração intensa. Nesse sentido podemos apontar que a busca pelo sustento de suas vidas e das suas famílias leva um grande contingente populacional a adentrar regiões selvagens para usá-las como zona de coleta e caça e isso possivelmente o exponha a potenciais cruzamentos de barreiras interespecíficas de patógenos que evolutivamente estão em equilíbrio com seus hospedeiros. Associado a isso, a pressão que a urbanização promove no ambiente leva muitos vetores, hospedeiros intermediários e definitivos para o peridomicílio humano. A doença de Chagas é um desses exemplos clássicos em que a devastação ambiental aproximou o domicílio humano de regiões silvestres, o que atraiu os triatomíneos, com seus hábitos hematófagos para as habitações humanas, ampliando os hábitos de sucção sanguínea e consequente infecção pelo Tripanosoma cruzi para os seres humanos. Assim, ao afastar pela devastação ambiental, os animais, naturalmente reservatórios de T. cruzi, apenas se ofereceram aos triatomas a oportunidade de um novo repasto sanguíneo e aos trypanosomatídeos, um novo hospedeiro.

Já a terceira reflexão, a de ordem cultural, se centra em percepções do senso comum. Muitas restrições dietéticas que podem ser recolhidas do conhecimento vulgar, ou religioso, como apontado acima, portanto, sem base científica, embora não aportem com estruturas explicativas mais fundamentadas, podem acender o alerta para maiores cuidados. O fato dos caçadores mongóis terem a ressalva de consumir a carne de marmotas doentes e, sobretudo, evitarem o baço, em função da lenda da alma do guerreiro morto, é um desses exemplos. O compartilhamento e aceitação do mito por um grupo social pode ser uma possível justificativa para as baixas taxas de mortes dessa população de caçadores mongóis na peste da Manchúria? Mas, estabelecer uma resposta afirmativa para essa questão é tornar conhecimentos do senso comum e até o mitológico, como passível de acertos, ainda que pautado apenas em crenças e/ou empiria dos sentidos. O que estabelece diferenças do conhecimento vulgar em relação ao científico é o fato desse último se pautar, sobretudo, por exigências metodológicas e pressupostos teóricos.

Diante disso, pode-se inferir que quando a ciência ainda não explica um fenômeno, outro tipo de conhecimento, sendo o mais propício, o senso comum, assume a lacuna por precaução. Isso leva-nos a um construto chamado “princípio da precaução” surgido na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento ou simplesmente RIO 92, que pode ser enunciado segundo Guardiola (2008) como sendo uma garantia contra riscos potenciais que não são ainda identificáveis pela ciência no estado atual de nosso conhecimento. Este princípio afirma que na ausência de certeza científica formal, a existência de um risco de dano grave ou irreversível requer a implementação de medidas para prevenir esse dano.

Rego e Barreto (2011) nos informam que a partir de 1998 os debates acerca do Princípio da Precaução se intensificaram e a Science and Environmental Network reuniu em uma Conferência realizada em Wisconsin, nos EUA, vários pesquisadores de todo o mundo que já vinham escrevendo sobre o assunto. Os especialistas que participaram do evento, em conjunto, definiram o Princípio da Precaução nestes termos:

Quando uma atividade representa ameaça de danos à saúde humana ou ao ambiente, as medidas de precaução devem ser tomadas mesmo se as relações de causa e efeito não estiverem cientificamente estabelecidas de modo pleno. Nesse contexto, o proponente dessa atividade, em vez do público, deve arcar com o ônus da prova. O processo de aplicação do Principio da Precaução deve ser aberto, transparente e democrático, e deve incluir as partes potencialmente afetadas. Também deve incluir um exame de toda a gama de avaliação das alternativas. (WINGSPREAD CONFERENCE (1998), apud REGO e BARRETO, 2011, p. 168).

Já na percepção do Princípio da Precaução das ciências ambientais, Miller e Spoolman (2015) explicam que em concordância com cientista da biodiversidade, tomar medidas de precaução impede a intensificação da extinção de espécies. Essa conduta fundamenta-se nos princípios da precaução: "quando a evidência preliminar significativa indica que uma atividade pode prejudicar a saúde humana ou do ambiente, devemos adotar medidas de precaução para se evitar ou reduzir tal dano" (MILLER; SPOOLMAN, 2015, p. 157). Ainda segundo os autores, essa compreensão se ampara na ideia do senso comum contida em muitos adágios como “olhe antes de pular”.

Nesse sentido, outro provérbio popular que se pode aventar é o de que “cautela e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém”. Por mais absurdo que possa parecer, em uma sociedade pautada pela ciência, e o Princípio da Precaução basear-se, sobretudo, em certo nível de conhecimento científico, mas ainda embrionário e com suas lacunas. Mas, por que não aplicar esse princípio a certo nível de conhecimento ancestral? Possivelmente, aceitar determinados mitos situados em conhecimento ancestral, pelo Princípio da Precaução pode-se evitar males maiores e aguardar os posicionamentos da ciência para respostas mais amplas e sólidas, pautadas em pesquisas rigorosas e fundamentadas. Assim, algo como a “Peste da Manchúria” não teria ocorrido, ou teria sido grandemente mitigada.

            Existe, no entanto, nas discussões sobre o assunto, divergências doutrinárias entre o “princípio da precaução” com relação ao chamado “princípio da prevenção”. Rego e Barreto (2011, p. 368) estabelecem adequadamente uma distinção:

O Principio da Prevenção visa prevenir, pois já́ são conhecidas as consequências de determinado ato. O nexo causal já́ está cientificamente comprovado. Já́ o Principio da Precaução visa prevenir por não se saber quais as consequências e reflexos que determinada ação ou aplicação científica poderão gerar ao meio ambiente no espaço ou no tempo. Está presente, portanto, a incerteza cientifica. Os estudos em Epidemiologia Ambiental devem fornecer bases cientificas considerando os benefícios de saúde, bem como as possíveis implicações negativas.

            Muitos podem argumentar que usar o Princípio da Precaução em função do que apontam mitos e outro tipo de conhecimento, como o senso comum, é dar espaço à irracionalidades e se pautar por algo que tem atormentado também a humanidade nos tempos presentes que são as chamadas fake news. Mas, da mesma forma que o desenvolvimento do espírito científico permite condutas diferenciadas na lacuna da ciência sobre um fenômeno, também permite a ponderação sobre quando e como se deve fazer uso do Princípio da Precaução sobre dada coisa. Certamente essa postura permitiria um estabelecimento mais seguro sobre percepções culturais e sua temporalidade, pois, sendo fácil de rastreá-lo no tempo, permite excluí-lo, com alguma segurança, do universo das atuais fake news.

 

A temporalidade da ignorância      

A ciência evoluiu grandemente em comparação com a época em que o paradigma médico ainda era a teoria dos miasmas. Por exemplo, no considerado último grande surto de peste bubônica na Europa, ocorrido no Sul da França, em Marselha em 1720 e que matou metade da sua população (REZENDE, 2009), é possível visualizar nas iconografias da época os médicos que estavam na linha de frente no combate à peste ainda usando em suas vestimentas pesadas, luvas de couro e com as fantasmagóricas máscaras com bico no qual se acondicionavam ervas aromáticas muito em voga nos séculos anteriores, como uma forma de se evitar os eflúvios, que pela teoria dos miasmas da época, transportavam a doença.

A ciência por sua natureza não é linear e nem sempre se erige a partir de um conhecimento pregresso acumulado, mas, em inúmeras vezes se faz a partir de rupturas com conhecimentos acumulados. A ignorância é temporal e o conhecimento é contextual. Conhecer representa um potencial que se adéqua ao que é possível se observar com os recursos tecnológicos disponíveis no tempo presente. Mas, a ciência não pode perder de vista que o que se conhece hoje não é o limite do que se pode conhecer diante dos aprimoramentos tecnológicos e que o conhecimento de hoje não pode ser considerado algo imutável e incontestável, se assim o fosse, nem a ciência e nem a tecnologia teriam evoluído. Na microbiologia, por exemplo, o aumento do conhecimento é diretamente proporcional ao aumento do poder de resolução dos equipamentos ópticos, demonstrando que o desenvolvimento da tecnologia tem determinado o aumento do conhecimento e até obliterado conhecimentos anteriores que passaram a fazer parte da História, como foi o caso da teoria dos miasmas substituída pela teoria microbiana das doenças, ou teoria dos germes, com o advento da microscopia. Como atesta Pereira (2018, p. 9),

As pesquisas em epidemiologia passaram a ter um forte componente laboratorial, pois parecia evidente que a busca de agentes para explicar as doenças substituía, com vantagens, a teoria dos miasmas, constituindo uma linha promissora de investigação etiológica. Além de tudo, trazia para o raciocínio causal uma precisão não encontrada nas teorias anteriores, qual seja, a comprovação laboratorial da presença de um agente.

            Ou seja, é perceptível o ganho de qualidade na produção do conhecimento quando se empreende métodos e processos de investigar, esclarecer e produzir entendimento seguro dos fenômenos naturais. Para isso há que se recorrer ao suporte da História e nos exemplos citados acima, a uma História Ambiental que procura consolidar os elementos da filosofia da ciência em consonância com princípios científicos que se estabelecem aos poucos, como o citado “Princípio da Precaução”, que por certo, nos contextos sociais testemunhados a partir da Peste da Manchúria desencadeada por uma imigração descontrolada, se em uso, poderia ter mitigado a gravidade do quadro epidêmico. De tudo que se tratou é possível inferir que o alcance de conhecimento seguro aponta para a importância de se analisar diversas fontes científicas como a História Ambiental em consonância com outros saberes, incluindo o cultural.

 

Considerações finais

            A História mostra que a ciência é construída por acúmulo de conhecimento, mas, também por rupturas, e essas geralmente se fazem sobre um conhecimento consolidado. A concepção da natureza das ciências em Thomas Kuhn (2011), em seu livro “As Estruturas das Revoluções Científicas”, deixa patente a evolução do que chamou Ciência Normal nos períodos em que as comunidades científicas trabalham nas pesquisas das suas respectivas áreas fazendo-a progredir em observância ao paradigma vigente no seio daquela ciência.

Mas, com o advento do desenvolvimento tecnológico, novas perspectivas de observação e avanço surgem, o que pode gerar novos problemas de pesquisa desafiantes que podem ser insolúveis à luz do paradigma vigente. A princípio a comunidade científica fica reticente em pesquisar algo desafiante em função da proteção do paradigma. Inicialmente os problemas insolúveis são considerados anomalias que podem ser resolvidos com teorias ad hoc, quando não, são escondidas ou impedidas de serem pesquisadas naquela comunidade científica.

Quando as anomalias começam a se acumular, pesquisadores são obrigados a pesquisar soluções perante os novos desafios que não são mais respondidos pelo paradigma vigente. Uma crise se estabelece e um novo paradigma começa a surgir. A princípio é possível observar a convivência com os dois paradigmas, o clássico e limitado, mas, com mais adesão da comunidade e protegido por ela, e o outro, mais inclusivo, uma vez que pode satisfazer com suas estruturas explicativas aos problemas anteriores da pesquisa, mas, ao mesmo tempo, responder aos novos problemas de pesquisa. Essa crise vai cooptando novos pesquisadores para o novo paradigma e uma revolução científica se anuncia, até que o novo paradigma termina por sepultar o paradigma antigo, colocando-o na História. A revolução científica se completa e um novo período de ciência normal se estabelece, dando início a um novo ciclo de avanços.

Nessa perspectiva kuhniana o conhecimento total da natureza é algo inatingível, pois um ciclo da ciência normal encontrará seu fim. O tempo em que esse ciclo durará é incerto e variável, mas sua inteireza não resistirá ao tempo. Pois, se há algo maior que o conhecimento produzido pela ciência, isto é a ignorância do que sempre haverá por descobrir. Então é possível pontuar que a ciência pode tudo desde que tenha tempo, mas nunca será capaz de aniquilar o desconhecido.

Da última epidemia de peste humana, a peste da Manchúria, ocorrida no início do século XX até os nossos dias, muito conhecimento foi acumulado e certamente ações que foram tomadas como medidas sanitárias naqueles idos 1910 e 1911 foram incorporadas e usadas na pandemia de Covid-19 que assola o mundo no início da década de 2020. Mas, o quanto de ignorância da ciência não restou sobre como lidar com quadros epidêmicos e pandêmicos nesse período de pouco mais de um século? Respostas para essa e outras tantas perguntas só serão possíveis quando o paradigma sanitário vigente entrar em crise e uma nova revolução científica se anunciar no horizonte. Para isso, é imprescindível o consórcio de saberes entre aqueles próprios das ciências naturais com os que se consolidaram a partir da experiência humana e que a História é sua guardiã.

 

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Recebido em 15/09/2021.

Aceito em 21/12/2021.

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[1] Doutor em Educação, mestre em Ensino de Ciência, graduado em Ciências Biológicas. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação na Modalidade Profissional da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (PPGEMP/FE/UnB). Brasil. E-mail: heliomaia@unb.br | https://orcid.org/0000-0002-8162-1137

[2] Reservatório é um termo utilizado pela epidemiologia para se referir a animais silvestres ou não, que portam patógenos sem sofrerem grandes danos, ainda que possam ocorrer. (Nota do autor).

[3] O termo vetor é empregado na epidemiologia para designar organismo que transportam um patógeno para um potencial hospedeiro. (Nota do autor).

[4] Vários antibióticos, incluindo a estreptomicina e a tetraciclina, são eficazes e a vacina de Yersinia pestis contém organismos mortos, sendo indicada para indivíduos com alto risco de contrair a peste (LEVINSON, 2011, p. 104).