Os ingleses e o tráfico interno de escravos no Brasil: o caso da Imperial Brazilian Mining Association (1809-1833)

 

The english subjects and the internal slave trade in Brazil: the case of the Imperial Brazilian Mining Association (1809-1833)

 

João Daniel Carvalho[1]

 


Resumo

O tráfico de escravos africanos foi uma das principais instituições que se desenvolveram desde o fim da Idade Média, alcançando seu apogeu no século XIX, num momento muito singular. O desenvolvimento do capitalismo na Europa, notadamente na Inglaterra, e a abertura econômica das Américas, com a Crise do Antigo Regime e a criação de novos Estados, criaram novas oportunidades, tanto para aqueles que viviam no continente americano, quanto para os europeus. Uma dessas atividades foi a mineração que, no Brasil, já era bem conhecida desde o século XVIII. E muitas das firmas que se instalaram em Minas Gerais, como a Imperial Brazilian Mining Association, utilizaram-se do trabalho de escravos, num comércio interprovincial bem rentável, movimentado inclusive por cidadãos ingleses, indo de encontro a ideia de uma Inglaterra unida contra a escravidão e o tráfico de escravos. Este artigo busca, através de uma análise tanto qualitativa quanto quantitativa, averiguar a atuação da mineradora inglesa e quais eram os súditos de Sua Majestade Britânica que atuavam nesse tráfico interno.

Palavras-chave: Tráfico de escravos; Ingleses; Mineração.

 

Abstract

The African Slave Trade was one of the main institutions that developed since the end of the Middle Ages, reaching its peak in the 19th century at a very unique moment. The development of capitalism in Europe, notably in England, and the economic opening of the Americas, with the Crisis of the Ancien Régime and the creation of new States, created new opportunities, both for those who lived on the American continent and for Europeans. One of these activities was mining, which in Brazil was already well known since the 18th century. And many of the firms that settled in Minas Gerais, such as the Imperial Brazilian Mining Association, used the labor of slaves, who were sended to the mining sites by a very profitable interprovincial trade, moved even by English citizens, going against the idea of a United England against slavery and the Slave Trade. This article seeks, through a qualitative and quantitative analysis, to ascertain the performance of this English mining company and which were the subjects of Her British Majesty who were involved in the internal traffic.

Keywords: Slave Trade; English subjects; Mining.

 


 

 

Introdução

O presente artigo busca entender a atuação inglesa no tráfico interno de escravos no Brasil, utilizando como exemplo base a Imperial Brazilian Mining Association, empresa de capital inglês que atuou no setor de mineração durante as primeiras décadas do século XIX na província de Minas Gerais. Através de análise de dados estatísticos e de documentos de época, buscar-se-á entender quem eram esses indivíduos e demonstrar que a questão da escravidão era vista sob diferentes perspectivas pelos britânicos.

 

A presença inglesa no tráfico interno: o caso da Imperial Brazilian Mining Association

 

A presença inglesa no Brasil, nos seus mais diferentes aspectos, é ponto pacífico na historiografia. No comércio brasileiro, “a predominância inglesa era um fato nas primeiras décadas do século XIX” (GUIMARÃES, 2007, p. 382). No cotidiano, era a garantia de que o Brasil estava no rumo do desenvolvimento civilizacional e tecnológico (FREYRE, 2000). Nas relações exteriores, o ponto alto da presença política da Grã Bretanha no Brasil se deu sobre a questão do comércio transatlântico de cativos e do seu derradeiro fim. Para Alan Manchester:

 

O mais sério atrito jamais ocorrido entre a Inglaterra e a América portuguesa [futuramente, o Império do Brasil] resultou das tentativas do governo britânico para suprimir o tráfico escravo. Desde 1808, durante todo o século, até a abolição da escravidão no Brasil, a pressão crescente do Ministério das Relações Exteriores londrino [Foreign Office] para tentar abolir o tráfico causou um ressentimento tão intenso por parte dos brasileiros que as relações amigáveis entre os dois países foram seriamente ameaçadas. A questão perturbou as relações anglo portuguesas durante a estadia de D. João no Rio e contribuiu para o crescimento do sentimento separatista e republicano nas províncias de Pernambuco e Bahia; tornou-se um[a] [questão] “sine qua non” para o reconhecimento, pela Inglaterra, da independência brasileira; e interferiu tão violentamente nas relações entre os dois países entre 1827 e 1842 que frustrou todos os esforços da Inglaterra para renovar o tratado comercial negociado como o preço pelo reconhecimento da independência brasileira. O clímax chegou nas décadas de 1845 e 1863, que terminou com o rompimento pelo Brasil das relações diplomáticas com o governo britânico (MANCHESTER, 1973, p. 144, grifo nosso).

 

Como pôde ser visto, Manchester acreditava que a constante política externa inglesa de erradicar o tráfico transatlântico para o Brasil acabou por minar a influência britânica no país, atrapalhando inclusive o comércio, com a não renovação do tratado comercial da década de 1820. Para o autor, as ambições políticas inglesas atrapalharam os seus interesses comerciais, colocando em segundo plano os interesses maiores do ascendente capitalismo britânico.

No entanto, era no comércio que a presença inglesa era mais sentida. As casas de comércio inglesas no Rio de Janeiro realizavam diversos tipos de atividades e foram extremamente importantes no financiamento do tráfico de escravos (GUIMARÃES, 2007, p. 385).

De fato, as firmas inglesas estavam presentes, e com força, no comércio imperial brasileiro, financiando diversas atividades, inclusive o tráfico de escravos. A compreensão dessa questão é importante para o entendimento da participação britânica no tráfico interno de escravos. Uma das características principais dessas firmas era a formação social e familiar de seus sócios. Como bem coloca P. L. Cottrell:

 

Algumas das mais proeminentes famílias [britânicas] de banqueiros e comerciantes eram ou judias ou huguenotes, membros de comunidades minoritárias que foram comprimidas em guetos e dispersadas geograficamente com resultado da perseguição religiosa. Membros desses grupos se tornaram inovadores no comércio onde se estabeleceram e a prosperidade deles era auxiliada pelas conexões mantidas com seus companheiros de religião [estabelecidos] em outros lugares, laços esses frequentemente reforçados pelo casamento. Interesses comerciais mútuos promoviam a coesão, mas as firmas individuais dentro duma rede de correspondentes seguiam diferentes políticas comerciais que eram condicionadas pelo local [de estabelecimento] das suas firmas. […] A transformação de um banqueiro para um investidor foi um lento processo e muitas firmas londrinas conservaram um interesse no transporte naval de mercadorias até as décadas de 1850 e 1860. Até a década de 1840, os investidores dominantes em Londres eram o Baring Brothers e a N. M. Rothschild & Co., este tendo ascendido, na metade dos anos de 1820, ao posto de financiadora estatal europeia (COTTRELL, 1975, p. 17, grifo nosso).

 

Essa afirmação de Cottrell se encontra em estreita consonância com os estudos de Carlos Gabriel Guimarães para a firma inglesa Samuel Phillips & Co., uma das principais casas de comércio inglesas no Brasil na primeira metade do século XIX. Assim coloca Guimarães:

 

[…] podemos afirmar que a Samuel & Phillips, depois Samuel Phillips & Co., constituiu-se numa sociedade comercial familiar que lembra outras firmas comerciais do período, na qual a família era fundamental. Entretanto […], se a família não se constituí no único instrumento operativo de uma determina sociedade, o que possibilita a estruturação social? Para o autor é a rede de sociabilidade, onde indivíduos e grupos sociais interagem, possibilitando identificar uma estrutura relacional. No caso específico da firma Samuel Phillips & Co., a etnicidade judaica Ashkenazi é o que estrutura a família e os negócios. Os casamentos entre famílias judaicas inglesas, no caso entre as famílias Samuel e Phillips, como também dos Samuel com [os] Cohen, fortaleceu a firma dos irmãos perante outras famílias, como foi o caso da Rothschild (Nathan Rothschild [se] casou com a filha de Berent Cohen, e foi ajudado por este). […] A autoafirmação em ser judeu fortaleceu a firma comercial e seus negócios, mesmo atuando num mercado hegemonicamente católico e socialmente escravista, como era o Império luso brasileiro, depois, o Império do Brasil. Com toda crítica à usura, aos juros cobrados, a firma comercial Samuel Phillips & Co. era reconhecida na praça mercantil do Rio de Janeiro, e de Londres, como uma firma financeira. Foi no setor financeiro, mais do que na venda de commodities, que ela se destacou (GUIMARÃES, 2011, p. nd).

 

Obviamente, nem todas as firmas inglesas no Brasil eram judias. Essa é apenas uma característica que algumas delas tinham, notadamente as principais.1 O que parece claro é que, ao longo do século XIX, o que as casas de comércio tinham em comum era a participação no tráfico negreiro brasileiro, seja no financiamento, direto ou indireto, a empreendimentos na África, seja na participação de remessas de escravos para diversas regiões do Brasil (KUNIOCHI, 2015, p 2-3, grifo nosso).

A análise da atuação dos ingleses e das firmas britânicas no comércio de cativos no Império do Brasil normalmente leva em conta a parte externa. Porém, muito dessa atuação se dava no âmbito do tráfico interno para as mais diversas províncias brasileiras. Uma das que mais recebeu escravos durante o século XIX foi Minas Gerais, principalmente para trabalhos com relação à mineração (LIBBY, 1984; LIBBY, 1988). Empresas foram formadas para a exploração das jazidas de pedras preciosas, principalmente ouro, sendo uma delas a Imperial Brazilian Mining Association (IBMA), formada em 1824, na Cornualha, Grã Bretanha, que comprou de João Baptista Ferreira de Souza Coutinho, Barão de Catas Altas, a mina de Gongo Soco pelo valor de ₤79,000 em 1825.2 Em seu oitavo relatório aos acionistas, os diretores da empresa fizeram menção, pela primeira vez, ao uso de mão de obra cativa nas suas atividades. Segue o relatório:

 

Os diretores, em seus relatórios anteriores, abstiveram-se de fazer qualquer alusão ao estabelecimento de escravos [negros], mas este tem sido objeto da maior preocupação, a partir do momento em que foram informados que eram donos de escravos, empenhar-se para diminuir e melhorar a condição de tais escravos. Um sistema de ordem, regularidade e limpeza foi estabelecido entre eles, o que tem contribuído tanto para a saúde deles quanto para sua tranquilidade e felicidade. Eles são adequadamente vestidos e bem alimentados, e são os primeiros a serem considerados em todos os contratos de suprimentos. Expedientes foram adotados para a melhora dos sentimentos morais deles e para a educação das suas crianças; e, apesar de os diretores poderem lamentar a necessidade que existe em se recorrer a tal espécie de trabalho [such a species of labor], é altamente gratificante para eles assegurar que os escravos estão sinceramente e com gratificação afeiçoados a seus empregadores e que um exemplo de um tratamento moderado e gentil tem sido apresentado com sucesso, o que aguçou a observação e a admiração dos brasileiros e contribuirá, sem dúvida, em grande medida, na melhora da condição geral dos escravos no Brasil. A humanidade, a gentileza e o julgamento do Capitão Lyon [então Chief Commissioner no Brasil, logo substituído pelo Coronel Skerret] foram efetivamente exibidas, durante todo seu comando, no tratamento dado aos escravos. Muitos fatos podem ser usados como prova disso, e o conselho está muito satisfeito em poder reportar que das 45 crianças [escravas] nascidas desde a chegada do Capitão Lyon à [mina de] Congo [Soco], 40 estavam vivas em primeiro de janeiro último, enquanto que, antes da chegada dele, apenas uma criança nasceu viva. Este fato é uma prova convincente do valor que os pais agora têm pela vida, desde a introdução do tratamento gentil que experimentaram. Em todas as filiais, também são encontrados, em nosso serviço, escravos inteligentes e ativos que desempenham várias tarefas com mais eficácia e, em todos os casos, tem sido a prática do Capitão Lyon recompensar os serviços dos negros da mesma maneira, apesar de não na mesma extensão, que são recompensados os trabalhadores livres. É firme a convicção dos diretores de que o Capitão Lyon não apenas tornou a condição dos escravos comparativamente melhor e mais satisfatória, mas [também] suscetível a uma melhora futura, o que, no decorrer do tempo, elevará os escravos a trabalhadores livres. Os acionistas podem contar com os diretores para manter o sistema de tratamento que o Capitão Lyon com sucesso iniciou: as instruções ao Coronel Skerret sobre o assunto foram explícitas e os diretores nele confiam para a continuação [dessas atividades] […] (IMPERIAL BRAZILIAN MINING ASSOCIATION, 1830, p. 14-15, grifo nosso, tradução livre do inglês).

 

O interessante nesse relatório é a forma como os diretores da empresa buscam se defender de qualquer participação ou conhecimento da utilização de trabalho escravo pela empresa. No início, mostram certo espanto em saberem que eram donos de escravos e passam a mostrar que a situação ficou bem por causa da atuação do Capitão Lyon, que trouxe aos negros um tratamento gentil e os transformou em trabalhadores mais ativos, até auxiliando na questão da natalidade. Destaca-se, também, a forma como eles colocam a escravidão, colocando-a como “tal espécie de trabalho”, demonstrando desprezo pela instituição do cativeiro. Em suma, era um relatório para acalmar os acionistas quanto à presença de escravos entre os trabalhadores da empresa.

 

Ilustração 1: Mina de Gongo Soco. Desenho a lápis feito por Ernst Hasenclever durante sua visita à mina (caderno de desenho, 1839).

Fonte: ALVES, 2014.

 

A postura dos diretores da Imperial Brazilian Mining Company não pode, contudo, ser interpretada como uma clara defesa de seus ideais de “trabalho livre”. Como já demonstramos, o avanço do capitalismo em pleno século XIX não foi uma barreira ou um desafio para escravidão. Pelo contrário, a instituição do cativeiro auxiliou o capitalismo, notadamente nas zonas de produção de matéria prima na nova divisão internacional do trabalho. Apesar de o Brasil imperial ser mais lembrado pela exportação de café e açúcar, a mineração também era uma atividade importante na economia brasileira dos oitocentos. A participação inglesa nessa atividade, com o uso do trabalho escravo, não é mais do que a própria segunda escravidão em funcionamento.

A partir do Banco de Dados IPEA-LIPHIS3, poderemos compreender como os ingleses participavam do tráfico interno no Império, com a remessa de diversos indivíduos africanos recém chegados para várias províncias do país. Ao todo, foram catalogadas 26.671 viagens em que ocorreram remessas de escravos. No total, foram 11.361 remetentes, entre indivíduos e empresas. Fazendo uma listagem mais específica apenas dos estrangeiros que remeteram escravos, temos a tabela abaixo:

 

Tabela 1: Remessas de escravos da cidade do Rio de Janeiro para outras províncias do Brasil realizadas por ingleses e outros estrangeiros (1809-1833).

Províncias do Brasil

Total de remessas

Total de remessas (%)

Total de escravos enviados

Total de escravos enviados (%)

Minas Gerais

83

27,85

801

47,17

Rio de Janeiro

88

29, 53

379

22,32

São Paulo

46

15,44

223

13,13

Rio Grande do Sul

47

15,77

215

12,67

Outras províncias

34

11,41

80

4,71

Total

298

100

1.698

100

Fonte: Banco de Dados IPEA-LIPHIS.

 

No total, os estrangeiros enviaram um total de 1.698 escravos do Rio de Janeiro para outras províncias do Brasil em um total de 298 remessas. O interessante é a discrepância entre os dados para Minas Gerais e para as outras regiões. O Rio de Janeiro foi a província que mais recebeu remessas de escravos, com 88 (29,53% do total), com Minas Gerais logo atrás com 83 remessas (27,85%). Mas a diferença se dá no total de escravos enviados. Se as remessas para o Rio de Janeiro se compunham de 379 escravos (22,32%), o total de escravos remetidos para Minas Gerais foi de 801 (47,17%). É uma diferença muito grande, como pode ser observado na tabela 2 seguinte:

 

Tabela 2: Escravos por remessas (1809-1833).

Províncias do Brasil

Total de remessas

Total de escravos enviados

Escravos por remessa

Minas Gerais

83

801

9,65

Rio de Janeiro

88

379

4,31

São Paulo

46

223

4,85

Rio Grande do Sul

47

215

4,57

Outras províncias

34

80

2,35

Total

298

1.698

5,70

Fonte: Banco de Dados IPEA-LIPHIS.

 

Observando atentamente os dados da tabela 2, comprovamos uma completa desproporção entre as remessas de escravos para Minas Gerais e para as outras províncias. Enquanto a razão “escravos por remessas” para o Rio de Janeiro (4,31 escravos por remessa), São Paulo (4,85) e Rio Grande do Sul (4,57) estão bem próximas, o número médio de escravos por remessa para Minas Gerais é de 9,65, muito acima das outras regiões em análise. Levando em consideração o que foi explicado anteriormente sobre a Imperial Brazilian Mining Association, é interessante pensar que muitos desses escravos enviados para a província mineira foram empregados na área da mineração, muito provavelmente na própria empresa inglesa.

Não é, contudo, do nosso interesse averiguar se a Imperial Brazilian Mining Association era a principal beneficiária das remessas de escravos para Minas Gerais. Estes dados são apenas mais um indício da participação de ingleses e de outros estrangeiros no tráfico interno brasileiro. Pensar nesses indivíduos como atuantes apenas da parte externa do tráfico é deixar de lado que o capital inglês se fazia presente em outros ramos da escravidão, como na posse de escravos e na parte interna do comércio de cativo. Na tabela 3 apresentamos os principais remetentes estrangeiros de escravos da cidade do Rio de Janeiro para outras províncias do Sudeste e Sul do Brasil.

 

Tabela 3: Principais remetentes estrangeiros de escravos do Rio de Janeiro para outras províncias do Império (1809-1833).

Remetente

Total de remessas

MG

RJ

SP

RS

Outras

Total de escravos enviados

MG

RJ

SP

RS

Outras

José Maxwell

7

0

4

0

3

0

118

0

5

0

113

0

Benjamin Binns

7

7

0

0

0

0

108

108

0

0

0

0

Warre, Raynsford e Cia.

1

1

0

0

0

0

100

100

0

0

0

0

João Miguel Sorage

11

11

0

0

0

0

96

96

0

0

0

0

Tomás Henrique Harpes

4

4

0

0

0

0

94

94

0

0

0

0

Antônio Buzelin

4

4

0

0

0

0

69

69

0

0

0

0

Roberto Laurie

3

0

3

0

0

0

59

0

59

0

0

0

Guilherme Platt

9

0

9

0

0

0

58

0

58

0

0

0

Augusto Milliet

2

0

0

2

0

0

57

0

0

57

0

0

Henrique Miller e Cia.

1

1

0

0

0

0

50

50

0

0

0

0

George Vincent Duval

2

2

0

0

0

0

46

46

0

0

0

0

Antônio da Silva Chiappe

3

3

0

0

0

0

44

44

0

0

0

0

Pedro Richer

3

0

0

3

0

0

38

0

0

38

0

0

João Lastalita

2

0

2

0

0

0

35

0

35

0

0

0

Carlos Lamounier

5

0

5

0

0

0

35

0

35

0

0

0

André Guadi Leys

1

1

0

0

0

0

30

30

0

0

0

0

João Guilherme Catelam

4

0

0

0

4

0

29

0

0

0

29

0

Pedro Peiraccine

1

0

1

0

0

0

28

0

28

0

0

0

Henrique Lebet

8

8

0

0

0

0

27

27

0

0

0

0

Henrique Riédy

6

1

0

4

1

0

27

4

0

22

1

0

Guilherme Harrison e Cia.

3

3

0

0

0

0

27

27

0

0

0

0

João Hiriart

2

0

2

0

0

0

26

0

26

0

0

0

Guilherme Braun e Cia.

3

0

3

0

0

0

25

0

25

0

0

0

Daniel Gardner

2

2

0

0

0

0

22

22

0

0

0

0

João Demby

3

0

2

0

0

1

22

0

8

0

0

14

Total

97

48

31

9

8

1

1.270

717

279

117

143

14

Fonte: Banco de Dados IPEA-LIPHIS.

 

Do total de 185 indivíduos ou empresas estrangeiras que remeteram escravos do Rio de Janeiro para outras províncias do Sudeste e Sul do Império, 25 estão dentro dos parâmetros estabelecidos acima para “principais remetentes”. Eles perfazem apenas 13,51% do total de remetentes. Além disso, suas remessas totais somam 97 viagens, 32,55% das 298 registradas. No entanto, o número de escravos remetidos por eles foi de 1.270, um percentual de 74,80 dos 1.698 escravos enviados. Como esperado, a região que mais recebeu escravos foi Minas Gerais, com 717 (56,46%), seguida do Rio de Janeiro, com 279 (21,97%); o Rio Grande do Sul, com 143 (11,26%); e São Paulo, com 117 (9,21%). O volume da província gaúcha foi inflacionado pelo remetente José Maxwell, ligado à firma Maxwell, Wright & Co. (SANTOS, 2014), que em três viagens remeteu 113 escravos para a província sulista.

A presença maciça de britânicos e outros estrangeiros no envio de escravos para as Minas Gerais não deve ter passado incólume pelas autoridades inglesas e nacionais, notadamente pela grande quantidade de cativos enviados para a região mineradora. Um dos principais remetentes de escravos para Minas Gerais foi Benjamim Binns. Apesar de seu nome não aparecer em nenhum almanaque de época, há um indivíduo com o mesmo sobrenome que aparece nos registros a partir de 1824 (IHGB, 1968). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1968, pp. 197-360. Seu nome é Guilherme Binns, e encontramos seu nome na seção “Avisos” da Gazeta do Rio de Janeiro:

 

AVISOS:

[…]

Quer-se uma casa com terreno, perto da Cidade, que sirva para família grande. Quem a tiver para vender ou alugar, procure a Guilherme Binns na Rua do Ouvidor, nº 32 (GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 1819-1822).

 

Provavelmente, Guilherme e Benjamin eram parentes, mas não encontramos nada que os ligue como sócios em algum empreendimento. De qualquer maneira, a quantidade de escravos enviados por Benjamim Binns do Rio de Janeiro para Minas Gerais, somado ao fato de que um possível parente era um comerciante na Corte no período das remessas, demonstra como os comerciantes estrangeiros poderiam se engajar no tráfico negreiro brasileiro, fosse sua faceta interna ou externa. É bom deixar claro, também, que essas remessas podem ter ocorrido no momento em que o tráfico ainda era legal no Brasil. Portanto, não podemos taxar a atuação desses indivíduos, em termos jurídicos, como um “crime”.

Outro grande remetente de escravos para a região mineradora foi a firma inglesa Warre, Raynsford e Cia., que aparece nos almanaques como Warre e Cia.4, também atrelada a Carlos Rainsford (ou Raynsford), comerciante inglês que aparece nos almanaques desde 1811 (IHGB, 1969). Na verdade, esse sujeito e sua firma eram um dos agentes da Imperial Brazilian Mining Company na cidade do Rio de Janeiro e essa remessa foi o primeiro lote de escravos da companhia mineradora (IPEA-LIPHIS). Temos aqui, então, um indivíduo inglês que se engajou diretamente no tráfico interno de escravos no Brasil. Seriam esses sujeitos que seriam atacados futuramente pela diplomacia londrina como ofensores da moral britânica e da política londrina de erradicar o comércio de cativos para o Império brasileiro.

Destaca-se, também, a firma inglesa Guilherme Harrison e Cia., na verdade, William Harrison e Cia., (IHGB, 1967), responsável pelo envio de 27 escravos para Minas Gerais. Eles também eram agentes de mineradoras, no caso da St. John Del Rey Mining Co., parceria que durou até a década de 1860. Os nomes que mais aparecem nos almanaques são o próprio William Harrison e um indivíduo chamado W. Henstock, também inglês. Não encontramos nada sobre esse indivíduo, apenas um possível parentesco com um oficial das forças armadas britânicas, Henry Henstock, que serviu no mesmo período em que W. Henstock aparece nos almanaques (GREAT BRITAN, WAR OFFICE, 1824, p. 529). Mais um inglês envolvido em remessas de escravos para a mineração.

Daniel Gardner é outro inglês a ser citado como grande remetente de escravos. Professor de Química na Corte, envolveu-se no envio de escravos e nas especulações financeiras de mineradoras na província de Minas Gerais. Aparece ligado à firma inglesa Samuel Gardner e Cia. (IHGB, 1968). Enviou, em duas remessas, 22 escravos. Não temos informações que liguem Daniel Gardner à firma Samuel Phillps & Co., mas suspeitas existem.

Também é importante citar o nome de Fernando Oxenford. Apesar de ter enviado apenas 7 escravos para Minas Gerais, em três remessas, sua notoriedade é ser irmão de Eduardo Oxenford, empresário inglês no Brasil e “delator” do uso de escravos pela Imperial Brazilian Mining Association. Suas ações levaram os diretores a se colocarem na defensiva no relatório anteriormente apresentado (IHGB, 1968).

Um negociante francês chamou atenção no comércio de escravos, com 27 escravos e 6 remessas. Trata-se de Jorge Henrique Benjamin Riedy, comumente destacado nos jornais como Henrique Riedy, como aparece no Jornal do Commercio em 1827, como intermediário para carregar mercadoria e ou passageiros do Rio de Janeiro para Havre de Grace, Le Havre, localizada na Normandia, França, pelo Bergatin francês LA Henrietti (JORNAL DO COMMERCIO, 1828, p. 3). Em 1828, Riedy organizou um engenho de açúcar sob a forma de sociedade anônima em Ubatuba, e tendo como acionista e diretor o comerciante de escravos e fazendeiro de café de Vassouras, João Rodrigues Pereira de Almeida, o Barão de Ubá (GUIMARÃES, 2012, p. 117). Na década de 1850, mais especificadamente no ano de 1853, ele aparece como presidente da Junta de Corretores da Praça do Rio de Janeiro, cônsul da Grécia, árbitro nas questões de faturas da Alfândega do Rio de Janeiro (ALMANAK LAEMMERT, 1853, p. 135, 156, 413), e tesoureiro do Banco do Brasil organizado pelo barão de Mauá (GUIMARÃES, 2012). Como destacado por Guimarães, o Barão de Mauá foi caixeiro do negreiro João Rodrigues Pereira de Almeida, o barão de Ubá, na década de 1820, e, portanto, já conhecia o negociante francês Riedy desde essa época.

Como se observou, a participação inglesa no tráfico de escravos não estava apenas na aquisição de africanos novos e nas suas conexões com a África. O ramo interno desse “negócio lucrativo” também não pode ser deixado de lado. É uma parte importante e, muitas vezes, obscura da atuação dos ingleses no Brasil, indo desde comerciantes da Praça do Rio de Janeiro até professores de Química. A garantia da liberdade de comercializar seja o que fosse (até outros seres humanos) e a manutenção da propriedade, seja ela moralmente ou juridicamente duvidosa, eram as bases com que esses indivíduos atuavam nas primeiras décadas do século XIX. Contudo, a ação resoluta da diplomacia britânica, através de seus representantes no Brasil, tornou a vida desses indivíduos mais complicada. As mudanças pelas quais passaria o Império na década de 1830 seriam outro obstáculo ao empreendimento inglês no tráfico.

 

 

Referências bibliográficas

 

ALVES, Débora Bendocchi. Ernst Hasenclever em Congo-Soco: exploração inglesa nas minas de ouro em Minas Gerais no século XIX. História, Ciência e Saúde – Manguinhos. Vol. 21. N. 1. Rio de Janeiro. Jan-Mar. 2014.

 

ARRUDA, José Jobson de Andrade. Uma colônia entre dois impérios: a abertura dos portos brasileiros 1800-1808. Bauru: EDUSC, 2008.

 

COTTRELL, P. L. British Investment in the Nineteenth Century. London: Macmillan, 1975.

 

FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil: aspectos da influência sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.

 

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Fontes de pesquisa

 

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Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1824. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. 278 (janeiro-março de 1968). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1968, p. 197-360.

 

Almanaque da Corte do Rio de Janeiro para o ano de 1811 (editado por Alexandre José Curado de Figueiredo e Albuquerque). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. 282 (janeiro-março de 1969). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1969, pp. 97-236.

 

Banco de Dados IPEA-LIPHIS. Acesso via CD-ROM.

 

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Notícias Marítimas. In: Jornal do Commercio, 4 de janeiro de 1828, p. 3, col. 1.

 

 

Recebido em 09/06/2021.

Aceito em 20/10/2021.

 



[1]     Doutor em História Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense. Professor da Faculdade Lusófona do Rio de Janeiro. Brasil. E-mail: joaodaniel1985@gmail.com | https://orcid.org/000-0001-9515-0009



1 Para outros trabalhos que tratem das firmas inglesas no Brasil, ver GUIMARÃES, 2015; GUIMARÃES, 2012; SANTOS, 2014.

2 Sobre o assunto, ver ALVES, 2014; SOUZA, 2004.

3 O Banco de Dados Fragoso-Ferreira ou Banco de Dados IPEA-LIPHIS é o resultado do levantamento feito em quatro códices (BD 390, 421, 424 e 425, passados por cinco expurgos visuais sucessivos) da Intendência de Polícia da Corte, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, de dados de remessas de escravos da cidade do Rio de Janeiro para diversas províncias do Sudeste e Sul, no período entre 1809 e 1833. A grande maioria desses escravos era composta por negros novos, ou seja, recém-chegados da África. O levantamento foi feito entre 1999-2000, por uma equipe do LIPHIS/UFRJ, coordenada por João Luís Fragoso e Roberto Guedes Ferreira, por solicitação de Roberto Martins, então presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que financiou o projeto.

4 Os interesses comerciais da firma Warre (ou Warren) & Co. vêm desde a chegada da Corte lusa ao Brasil, em 1808. Sobre o assunto ver ARRUDA, José Jobson de Andrade. Uma colônia entre dois impérios: a abertura dos portos brasileiros 1800-1808. Bauru: EDUSC, 2008, pp. 56-57.

 

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