Escrita da História e sexualidade: Cassandra Rios, ausência e invisibilidade Writing of the History and sexuality: Cassandra Rios, absence and invisibility

Flávia Mantovani[1]

 


Resumo

Repensar a escrita da História é tarefa que vem ocupando um lugar considerável na produção de historiadores, sobretudo, ao longo do século XX. Considerando outros sujeitos, objetos e olhares, o campo historiográfico abre-se para novos problemas. Este texto apresenta possibilidades de escrita da História na interface com a sexualidade a partir da produção literária de Cassandra Rios (1932-2002), escritora conhecida como a “mais proibida do Brasil”, a julgar por seus mais de trinta livros vetados pela censura vigente, também, na Ditadura Militar. A partir de alguns questionamentos colocados pelo campo da História das Mulheres, apresenta-se uma possibilidade de escrita da História por meio da perspectiva de mulheres lésbicas, haja vista a temática abordada por Rios em grande parte de sua escrita, voltada para histórias de desejo entre mulheres. Ao final, apontam-se perspectivas em Cassandra Rios de visibilizar tais sujeitos, geralmente ausentes na historiografia, e a potencialidade de sua produção literária como fonte pertinente na (re)escrita da história de sujeitos com sexualidades dissidentes.  

Palavras-chave: Escrita da História; Cassandra Rios; Literatura e censura; Sexualidade e política; Literatura lésbica.

 

 

Abstract 

Rethinking the writing of the History is a task that has been occupying a considerable place in the production of historians, especially, throughout the 20th century. Considering other subjects, objects and views, the historiographical field opens up to new problems. This text intends to present possibilities of writing of History in the interface with sexuality based on the literary production of Cassandra Rios (1932 – 2002), a writer known as the “most forbidden in Brazil”, it was concluded by the thirty books vetoed by censorship, also, in the military dictatorship. From some questions raised by the field of the History of Women, a possibility of writing of History from the perspective of lesbian women is presented, considering the theme approached by Rios in the most part of her writing, focused on stories of desire among women. In the end, perspectives are pointed out in Cassandra Rios to make visible these such subjects, generally absent in the historiography, and the potential of her literary production as a relevant source in the (re)writing of subjects’ history with dissident sexualities.

Keywords: History writing; Cassandra Rios; Literature and censorship; Sexuality and policy; Lesbian literature.


 

 

 

Da história das mulheres as mulheres lésbicas: o outro da História

 

Ao longo do século XX, a escrita da história se apresenta como problema aos historiadores, que indagam seus processos, lugares, operações. A partir de uma valorização da subjetividade, seja das fontes, seja do olhar do pesquisador, emergem, na escrita e na pesquisa historiográfica, novos sujeitos e novas abordagens, portanto, outros problemas. Principalmente nas décadas de 1960 e 1970, contexto em que ocorrem vários movimentos sociais pelo viés das diferenças – como exemplos, o movimento negro, homossexual, das mulheres, enfim –, a questão do “outro” ganha importância. Ainda o feminismo, sobretudo o francês e o norte-americano, traz ao centro problemas sobre as mulheres em sociedade, colocando outros pontos de vista sobre sexualidade, família, poder, o que vai perpassar a prática de pesquisadoras em várias áreas das ciências humanas, cada vez em maior número nas universidades. O tema da sexualidade tem adquirido relevância e, nesse sentido, pensar a escrita da história em relação à identidade lésbica abre muitos caminhos. 

Se por um lado, desde os anos 1970, a história se preocupa em pensar o lugar das mulheres – no Brasil, um movimento mais expressivo na década de 1980 –, muito pelo viés da invisibilidade, por outro, ainda é tímida a presença das mulheres lésbicas na História ou uma escrita da história por essa perspectiva. Pesa sobre as mulheres um silêncio, sobre a homossexualidade feminina ainda mais. Neste texto, busca-se apontar problemas que tangem à sexualidade lésbica e a História, bem como os sentidos na leitura da produção literária de Cassandra Rios.  

Cassandra Rios, a escritora “mais proibida do Brasil”, é pseudônimo de Odete Rios Pérez Perañes Gonzáles Hernandez Arellano, nascida em São Paulo (1932), filha de pais espanhóis radicados no Brasil, no bairro de Perdizes. Publicou seu primeiro livro1 A Volúpia do Pecado em 1946, aos dezesseis anos. A autora publicaria, ao longo da sua carreira, mais de sessenta romances, além de poesias e duas autobiografias. Adquiriu a alcunha de “escritora maldita” com seus mais de trinta livros vetados, principalmente na década de 1970, sob a Ditadura Militar. Cassandra Rios falece em 2002, em São Paulo, deixando vasta obra literária fora do cânone, quase sempre esquecida, por vezes vista como pornográfica e sem qualidade.

Em um primeiro momento, busca-se abordar a história das mulheres e como esse campo forneceu, para um dado momento na historiografia, questionamentos a respeito da parcialidade da história até então produzida nas universidades, pretensamente universal e a partir de um dado sujeito. Em segundo lugar, reflete-se sobre a ausência da dimensão da sexualidade na historiografia e possibilidades de se escrever a história de mulheres lésbicas. Em seguida, é problematizada a produção literária de Cassandra Rios como fonte histórica pertinente na visibilização de mulheres lésbicas na história, com algumas considerações a partir da leitura de Eu sou uma lésbica.

Escrever a História das Mulheres

 

Escrever a história das mulheres, como diz Michele Perrot, é romper um silêncio, passar do silêncio à palavra. A autora retoma a constituição da História das Mulheres na década de 1970 em âmbito acadêmico, colocando-se como testemunha e atriz desse processo. Se, para Perrot, o que pesa sobre as mulheres é um silêncio, outras historiadoras vão olhar a questão pelo prisma da invisibilidade. Seja como for, é evidente uma ausência das mulheres na história escrita antes da década de 1970.  

Sendo a história sempre do presente, é importante considerar o contexto em que ganha relevância uma história das mulheres. Perrot2 relata, a partir de suas experiências na França e o contato com o movimento de mulheres na Sorbonne, onde reverberaram os acontecimentos de maio/68. Na universidade do pós-guerra, nos anos 1950, os professores eram todos homens, embora crescesse a presença de estudantes mulheres. A autora comenta a publicação d’O Segundo Sexo e a predominância do econômico e do social na história nesse período austero de reconstruçãoSeu curso oferecido em 1973, que tinha como título “As mulheres têm uma história?”3, demonstra o caráter inicial e incerto da questão das mulheres e da história. Uma História das Mulheres hoje óbvia, que “soa evidente. Uma história ‘sem as mulheres’ parece impossível” (PERROT, 2017, p. 13), não existia. O que neste início do século XXI parece algo dado, não o era na década de setenta do século passado.

 O nascimento da História das Mulheres imbrica fatores científicos, sociológicos, políticos. A propósito dos fatores científicos, pode-se pensar na crise dos sistemas de pensamento, já que, por volta dos anos 1970, dá-se uma renovação das questões, bem como aproximações da história com a antropologia explorando questões da família4, o que trouxe, para o centro, problemas ligados à nupcialidade, à natalidade, ou seja, a história passou a colocar atenção na dimensão sexuada dos comportamentos, o que envolve uma relação maior com a subjetividade nas reflexões (PERROT, 2017, p. 19). Nesse mesmo contexto, foi decisivo o aumento da presença das mulheres na universidade como fator sociológico importante. Politicamente, Perrot reflete sobre os movimentos de liberação das mulheres, o que não visava, de início, as universidades, mas estão no meio acadêmico quando se põe em curso um trabalho de memória sobre as mulheres – encontrar seus vestígios e torná-los visíveis – e, ao mesmo tempo, uma crítica aos saberes constituídos a partir da universalidade do sujeito masculino (PERROT, 2017, p. 20). Inicia-se, aí, uma crítica sexuada da história escrita até então. 

Assim, Perrot acrescenta que há a história, ou seja, as experiências sociais e coletivas, e há o relato dessa história – a escrita da história.  A mulher está “na história”, pois tudo é história, então, por quais motivos ela praticamente não se encontrava no relato? Há uma série de fatores que explicam esta ausência, um deles é a própria ausência de mulheres na esfera pública, já que seu acesso à educação formal e à universidade são restritos e tardios. Primeiro, as mulheres são menos vistas no espaço público, pois “[...] atuam em família, confinadas em casa, ou no que serve de casa. São invisíveis. Em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas [...]” (PERROT, 2017, p. 17). Tendo isso em vista, o campo da História das Mulheres se desenvolve, trazendo mudanças significativas, partindo de uma história do corpo e dos papeis desempenhados para uma história das mulheres no espaço público da cidade, “partindo das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam a mudança” (PERROT, 2017, p. 15).

  Em síntese, escrever a história das mulheres implica em duas atitudes fundamentais: romper o silêncio e superar a ausência das fontes, além de enfrentar fontes em que aparecem, mas de forma indireta. Um silêncio pesa sobre as mulheres porque são invisíveis no espaço público (embora fluida a fronteira entre público/privado, e a crescente participação feminina na esfera política) e porque são menos vistas, menos se fala delas. 

Sobre esse silêncio, é interessante observar que muito dele vem sendo rompido. Se, de forma global, pode-se pensar historicamente em um silenciamento das mulheres, uma ausência de suas vozes nas fontes, nos arquivos ou mesmo na literatura, algo já se construiu neste meio século sobre narrativas históricas feitas por mulheres. Este esforço por trazer a mulher visível para a reflexão historiográfica, importante por focalizar outros problemas, objetos, levantar temáticas, está hoje aliado a outras especificidades das experiências deste sujeito: não apenas mulheres, mas mulheres racializadas, de uma dada classe e geolocalização. A emergência do conceito de gênero, a partir dos anos 1990, complicou o debate e, igualmente complicada, tem sido a desconstrução das identidades de gênero a partir de perspectivas pós estruturalistas, que questionam não só o sujeito “mulher”, mas a fixidez das identidades sexuais e de gênero – como faz a teoria queer. Dito de outra forma, a História das Mulheres, atualmente, é escrita necessariamente de uma maneira mais plural.

Ainda sobre a visibilidade das mulheres na esfera pública, Michele Perrot levanta dois pontos. Primeiro, as mulheres são menos “vistas”, o que foi o interesse dos historiadores por muito tempo. Somando-se à ausência do espaço público, há a ausência de fontes. Porque são pouco vistas, pouco se fala delas. A autora aborda a questão sobre os vestígios diretos escritos e materiais produzidos pelas mulheres e sua escassez, já que seu acesso à escrita foi tardio, suas produções domésticas são rapidamente consumidas e dispersas mais facilmente. São elas mesmas, segundo Perrot, quem destroem tais vestígios e os apagam, porque os julgam sem interesse. Julgam-se mulheres cuja vida não tem interesse. “[...] Há um pudor feminino que se estende à memória. Uma desvalorização das mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstancial à noção de honra” (PERROT, 2017, p. 17). Dessa forma, a autora considera:

 

[...] Para ouvir suas vozes – a palavra das mulheres –, é preciso abrir não somente os livros que falam delas, os romances que contam sobre elas, que as imaginam e as perscrutam – fonte incomparável –, mas também aqueles que elas escreveram, folhear os jornais lançados por elas desde o século XVIII. Por conseguinte, transpor, com elas, os obstáculos que, durante muito tempo, impediram seu acesso à escrita, fronteira proibida do saber e da criação [...] (PERROT, 2017, p. 31)

 

  Buscar os vestígios das mulheres nos arquivos, nas bibliotecas e nos materiais impressos para ouvir as suas vozes, encontrar as fontes, é, desde o início da escrita dessa história, uma dificuldade. Há considerável volume de escritos sobre mulheres, mas não por mulheres, a princípio, visto que as mulheres têm uma inserção tardia, parcial, no mundo das letras, do saber, da escrita.  Em relação à literatura, as mulheres se avolumam a partir do século XIX5, não raro, em sua maioria, autoras aristocráticas. A existência de um público leitor feminino foi um dos fatores de estímulo para essas autoras, além do próprio feminismo, que emerge enquanto movimento social organizado nesse século (PERROT, 2017).

 Uma observação interessante trazida por Perrot é que, no que consiste à literatura pessoal – autobiografia, diário íntimo, correspondência –, há um aspecto de lacuna e falta da presença das mulheres nesses arquivos, em função do uso que elas fazem da escrita, vista como “privada, e mesmo íntima, ligada à família, praticada à noite, no silêncio do quarto” (PERROT, 2017, p. 28). Esse tipo de escrita, tem um carácter feminino e mais adequado às mulheres, justamente por seu caráter privado. A historiadora assinala para as poucas autobiografias de mulheres e a dificuldade de haver, por partes delas, um olhar voltado para si. Há uma tendência, um aspecto subjetivo, de não atribuir importância às próprias memórias (PERROT, 2017).   Seja como for, faz sentido emprestar da autora a noção de ausência de relatos e escrita de si para pensar a presença das mulheres lésbicas na escrita da história. Não é difícil observar que, historicamente, a sexualidade feminina é silenciada, regulada, normatizada a partir de poderes e discursos da Igreja, do estado, da família em diferentes contextos históricos e sociais.  O prazer e a liberdade sexual das mulheres são problemas teóricos e políticos em muitos aspectos, não só no homoerotismo. O clássico exemplo de Safo, cuja escrita chega aos nossos dias muito mais fragmentada do que a de outros gregos, demonstra a dificuldade em acessar esse “domínio secreto” do amor e desejo entre mulheres.  

             

Histórias lésbicas, lésbicas na História

Repensar a escrita da história na interface com a sexualidade implica também considerar os silêncios e silenciamentos em relação aos sujeitos de sexualidades dissidentes e, ainda, de que maneira a dimensão da sexualidade perpassa a produção/escrita da história, isto é, significa pensar nas possibilidades do fazer histórico em uma perspectiva lésbica. Elias Ferreira Veras e Joana Maria Pedro partem da chave da invisibilidade em “Os silêncios de Clio: escrita da história e invisibilidade das homossexualidades no Brasil” e apontam alguns caminhos para se repensar e construir essa escrita.  

Veras e Pedro sugerem que, ainda que tenha havido, principalmente a partir da segunda metade do XX no Brasil, uma considerável renovação da historiografia, no que diz respeito a sujeitos, abordagens e problemáticas, parece persistir um certo silêncio sobre as homossexualidades. Trata-se de um “pensamento heterossexual” ecoado, como colocado por Veras e Joana

Pedro. Os autores tratam do “despertar de Clio” de seu longo “sono heteronormativo”. A partir disso, surgem desafios: como pensar uma escrita da história que se atente para a pluralidade de sexualidades. Consideram, ainda, que há uma predominância da homossexualidade masculina nos estudos em História (VERAS; PEDRO, 2014). 

Ainda com esses autores, é pertinente considerar que, apesar de recente e não muito expressiva, há uma produção crescente nas pesquisas em História que pautam a sexualidade, que aqui nomeia-se lésbica. Encontra-se, por exemplo, nos trabalhos de Tania Navarro-Swain, a construção dessa perspectiva. Se a história das mulheres tem por ambição, por um lado, um “trabalho de memória” e, por outro, uma “crítica aos saberes constituídos”, um trabalho com a produção literária de Cassandra Rios, dada a sua temática, está entrelaçado nessas duas searas. Segunda Elias Veras e Joana Pedro:  

[...] a invisibilidade das homossexualidades nos estudos históricos não se justifica pela ausência de fontes. Afinal, as fontes não são ela mesmas produto do processo interpretativo, inventivo da operação historiográfica, resultantes da seleção e classificação feitas pelos/as historiadores/as? Tampouco representam uma aversão dos/as historiadores/as às novas temáticas – há muito os ‘marginais’, os ‘vencidos’, os ‘excluídos’, os ‘silenciados’ povoam os livros de história – ou mesmo ao tema da sexualidade. (VERAS; PEDRO; 2014, p. 96)   

 

  A historiadora Tania Navarro-Swain traz uma reflexão sobre as lesbianidades ao longo da História. Para a autora, “o que a história não diz não existiu”, já que a História como narrativa que “recorta a vida e o passado em textos produzidos segundo a percepção da realidade dos historiadores” (NAVARRO-SWAIN, 2004, p. 11), escamoteia, esconde, ignora períodos da experiência humana. Assim, a história quando descreve e analisa, “proclama uma ordem, uma lógica”, nos eventos; a própria escolha do que deve ser importante já nos diz sobre isso, já que marginaliza ou elimina da historiografia as relações sociais que escapam aos modelos. 

Em sua reflexão sobre o que é o lesbianismo, a autora vincula as suas formulações ao processo histórico, ou seja, entender o lesbianismo é compreendê-lo no e ao longo do tempo, atentando-se para o que a história disse e não disse a seu respeito. 

 

Falar de lesbianismo não é apenas descrever práticas ou elaborar definições; é sobretudo tentar observar como uma certa prática sexual se insere nas relações sociais, como é avaliada, julgada, denegrida, louvada ou silenciada no desenrolar da História. É também colocar questões relativas à identidade do humano, à delimitação das pessoas dentro de categorias sexuadas – mulher e homem – que as condicionam e as enquadram em modos de ser, maneiras de sentir, de perceber o mundo e a si próprias. (NAVARRO-SWAIN, 2004, p. 12)

 

A argumentação da autora vai ao encontro da ideia de que a escrita da história – em suas palavras o “fazer histórico tradicional” –, exclui ou deixa de focalizar determinados temas ou sujeitos, privilegiando outros na escolha ou nos recortes temporais. Esse ocultamento de certas questões do fazer histórico está presente também na mediação das fontes, que já trazem limites em suas condições de possibilidade e são interpretadas pelos historiadores que imprimem seus valores. Em suma:

[...] o fazer dos historiadores, em sociedades patriarcais, exclui da memória social a diversidade possível das relações sociais em que sexo e sexualidade não seriam determinantes nem de identidade, nem de exclusões. Elimina também a possibilidade de sociedades não-binárias, não fixadas em uma dicotomia incontornável de gênero, ou ainda de sociedades em que o feminino tenha tido uma importância inaceitável aos produtores da história. (NAVARRO-SWAIN, 2008, p. 29)

A autora centra em dois eixos a sua discussão sobre os limites da história social por meio do fazer historiográfico. Em um primeiro momento, traz exemplos a respeito da Antiguidade, discutindo como as amazonas6, que aparecem em escritos clássicos, são vistas como míticas, ou mesmo as evidências de outras representações do feminino, no culto a deusas, se perdem na memória. Ainda, a historiadora levanta as ideias de feminino e práticas sexuais no olhar dos cronistas e nos viajantes presentes no Brasil do século XVI, para problematizar o lugar que a historiografia tradicional deu à sexualidade das mulheres. Por meio desses exemplos, a autora demonstra as generalizações e naturalizações de gênero e sexualidade que a prática histórica carrega e propõe um outro olhar, uma história possível através desses indícios ignorados, construindo uma narrativa sem as naturalizações que discutiremos a diante (NAVARRO-SWAIN, 2008).

Sobre as mulheres guerreiras, conhecidas pelos autores gregos como “amazonas”, construiu-se uma interpretação mítica, porém, há achados arqueológicos7 que contradiriam esta tese: perto de Pokrovka, na Rússia, esqueletos de mulheres enterradas com armas sugerem que os contos dos gregos tinham alguma base factual. O questionamento de Navarro-Swain caminha no seguinte sentido: por que persiste esta interpretação mítica? Considerando que “O silêncio é político e não falar destas descobertas ou apagar as construções sociais não patriarcais é uma estratégia de poder”, a autora apresenta uma dimensão sexuada da escrita da história, na qual de certa forma pesou a subjetividade masculina de se considerar infactível um feminino voltado para a guerra, a força, ou seja, que destoa daquilo que, também na ciência, se constrói para as mulheres como destino biológico: a maternidade e o cuidado  (NAVARRO-SWAIN, 2008, p. 31). 

 Há, nos passos dessa autora, uma lógica de reafirmação de um feminino apenas atrelado à reprodução da vida e a uma sexualidade “voluptuosa”, tendo o seu aspecto criador ou guerreiro apagado quando se analisa o panteão religioso. Como exemplo, apresenta a deusa Ianna, sumeriana, usualmente representada como deusa guerreira que teve posteriormente sua imagem associada apenas ao aspecto da fertilidade e a existência, na época neolítica, de lugares onde o direito divino era atrelado a uma deusa. Tais aspectos demonstram como, mesmo armadas ou com importância social, “as Grandes Deusas criadoras do universo não conseguiam perder o cunho de um feminino reprodutivo” em uma interpretação fundada no binarismo de gênero e corpos sexuados. Em suas palavras, tanto nas descrições do quotidiano quanto no “panteão religioso e/ou no exercício do poder, as narrativas históricas primam pela representação de um masculino todo-poderoso e de um feminino relegado à fertilidade/reprodução” (NAVARROSWAIN, 2008, p. 32).  

  Um outro aspecto abordado por Navarro-Swain que auxilia a repensar as narrativas historiográficas é a questão da sexualidade no Brasil Colonial. Ao destacar, por uma ótica feminista, a construção do feminino, tanto no olhar dos cronistas quanto de alguns historiadores, a autora demonstra como, nas sociedades indígenas, possivelmente existiam relacionamentos sociais múltiplos não orientados pelo sexo como categoria biológica/anatômica, ou pelo exercício da sexualidade baseada em papeis de gênero (NAVARRO-SWAIN, 2008), ou seja, houve um pensamento binário (europeu, cristão, heteronormativo) na leitura destas sociedades.

 Em suma, a autora aponta que os historiadores fazem uma divisão das sociedades indígenas em homens e mulheres, uma divisão sexuada do humano – são os pressupostos de um gênero calcado em um corpo tomado em seu aspecto biológico, anatômico, genital –, o que não necessariamente existiria na experiencia social dessas sociedades, se observados os relatos dos cronistas8. Ainda, a autora aponta que, num confronto entre fontes e produção historiográfica, há um “obscurecimento da presença e ação das mulheres no Brasil colônia, numa percepção que institui sentidos binários e hierárquicos às organizações sociais indígenas e coloniais, instaurando cânones morais e assim criando gêneros, nos moldes eurocêntricos” (NAVARROSWAIN, 2008, p. 39).  

É pertinente, também, o estudo de Lígia Bellini9 sobre as práticas de sodomia – na falta de um outro vocábulo – pela Inquisição portuguesa no século XVII: 

Não se fala, logo não existe. De tal forma que no século XVII a Inquisição, para julgar as mulheres acusadas de práticas homossexuais, não dispunha de uma palavra com a qual nomeá-las: eram chamadas de ‘sodomitas’. Isso é extremamente significativo, pois ao nomear cria-se uma imagem, cria-se um personagem no imaginário social. As mulheres homossexuais não tinham direito a um nome, logo, à existência. (NAVARROSWAIN, 2004, p. 20).

Ainda que esses exemplos levantados pela autora não coincidam, em período histórico, com a temporalidade em que escreveu Cassandra Rios, esse caminho inspira a evitar uma postura dogmática na interpretação das fontes históricas. Podemos pensar alguns apontamentos: o trabalho com a produção literária de Cassandra Rios recupera uma memória da produção lésbica na história do Brasil; de certa maneira, é trazer uma escrita da história pela inclusão da sexualidade feminina. 

É evidente que a escrita de Cassandra Rios é marcada pela censura. Esta, apesar de remontar a uma tradição conservadora no Brasil e situar-se na longa duração, foi mais sistematicamente utilizada e aparatada pela Ditadura Militar. No que diz respeito, especificamente, aos estudos de sexualidade e ditadura, mesmo que mais de trinta anos nos separem do fim do regime e do processo de abertura política, ainda é consideravelmente recente a relação historiográfica entre os dois temas, tanto por um apagamento da sexualidade como questão histórica, quanto pela memória construída pela ditadura ter privilegiado, em um primeiro momento, análises focadas na dimensão político-estatal e a luta contra a repressão. Vincular questões teóricas de gênero e sexualidade na análise da ditadura é um movimento dinamizado, por um lado, pelas Comissões da Verdade e, por outro, os movimentos da própria historiografia, que tem ampliado cada vez mais o campo em termos de fontes, objetos e temáticas. Da ocasião da 98º audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, com o tema "Ditadura e homossexualidade: resistência do movimento LGBT", desdobra-se o livro “Ditadura e Homossexualidades” organizado por James Green e Renan Quinalha, que reúne vários textos, referenciais indispensáveis para se pensar as repressões a estes sujeitos pela ditadura. Enfim, redimensionar o olhar para o período considerando a sexualidade como um dispositivo de poder, pode ampliar horizontes e complexificar a análise.

Ainda, uma produção a respeito de vivências e existências lésbicas na Ditadura Militar10  deve ser retomada e levada em conta na leitura das escritas de Cassandra Rios. As lutas do movimento lésbico feminista, situadas na década de 1980, tem duas dificuldades: primeiro, o estado político militar de direita, extremamente autoritário e conservador em relação à sujeitos que desviassem as normas de sexualidade, desafiando a “moral e os bons costumes”. Assim, as lutas por visibilidade e respeito a sexualidade lésbica nascem de forma inseparável das lutas por liberdade e contra a ditadura. Segunda dificuldade, a esquerda ortodoxa, também conservadora, que não compreendia a necessidade dessas pautas (FERNANDES, 2014).

Pensar as escritas de Rios nessa interface com as vivências lésbicas neste momento em que é publicado Eu sou uma lésbica, implica ao mesmo tempo em tensões e aproximações com a militância e atuação política de lésbicas. Em 1979 e 1980, anos em que Eu sou uma lésbica foi publicado na revista Status e como livro, respectivamente, tem início uma forte e atuante militância de lésbicas em São Paulo, momento em que que se forma o pioneiro e combativo “LF”, dentro do Somos, que daria origem ao GALF11 com uma significativa atuação pela visibilidade lésbica e contra a repressão policial. Apesar de a obra da Cassandra Rios ser amplamente lida por estas militantes, como nos mostram depoimentos de Carmem Lucia Luiz (enfermeira, ex-conselheira nacional de Saúde), Marisa Fernandes (historiadora, uma das primeiras ativistas lésbicas do Brasil, cofundadora e integrante do “LF” E GALF), e Miriam Pillar Grossi, (antropóloga, professora-pesquisadora UFSC) sobre ser lésbica na ditadura (IRE; SILVA; LENZI; 2019), há tensões. Os depoimentos ouvidos para o artigo “Ser lésbica na ditadura”, citam Cassandra Rios como referência, não sem ressalvas, e informam sobre o impacto de suas obras no imaginário lésbico naquele momento. Assim, pode-se pensar em uma aproximação: por colocar as sociabilidades lésbicas em discurso e, ser uma forma de visibilidade ao inserir a lésbica (e outras dissidências sexuais e de gênero), a obra de Cassandra faz circular imagens/discursos, mas há tensões, já que estes discursos que podem ser vistos como caricatos, estereotipados, patologizantes que estigmatizam modos de ser lésbicos, o que vai de encontro a visibilidade e valorização da lesbianidade proposta por estas militantes. 

 

Escritas lésbicas em Cassandra Rios

 

É na publicação de seu primeiro livro A Volúpia do Pecado (1948), uma história de amor entre duas adolescentes, que a escritora escolhe o pseudônimo Cassandra12 Rios. O livro, vendido rapidamente, seria tirado de circulação em 1962. Carne em Delírio, seu segundo romance, proporcionou que o editor criasse sua própria editora, tamanho o sucesso de vendas da publicação anterior.   

Na mídia, em entrevistas, Rios é comumente enunciada como um “sucesso de vendas”, aparecendo como autora muito lida e vendida. A revista Realidade declarou que “cada novo livro seu vende 3 000 exemplares em quinze dias, sem nenhuma propaganda” (REALIDADE, 1970). Numerosas também são as menções, a cada capa de livro, à Cassandra Rios como a primeira escritora do Brasil a vender um milhão de exemplares, marca atingida apenas por Jorge Amado e José Mauro de Vasconcelos. Eudemônia (1949) é um marco na carreira da escritora pois, a partir daí, vários outros são publicados e Rios passa a viver das publicações e direitos autorais de seus livros, alguns dos quais adaptados para o cinema.

Encontro em Cassandra Rios a incomum oportunidade de acessar um pouco dessas vozes silenciadas, sujeitos ausentes do relato histórico. Nesse sentido, há pelo menos duas possibilidades: os documentos da censura de suas obras e a sua vasta produção literária. A tese de Kyara Maria de Almeida Vieira é central para observarmos como Cassandra Rios se empenhou na construção de seu nome de autora, se valendo dos discursos da censura. Vários de seus livros, inclusive, trazem rótulo de “autora mais proibida do Brasil” como um chamativo.

Em relação à primeira possibilidade, a documentação sobre as atividades censórias encontra-se, atualmente, no acervo do Fundo do Departamento de Censura a Diversões Públicas (DCDP), no Arquivo Nacional de Brasília (DF). Esses documentos são interessantes para que se pense os motivos pelos quais Rios é considerada imoral e pornográfica pelos censores, ou seja, daria uma dimensão do olhar da censura moral no período. O trabalho de Douglas Átila Marcelino (MARCELINO, 2006) analisa a censura de livros praticada nos anos 1970, procurando demarcar a diferença entre censura política e censura moral, trazendo em seu trabalho alguns pareceres dos vetos a Cassandra Rios, donde podemos inferir que esta foi censurada por ser mulher e tratar temas como “lesbianismo”. Também a dissertação de mestrado de Julia Aleksandra Martucci Kumpera, especificamente o primeiro capítulo, apresenta análise aprofundada de documentos do SNI, da comunidade de informações, identificando as relações entre subversão política, moral e sexual, lançando um olhar para a interdição de lesbianidades na linguagem (KUMPERA, 2021).

Por outro lado, as histórias, tramas e personagens que se encontram em sua produção permitem refletir representações da sexualidade no período em questão. Há, no entanto, uma incoerência em se pensar uma em separado da outra, visto que Rios escreve sob a sombra da censura desde sempre: seja a autocensura por questões subjetivas, seja a censura de uma maneira ampla, já que é um tabu expor, entre outras coisas, a homossexualidade feminina. Há ainda um outro aspecto a ser aprofundado sobre Rios e sua relação com a censura: é pertinente ver que a escritora tenha tido um trabalho de construção da sua imagem de escritora a partir dos vetos a seus livros, cunhando sua própria fama de “escritora maldita”, “escritora proibida” (VIEIRA, 2014).

Em sua tese “Contra a moral e os bons costumes: a política sexual da ditadura brasileira”, Renan Quinalha menciona o aspecto da sexualidade na censura presente na obra de Cassandra Rios, apontando a temática da homossexualidade como uma das causas da repressão à autora. Quinalha traz alguns pareceres nos quais os censores fazem referência ao “homossexualismo” como característica presente nos romances: “o ‘homossexualismo’ em Rios era indesejado pelos censores, ou a ‘descrição ousada’ feita pela autora de relações lésbicas era utilizada como justificativa para a proibição, a exemplo do que afirma o censor acerca do livro A Volúpia do Pecado (QUINALHA, 2017, p. 134). Outro de seus livros, As traças, foi vetado sob alegação da censora de que a história transmitia mensagem negativa “porque a autora afirma que o lesbianismo é a verdadeira condição normal das mulheres. Contraria, assim, de maneira frontal, um padrão moral consagrado pela nossa sociedade” (QUINALHA, 2017, p. 134)13. A ocorrência desses pareceres demonstra que a censura não se detém apenas em questões consideradas estritamente políticas, mas também sobre normas de comportamento, normas de sexualidade, o que extrapola a questão político-estatal. Em outras palavras, a censura tem duas dimensões: uma política e outra moral14.

 Se hoje é possível elaborar a noção de sexualidade em seus imbricamentos com o poder e, portanto, conceber as normas de gênero e sexualidade em seu aspecto político, é porque houve um esforço teórico de entendê-las como construções históricas e discursivas, tal qual já colocado por Foucault. No discurso do pensamento militar, as homossexualidades são desvio, perversão ou subversão. Assim, as normas de sexualidade têm um caráter regulatório do corpo, passando do privado ao político, tendo nos livros de Cassandra Rios uma das vias em que formas de desejo e experiências não heteronormativas se dão a conhecer. 

A esse respeito, central para se pensar esta dimensão política nos escritos de Rios é a categoria de heterossexualidade compulsória, fundamental no pensamento teórico por uma perspectiva lésbica construída por Adrienne Rich. A autora trata da heterossexualidade como categoria política, instituída com a finalidade de retirar o poder das mulheres, imposta compulsoriamente através do exercício do poder masculino em suas diversas violências. No seio de um pensamento heterossexual15, a “experiência lésbica é percebida através de uma escala que parte do desviante ao odioso ou a ser simplesmente apresentada como invisível” (RICH, 2010, p. 21). Como contraponto, além de pensar na heterossexualidade como instituição política, Rich formula um “continuum lésbico”, incentivando uma leitura da identificação entre mulheres como agência politicamente motivada. Tais vínculos podem ser, inclusive, percebidos na literatura. Segundo a autora:

 

Ao mesmo tempo, no terreno da literatura, que retrata os vínculos e a identificação entre mulheres como essenciais para a sobrevivência feminina, uma corrente regular de crítica e de produção textual tem surgido entre as mulheres de cor em geral e as lésbicas de cor em particular (RICH, 2010, p. 20).

 

Ao considerar o momento da ditadura na relação com um ideal de nação a ser perseguido, no qual não caberia nada que ameaçasse ou desestabilizasse a ordem, pode-se problematizar a abordagem de temas como relações homoeróticas, sexo e desejo – aspectos do comportamento provavelmente vistos como subversivos na época –. Cassandra assume um caráter politicamente desestabilizador quando tematiza desejos “incontroláveis”, causando um certo pânico moral com seus temas e histórias, expondo a sexualidade da mulher e seus desejos, inclusive por outras mulheres, algo até então não muito recorrente na literatura brasileira. Tendo isso em vista, é possível notar o potencial subversivo das obras da autora que, de alguma maneira, trazem uma abordagem que representou uma ameaça aos valores pretendidos para a nação naquele momento. Considerada erótica ou pornográfica, sua literatura foi sempre, pelo teor, alvo dos censores e objeto de infindáveis processos. 

Rios comenta um desses processos em entrevista ao Lampião da Esquina e, quando indagada se acredita no “homossexual absolutamente integrado à sua sexualidade e feliz”, Cassandra Rios, por meio de sua resposta afirmativa, aponta para a interpretação hostil da censura a respeito da homossexualidade livre e plenamente experenciada:

 

[...] Eu criei um personagem assim. E o livro foi proibido depois de estar na vigésimasegunda edição, em 1954. Eu nunca mais editei o livro. Foi proibido, ele me levou à justiça várias vezes: começou na segunda Vara, foi parar na nona. Me acusaram de

“atentado à moral e aos bons costumes”. Isso em 1954. No livro, a homossexual é simplesmente aquilo que ela quer ser; ela enfrenta seus problemas, que todo mundo os tem, mas no final é feliz. Termina bem, porque termina como ela queria. Então discutiram comigo: “não é possível um negócio desses”. Cheguei até a ser multada [...] (LAMPIÃO DA ESQUINA, 1978, p. 9) 

 

A censura, no entanto, barrou não apenas uma história de homossexualidade “bem representada” como acima relatado, mas também aquelas outras em que personagens lésbicas são construídas de maneira problemática16. Mas a censura não barrou histórias recheadas de sexo heteronormativo escritas por Cassandra Rios sob pseudônimos masculinos como Oliver Rivers (VIEIRA, 2014, p. 118). A questão da censura é proteger a nação de quais expressões da sexualidade, afinal?

 

Escritas em Eu sou uma lésbica 

Uma análise da produção literária de Cassandra Rios apresenta, de saída, dois impasses: primeiro, a quantidade de títulos e romances que esta autora produziu e, segundo seus enredos e personagens costumam apresentar estereótipos de gênero e sexualidade que, a depender da leitura que se faça, podem ser tomados como discurso que reitera a norma, já que apresentam modos de ser baseados em naturalizações, sexualidades muitas vezes explicadas e justificadas em argumentos ancorados em determinismos biológicos ou em consonância com os discursos médico, religioso, e das instâncias de poder reguladoras da sexualidade, como a heterossexualidade compulsória. Dito isto, neste texto discute-se alguns aspectos de Eu sou uma lésbica, romance emblemático da produção literária da autora.  

 Um exemplo destes estereótipos pode ser visto em Bia, a “lésbica machona”, “mulher disfarçada de homem”, “[...] metida a homem, andar de fanfarrão, impostando a voz, sacudindo as pernas arreganhadas, como se tivesse um enorme saco entre elas [...]” (RIOS, 2006, p. 67) em Eu sou uma lésbica. Não raro, a autora coloca na boca de suas personagens, ou no narrador de suas histórias, algumas falas que, se não contextualizadas, poderiam dar a impressão de uma visão estigmatizada das dissidências sexuais e de gênero. Estas falas e diálogos podem ser entendidos como discursos, efeitos de linguagem, atos de fala que atuam na construção de normas de gênero17 e sexualidade.

Isto posto, pode-se ler Eu sou uma lésbica como uma tática de enfrentamento aos discursos produzidos pelo dispositivo de sexualidade18, se tomada a construção do enredo e das personagens como uma forma de visibilidade destes sujeitos, uma vez que o romance é escrito na década de 1980, em um contexto de estigmatização das práticas homoafetivas. Somados à moral estabelecida pela ditadura e o conservadorismo já longevo, há um estigma em partes devido à disseminação do HIV e, ainda, não se pode desconsiderar que a homossexualidade é colocada como patologia ou desvio moral pelo discurso médico até pelo menos 1985, quando o Conselho Federal de Medicina retira da lista de transtornos a classificação “homossexualismo”. Apenas em 1999, o Conselho Federal de Psicologia desautoriza que profissionais da psicologia atuem favorecendo a “patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”, proibindo qualquer ação “coercitiva que busque orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. A norma impede, portanto, a prática de terapias na linha da ‘cura gay’.”19

Eu sou uma lésbica dialoga com essas proposições, colocando a protagonista em relação a homossexualidade tal como forjada nos discursos médico e religioso. A obra, a partir desta chave, é uma história que está ao mesmo tempo, reiterando e transgredindo o discurso   sobre a sexualidade vigente no período, quando questiona se Flávia é inocente pelo assassinato cometido e revelado ao leitor no final indagando “Em que situação uma homossexual deve ser rejeitada, compreendida ou aceita?” (2006, p. 143).   

É importante destacar que em 1980, ano da primeira publicação de Eu sou uma lésbica em folhetim na revista Status, ainda vigorava a censura prévia vigente durante a Ditadura Militar, ancorada no o Decreto-Lei 1.077/70 – claramente voltado para a moral e os bons costumes, que regulamenta em 1970 a censura voltada para os itens das diversões públicas: literatura, teatro, cinema, televisão instituído pelo General Médici, a fim de controlar a publicação de textos jornalísticos e obras literárias que confrontassem o que o estado chamava de “moral e os bons costumes”. Muito embora o AI-5 já estivesse sido revogado por Geisel, sinalizando para uma abertura política, ainda persistia a censura moral.  

  Eu sou uma lésbica, antes publicado em folhetim na revista Status é lançado em livro em 1981. Trata-se das memórias de Flávia e suas descobertas sexuais desde os sete anos de idade quando se apaixona por D. Kênia, sua vizinha e amiga de sua mãe. Narrando suas experiencias durante a adolescência até a vida adulta, a história se desenvolve em torno da protagonista, sempre retomando as relações com D. Kênia como fato fundante de seus modos de ser. A trama avança de modo que, somente ao final, fica mais clara a questão central do enredo:

associar a homossexualidade a outro “desvio”, no caso, um assassinato.

 O trecho que dá nome ao livro, reproduzido abaixo, está no capítulo intitulado “Nós estamos sós na multidão, mas no nosso mundo é lindo”, e trata-se de um diálogo entre Fábio, Núcia e Flávia, esta já mais jovem, em uma situação em que Fábio flerta com a protagonista e Núcia interfere, anunciando a sua orientação sexual:

 

-  Você não percebeu ainda que ela tem nojo de homem? Não entendeu ainda que Flávia é uma lésbica que não quer nada com você? Não está sabendo que nós somos amantes e você está atrapalhando? 

 

[...] 

-  É verdade isso, Flávia?

-  Responda pra ele – vociferou Núcia. (RIOS, 2006, p. 80)

 

 

A despeito da ousadia do título para o contexto da década de 1980, estas falas acenam para o conflito que perpassa toda a trama: a identificação com esta ou aquela forma de desejar e viver a sexualidade, o que definiria Flávia. Tal definição não está, no entanto, escrita como uma afirmação isenta de julgamentos, ao contrário, ao dizer-se lésbica a personagem enfatiza os estigmas que esta identidade carregaria:

 

- Sim, eu sou uma lésbica.

E parecia que eu estava condenando ou sentenciando algo muito grave. Parecia mesmo que eu estava dizendo: “Sou comunista, sou nazista, sou terrorista, sou subversiva... sou contra tudo e contra todos... sou o demônio... sou o terror para todas as nações... sou...

o quê?”

Ele ficou me medindo e seu olhar me fez muito mal. (RIOS, 2006, p. 81 – grifos nossos) 

 

É pertinente considerar que a transgressão apresentada pela personagem em relação à norma estaria associada a uma subversão ou terrorismo, em uma aproximação com o discurso político anticomunista corrente durante a ditadura. Flávia demonstra uma certa consciência de estar escapando as normas e isso se daria como enfrentamento, também, no terreno político. Sujeitos com posturas contrárias a coerência imposta pelo sistema sexo/gênero/sexualidade dentro de uma concepção binária, no contexto da ditadura militar, foram confundidos (ou identificados?) com a subversão. Guacira Lopes Louro aponta a existência de sujeitos queer, que frequentemente “[...] recusam a fixidez e a definição das fronteiras, assumem a inconstância, a transição e a posição ‘entre’ identidades como intensificadoras do desejo. [...]” (LOURO, 2008, p. 22), mas tais transgressões são incompreendidas. Ainda sobre a concepção binária do sexo, considera a autora:

 A concepção binária do sexo, tomada como um ‘dado’ que independe da cultura, impõe, portanto, limites à concepção de gênero e torna a heterossexualidade e o destino inexorável, a forma compulsória da sexualidade. As descontinuidades, as transgressões e as subversões que essas três categorias (sexo-gênero-sexualidade) podem experimentar são empurradas para o terreno do incompreensível ou do patológico. [...]” (LOURO, 2008, p. 82). 

 

Ao longo de nove capítulos, narrados por uma Flávia já com seus vinte e dois anos, a personagem deixa transparecer seus pensamentos e conflitos internos. Este é um traço marcante das personagens de Cassandra Rios, trazerem conflitos por destoarem da norma, com finais infelizes, problemas sociais, outras patologias, assassinatos. Flávia não se difere desta característica, revelando um desejo infantil inexplicável por uma mulher adulta. A narradora (Flávia jovem) reforça que Flávia (aos sete anos) parecia ter consciência do próprio desejo e agia para que fosse realizado. Os primeiros capítulos – “Vamos brincar de gatinho?” e “Algo alucinante apoderava-se de mim” – narram tais fantasias de Flávia com a vizinha, dizendo que sentia durante os sonhos “uma sensação gostosa” e “alcançava um certo prazer, e a simples visão de dona Kênia era o suficiente para me transtornar” (RIOS, 2006, p. 18). A cena é curiosa: Flávia escondida embaixo da mesa, lambe as pernas de D. Kênia, desenrola-se com ela um desacordo e a criança fica “[...] decepcionada e triste por saber que [...] não poderia mais lamber a perna de dona Kênia, que era, para mim, melhor do que um sorvete [...]” (RIOS, 2006, p. 20). A realização das fantasias de Flávia acontece quando seus pais a deixam aos cuidados de D. Kênia pois precisam, as pressas, ir ao hospital. O clímax acontece quando Flávia finalmente revelase:

Ela tornou a movimentar-se na cama. Uma luz fraquinha se acendeu. O quarto ficou suavemente iluminado pelo colorido do abajur. Senti minha voz subindo como uma coisa táctil que nascia do fundo da minha barriga, dentro do estomago, do mais secreto recôndito do meu corpo, e fiz a proposta com a inocência e a ingenuidade diabólicas de uma criança – precoce, emocional, sensitiva, acho que até muito perigosa. Eu era um capetinha, um sátiro, o pequenino monstro polimorfo definido por Freud. - Vamos brincar de gatinho? (RIOS, 2006, p. 28) 

 

O que se segue é um diálogo entre Flávia e D. Kênia sobre a “brincadeira” de gatinho, a qual a vizinha, finalmente, cede. Há muita naturalidade na narrativa quando a protagonista diz que “Isso tudo, entretanto, não oferecia o menor carácter de obscenidade. Nada havia de repugnante ou proibido” (RIOS, 2006, p. 30). Entre palavras e carícias, Cassandra Rios escreve parecendo querer deixar claro que Flávia é mesmo diabólica e sua condição não é resultado de sua educação, ou do meio em que vive. Flávia demonstra um nível de consciência sofisticado ao perceber-se sem culpas e tomando para si a responsabilidade pela sedução da mulher adulta. O que parece estar em jogo na narrativa é o argumento de que, desde sempre, Flávia é lésbica e por natureza:

 

Cheguei a um caminho de vida preestabelecido pela minha própria natureza. Não houve intimidações de ordem religiosa, nem necessidade de uma educação sexual exata, porque eu ia descobrindo e aprendendo todas as coisas referentes a sexo com muita naturalidade, como se tivesse a consciência lógica da natureza humana, das funções e necessidades do corpo – a excitação das partes genitais e o aparecimento dos pelos em determinadas regiões do corpo na adolescência, nada me causava embaraço ou me surpreendia. (RIOS, 2006, p. 34)

 

  Outro aspecto marcante na produção literária Cassandra Rios, não só neste romance, mas em outros, é o recorrente diálogo com a psicanálise freudiana. Ao relacionar-se com D.

Kênia, Flávia sentencia: “[...] Id libido. Pura e primitiva. Essencialmente id, quanto o id pode ser natural, o substrato da mente, o princípio, o provavelmente irracional, instintivo, primeiro, nato [...]” (RIOS, 2006, p. 28). No último capítulo intitulado “A criança é o verdadeiro monstro sagrado”, as falas que fecham o romance também remetem a este questionamento: “Uma criança que cometeu o mais chocante crime de todos os séculos, como poderia ser condenada?” (RIOS, 2006, p. 143). Ainda em Eu sou uma lésbica, outras ponderações a respeito das causas da sua sexualidade:

 

Preciso estudar o sentido evolutivo da sexualidade infantil para poder melhor interpretar o que se consideram atos ou preferencias anormais do adulto, coisas que desculpamos com explicações ou descuido, engano involuntário, distração ou tendências inexplicáveis ou adquiridas por influências do meio. (RIOS, 2006, p. 37)

 

 Este primeiro momento se finda com a partida de D. Kênia da cidade. Flávia encontra em seu quintal uma sandália de salto alto com tirinhas coloridas, guarda o item que se torna o seu fetiche e lembrança daquela mulher. É perturbadora a cena em que a autora descreve Flávia se autoestimulando com a sandália, desejando a sua dona. A narrativa estabelece as experiências com a vizinha como fatos fundantes de sua sexualidade, os “fatos primordiais, acontecimentos que estabeleceram a genuinidade do meu modo de ser [...] realmente se concentraram todos na minha primeira infância, nos meus coloridos e fantasiosos sete anos de idade [...]” (RIOS, 2006, p. 34). A sandália fica de lembrança, escondida entre seus “brinquedos solitários”, recebendo cuidados e beijos de sua “boca saudosa”. Com o passar do tempo e a chegada da de sua juventude, Flávia se relaciona com outras meninas e vive outras experiências sexuais.  

 Nas palavras de Flávia “Era preciso tentar. Namorar para entender e estabelecer sem dúvidas a minha natureza” (RIOS, 2006, p. 44). A personagem faz comparações de si com as outras meninas que ficam “eufóricas diante dos meninos” e a narrativa, nesse momento, parece reforçar a inclinação de Rios por pelas teorias psicanalíticas e, além disso, parece haver um tom de exagero na forma como a adolescência é narrada. Um desses momentos de juventude se dá em uma festa de aniversário na casa de Norma, uma amiga do bairro e do colégio. Na festa, a protagonista comenta a dança voluptuosa dos casais em que os “meninos puxam o membro para frente, dentro das calças, em posição para encostar nas meninas enquanto dançavam, a fim de terem as suas sensações” (RIOS, 2006, p. 47), ressalta a fofoca das meninas a respeito dos rapazes e a sua decisão de namorar para “se entender”. Flávia dança com Fábio, mas é por Núcia, prima de Norma, que se apaixona na ocasião. 

 Tudo parece ser escrito para chocar: a sexualidade infantil, as relações da criança com a mulher adulta e, principalmente, o assassinato revelado ao final, com o retorno de D. Kênia que, quando se mudou, teria presenciado um desmaio do companheiro (Eduardo) ao volante, o que provocou um acidente no qual ela sobrevive, mas Eduardo morre. Kênia fica internada no hospital, mas se recupera, e reaparece no momento em que o leitor toma ciência de que Flávia, tomada por ciúmes, havia triturado uma lâmpada de vidro e jogado o pó no prato de sopa de seu Eduardo, causando o acidente ao volante. O reencontro das duas não é menos chocante:

Flávia leva a sandália guardada pelos anos e D. Kênia retorna a fala “Vamos brincar de gatinho?”. Neste momento, a cena é narrada por D. Kênia: 

[...] O calor do seu corpo penetrou-me. As mãos nos seios, a boca na boca, a sandália entre os nossos corpos, o fetiche assassino, o fetiche simbólico que procurava seu esconderijo, o corpo que se movia para engolir o salto, a sandália metida entre nossos corpos, rolando na cama, tecido rasgando, gemidos e palavras soltas, sem nexo, sôfregos e dolorosos, entre lágrimas e suor, pernas cruzando, coxas ajeitando-se, borboletas de asas negras entranhando-se numa dança frenética e sensual, numa fantasia que fez uma criança virar um monstro e uma mulher se sentir um anjo (RIOS, 2006, p. 142).

 

 Os últimos questionamentos deixados pela autora, parecem reforçar a ideia de que, com este romance, Cassandra Rios busca deslegitimar o discurso hegemônico que condena a homossexualidade, deixando nas últimas linhas a seguinte pergunta: “Em que situação uma homossexual deve ser rejeitada, compreendida ou aceita? Quando engana o homem com as suas dissimulações ou quando enfrenta a sociedade abertamente, sem esconder o que é?” (RIOS, 2006, p. 143). Vemos, portanto, ainda que a personagem seja construída como uma homossexual assassina, há uma problematização da sexualidade e de sua natureza, à revelia do que propagam a censura e os discursos do regime militar.  

 

Considerações finais 

 

 Neste texto, contextualizou-se o campo da História das Mulheres para (re)pensar as exclusões desses sujeitos do relato da História, com o objetivo de retomar a visibilidade de mulheres lésbicas na história e buscar possibilidades de escrever uma história articulada com a dimensão da sexualidade a partir da produção literária de Cassandra Rios. Também foi o objetivo apontar um silêncio sobre a homossexualidade feminina na historiografia.

 Se por um lado, as historiadoras questionam o campo da história, denunciando a pretensa universalidade de sua escrita e reivindicando um lugar na historiografia, por outro, é ainda incipiente a abordagem de histórias de mulheres em suas especificidades, sobretudo, no que diz respeito à sexualidades dissidentes, para que se possa caminhar cada vez mais em direção a uma historiografia plural e ampliada. Um trabalho com a produção literária de Cassandra Rios, como vem sendo feito com mais afinco no campo da Literatura e Teoria Literária e, de forma mais recente ainda, nas pesquisas em História, recupera uma memória da produção lésbica na história do Brasil, além de alargar a historiografia sobre o período da ditadura militar, o que demonstra que a sexualidade também tem uma dimensão política.  

Ainda, de certa maneira, abordar Cassandra Rios no campo historiográfico significa trazer uma escrita da história pelo viés da sexualidade feminina visto que, por meio de seus romances, a autora bota o sexo em discurso, criando personagens que desejam fora da norma, trazem maneiras de sexualidade ainda não socialmente bem quistas, abordando personagens femininas “donas” de seu prazer, algo ainda não tão recorrente. Das mulheres que sentem prazer, algo ainda dissonante com os padrões de comportamento da sociedade brasileira antes da década de 1970, Cassandra Rios forneceu testemunhos de modos de ser e de se relacionar fora da heteronormatividade em tempos de censura.

Referências bibliográficas

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78, 2018.

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FOUCAULT, Michel. [1976] História da Sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1998. 

IRE, Camila; SILVA, Camila Disne. LENZI, Maria Helena. Ser lésbica na ditadura: vida e militância sob estado de exceção. In: WOLFF, Cristina S.; ZANDONÁ, Jair; MELLO, Soraia Carolina de. (Orgs). Mulheres de Luta: feminismo e esquerdas no Brasil (1964-1985). 1ª Edição. Curitiba: Editora Appris, 2019. 

KUMPERA, Julia Aleksandra Martucci. “O lesbianismo é um barato”: o GALF e o ativismo lésbico-feminista no Brasil (1979-1990). Dissertação de Mestrado. Unicamp: Campinas, 2021. 

LESSA, Patrícia. Lesbianas em movimento: a criação de subjetividade (Brasil, 1979-2006).

Tese de Doutorado. Universidade de Brasília, 2007.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 1ª Edição, 1ª Reimpressão. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. 

MARCELINO, Douglas Átila. Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de livros e diversões públicas nos anos 1970. Dissertação (mestrado em História Social) — Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

NAVARRO-SWAIN, Tania. História: construção e limites da memória social. In: RAGO, M.; FUNARI, P. P. A.; (ORG.). Subjetividades Antigas e Modernas.  São Paulo: Annablume, 2008, p. 29-46.

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PEDRO, Joana Maria. Um diálogo sobre mulheres e história. Michelle Perrot: a grande mestra da História das Mulheres. Rev. Estudos. Feministas. vol.11 no.2 Florianópoolis July/Dec. 2003.  

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REIMÃO, Sandra Lucia Amaral de Assis. Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar. 2015. Tese (Livre Docência em Comunicação e cultura) – Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.  

RICH, Adrienne. A heterossexualidade compulsória e a existência lésbica. Revista Bagoas, n.05, 2010. p.17-44.

RIOS, Cassandra [1983]. Eu sou uma lésbica. 3ª Edição. Azogue Editorial, 2006.

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RIOS, Cassandra. Qual o pecado de Odete? Entrevista à revista Realidade, Editora Abril.

Março, 1970.  

TELLES, Norma. [1999] Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, Mary Del; BASSANEZY, Carla (Org). História das Mulheres no Brasil. 4 Edição. São Paulo: Contexto, 2001. VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade das homossexualidades no Brasil. Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 6, n. 13, p. 90-109, set./dez. 2014. 

VIEIRA, Kyara Maria de Almeida. “Onde estão as respostas para as minhas perguntas”?: Cassandra Rios – a construção do nome e a vida escrita enquanto tragédia de folhetim (1955– 2001)/ Kyara Maria de Almeida Vieira. – Recife: O autor, 2014.   

 

Agradecimento

Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – CAPES.

 

Recebido em 27/04/2021.  Aceito em 09/06/2021.

 

 

1                                            Para essa primeira publicação, Rios teria aceito ajuda financeira da família após ter procurado, sem sucesso, algumas editoras, sob a condição de que os pais não lessem o conteúdo do livro.

2                                            Retoma-se a emergência da história das mulheres a partir da leitura de Michele Perrot, no entanto, é necessário registrar que este é um movimento coletivo, com iniciativas também em outras universidades na França. Nos EUA e Grã-Bretanha os Women’s Studies foram fundamentais e tiveram variantes na Holanda, na Alemanha, na Itália e, mais tarde um pouco, na Espanha e Portugal. Atualmente é presença em toda a América Latina, Brasil, etc.

(PERROT, 2017, p. 15)

3                                            “O percurso de Michelle Perrot na trilha da História das Mulheres, parece ter começado em 1973, quando, doutora em História, docente na Paris VII - Denis Diderot, ministrou um curso chamado ‘As mulheres têm uma História?', no qual apresentava temas possíveis de pesquisa para os trabalhos de conclusão de curso dos/as estudantes. Esse curso e os trabalhos dele resultantes proporcionaram material para a publicação da coletânea Une histoire de femmes, est-elle possible?, publicado na França, em 1984, pela Rivages. Tal percurso de pesquisa levaria Michelle Perrot a tornar-se conhecida internacionalmente, não somente por seus trabalhos, mas, também, pelas/os estudantes que orientou em suas teses de doutorado. Muitos desses trabalhos orientados tornaram-se livros, os quais contam, muitas vezes, com prefácios e apresentações escritos por ela, fazendo periodicamente um balanço das pesquisas na área.” (PEDRO, 2003).

4                                            Georges Duby e Philippe Ariès são lembrados pela autora como historiadores que, pelo viés da família, trazem para a reflexão histórica a criança, os jovens, a dimensão da vida privada, nas quais a mulher necessariamente está presente.  5Para ficar apenas no Brasil e na literatura, ver em “Escritoras, Escritas, Escrituras” o debate feito por Norma Telles a respeito de escritoras brasileiras no século XIX. São mencionadas por Telles mulheres como a Nísia Floresta, Julia Lopes de Almeida, a abolicionista Maria Firmina dos Reis, a poeta Narcisia Amália de Campos, entre outras (TELLES, 2001).

6 Presentes também na literatura brasileira e na própria mitologia que designa a Amazônia. 

7A autora menciona o estudo da historiadora e arqueóloga Davis-Kimbal, “Mulheres guerreiras: uma busca de arqueólogos pelas heroínas escondidas da história” (tradução nossa).

8    A autora traz relatos de Hans Staden, Fernão Cardim, Claude D’Abeville, Pero de Magalhães Gandavo, Vicente Salvador, Gabriel Soares Souza. Para pensar a historiografia, menciona Sérgio Buarque de Holanda, Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre. Não é a intenção deste trabalho aprofundar em questões da sexualidade no Brasil Colonial, apenas apontar, junto à autora, uma perspectiva eurocêntrica, heteronormativa e que leva em conta padrões de gênero fixados em uma concepção de “natureza biológica” na escrita da história.

9    Cf.: BELLINI, Lígia. A coisa obscura: mulher, sodomia e inquisição no Brasil colonial. Salvador: EDUFBA, 2014.

10  Alguns trabalhos significativos no campo da História sobre lésbicas e a ditadura militar são os de LESSA (2007),

FERNANDES (2014), KUMPERA (2021) e, o doutorado em História de Camila Diane Silva, em andamento na Universidade Federal de Santa Catarina a respeito do movimento Lésbico Feminista durante a Ditadura Civil Militar Brasileira. Além disso, se inserem neste recorte trbalhos em História em torno da vida e obra de Cassandra Rios, como o de VIEIRA (2014), pioneiro na área de História sobre a autora.  

11  Uma história do surgimento do GALF (Grupo de Ação Lésbico-Feminista) em 1981, a partir da atuação do “LF” (grupo lésbico-feminista) dentro do SOMOS (primeiro grupo de militância homossexual em São Paulo), pode ser consultada em artigo de Marisa Fernandes, lésbica e feminista cofundadora e participante deste moivmento.  12 Na mitologia grega, Cassandra foi uma pitonisa amaldiçoada: ao mesmo tempo em que tinha o poder de prever coisas futuras, tinha também a desgraça de jamais ser acreditada. Profetizou a catástrofe que seria causada pelo cavalo de Troia e pediu que não o deixassem entrar na cidade. Não lhe deram atenção, terminando o cavalo por levar a guerra.

13  O autor menciona o parecer n. 1720, de 29 de outubro de 1975, de autoria da técnica de censura Ana Katia Vieira, com base no qual o livro foi vetado (QUINALHA, 2017, p. 134).

14  O DECRETO-LEI 1.077, de 26 de janeiro de 1970 foi assinado pelo presidente Médici e se tornou a principal referência normativa para os órgãos censores. Institui a censura prévia à livros, teatros, espetáculos públicos, programas de rádio, TV e diversas atividades culturais. Segue trechos do decreto: Art. 1° Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrarias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação; Art. 2° Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando  julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior. Art. 3° Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e apreensão de todos os seus exemplares. (REIMÃO, 2011, p. 22s, grifos nossos).

15  Uma leitura também fundamental pode ser encontrada no texto “O pensamento Hetero” de Monique Wittig.

16  Refere-se às histórias e suas personagens muitas vezes representadas como infelizes e cheias de culpa, como a jovem Laura em Copacabana posto 6 – A madrasta, em constantes conflitos com sua família, que se apaixona pela madrasta e, aparentemente, se suicida no final.

17  Embora nossa reflexão priorize a dimensão da sexualidade, entendemos não ser possível passar ao largo da categoria “gênero”, uma vez que gênero e sexualidade não se definem de maneira isolada. Para Butler, o gênero é formado pela repetição estilizada da norma, ou seja, na performatividade, cotidianamente (BUTLER, 2018). No sistema sexo/gênero haveria uma compulsoriedade de uma coerência, a qual a autora questiona, ou seja, o gênero de um sujeito decorreria de um corpo biologicamente definido como macho/fêmea, e a sexualidade estaria em consonância com ambos. A fim de assegurar a heterossexualidade compulsória, o dispositivo de sexualidade atua na produção destes discursos normativos, os quais chamamos, aqui, de estereótipos. Tais discursos normativos atuam na performatividade do gênero, no qual a sexualidade é determinante.

18  Para Foucault, um dispositivo de sexualidade se constrói nos séculos XIX e XX, caracterizados pela multiplicação dos discursos sobre o sexo e toda uma implantação múltipla das “perversões”. O autor reflete sobre os dispositivos de poder que as produzem, sobretudo, no discurso psiquiátrico do século XIX, quando se   vão se estabelecer a norma, as perversões, as classificações e categorizações sobre as sexualidades, determinando algumas como desviantes e, nesse momento, a ideia de homossexualidade vai ser produzida e se instituir como este desvio a norma, em oposição a uma sexualidade saudável (FOUCAULT, 1998).

19  Resolução nº 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia. Disponível em <https://site.cfp.org.br/resolucao-0199/historico/> (acesso em 16/01/2021).

 

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[1] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História/Universidade Estadual Paulista (UNESP). Brasil. Email: flavia.mantovani@unesp.br.