Os Estados Unidos e a Inglaterra vistos pelo cinema soviético do stalinismo tardio: a Guerra da Crimeia e os mares

The United States and England as seen by Soviet cinema of late Stalinism: the Crimean War and the seas

                                                                                                      Gelise Cristine Ponce Martins[1]    

                                                                                                      Moisés Wagner Franciscon[2]       

Resumo 

Durante o stalinismo tardio, 1945-53, marcado pelo pós-guerra e o início da Guerra Fria, os filmes de época soviéticos se debruçaram sobre temas e episódios relacionados com a marinha czarista e a Guerra da Crimeia. Ao guiar o país na corrida armamentista, na luta pela divisão dos impérios coloniais em desintegração, na projeção do poder marítimo e na confrontação com os ex-aliados por esses mesmos objetivos, o regime precisava disseminar sua versão da história e suas mensagens de união nacional e combate ao inimigo externo, reproduzindo a narrativa da traumática Segunda Guerra. A sócio-história cinematográfica de Ferro permite perceber esse entrelaçamento de narrativas e objetivos em seus filmes de época.

Palavras-chave: Stalinismo tardio; Cinema; Crimeia; Poder naval.

 

 

Abstract

During late Stalinism, 1945-53, marked by the post-war and the beginning of the Cold War, Soviet period films focused on themes and episodes related to the tsarist navy and the Crimean War. In guiding the country in the arms race, in the struggle for the division of the disintegrating colonial empires, in the projection of maritime power and in the confrontation with ex-allies for these same objectives, the regime needed to disseminate its version of history and its messages of national unity. and combating the external enemy, reproducing the narrative of the traumatic World War II. Ferro's cinematographic sociohistory allows us to perceive this intertwining of narratives and objectives in his period films.

Keywords: Late Stalinism; Movie theatre; Crimea; Naval power.

 

 

Introdução

Entre setembro de 1946 e 1948, Stalin, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, e o ideólogo e segundo-secretário, Andrei Jdanov, proferiram, numa série de discursos em Moscou e na Polônia, as diretrizes para a política de dois campos. Os primeiros atritos claros apareciam entre as duas superpotências. Em setembro de 1947, no lançamento do Kominform em Szklarska Poręba, Silésia, Jdanov acusou a existência do campo ocidental, imperialista, antidemocrático, reacionário e pró-fascista, pronto para trair seu antigo aliado de guerra, e do socialista, comandado pela URSS, democrático, antifascista e destinado a impedir as agressões e expansões do campo ocidental (APPLEBAUM, 2017, p. 34; 85). A constatação do futuro de confrontação entre as duas superpotências pelos despojos e influência dos antigos impérios coloniais e as próprias metrópoles europeias, permitiu ao regime exigir dos estúdios de cinema a versão soviética da história para as massas, como forma de se contrapor ao que os americanos faziam em Hollywood e os ingleses em seus estúdios (como o Pinewood Studios), ou mesmo tentar demolir essa imagem que os rivais erigiam de si mesmos. O que foi chamado de Doutrina Jdanov ou jdanovichina. O alcance projetado era antes de tudo interno: criar coesão social em torno das metas do regime e atacar desviacionistas adeptos ou influenciados pelas narrativas do antagonista externo. Mas também disseminar externamente, por meio de festivais internacionais de cinema, propaganda1 contra a propaganda do rival, em seus próprios termos. O cinema foi o principal instrumento de formação do imaginário histórico do século XX (OLIVEIRA, 2011) e ambas as superpotências não desejavam deixar passar tal oportunidade de campanhas ideológicas fundamentadas nestes filmes de época que atingiam imensamente mais pessoas que a historiografia acadêmica – esta também influenciada pelo respectivo regime e classes hegemônicas e que atingiam suas chances de disseminação. Os filmes de época do período do stalinismo tardio, 1945-53 (FÜRST, 2006), desempenharam um papel da publicidade da visão do inimigo e seu comportamento histórico: apesar de constituir formalmente alianças com a Rússia czarista e a URSS, ou propor formá-las, na realidade trabalhariam para lançar o país em guerras terríveis, atrair Moscou para resolver conflitos seus, fortalecendo-se enquanto a Rússia desfaleceria (nas quais sua ação não seria mais do que marginal, ou ativa e encobertamente auxiliar aos inimigos dos russo-soviéticos), com o fito de enfraquecê-la e dominá-la, reproduzindo e projetando o discurso oficial sobre as origens e o desenrolar da Segunda Guerra em períodos anteriores. Ou então lançando regimes subservientes contra a Rússia, e assim que esta revidasse, procurariam formar alianças para uma guerra direcionada contra ela - fazendo o mesmo ao discurso da emergente Guerra Fria.

Foram utilizados filmes históricos, ambientados no passado recente, conjuntural ou remoto, que exibissem personagens reais ou ficcionais ingleses e americanos, que promoviam relações ou não com russos do passado czarista ou soviéticos, além daqueles em que outros personagens e entidades históricas exibem um comportamento2 como o descrito pela versão oficial da história soviética (POSPELOV, 1960-65; POSPELOV, 1975; KULKOV; RJECHEVSKI; TCHELICHEV, 1985) como o dos anglo-americanos durante as negociações de formação de alianças, o desenrolar e o imediato pós-Segunda Guerra3. Personagens e entidades que, por meio da sócio-história cinematográfica de Ferro (1976, 1992), podemos considerar projeções do discurso oficial, exigidas dos estúdios como elemento importante na guerra cultural iniciada juntamente com a Guerra Fria. Esse conteúdo latente em geral é disposto em mensagens, temas e narrativas não demasiadamente esópicas. A repetição, em películas ambientadas em outros períodos históricos, da propaganda como montada pela jdanovichina e os intérpretes oficiais do marxismo ortodoxo ou vulgar é facilmente observável. A maioria dos roteiros é fruto de produções literárias e teatrais soviéticas, ou roteiros originais soviéticos. Apesar de serem genericamente filmes de época ou históricos, pertencem igualmente aos gêneros drama, aventura, biografia e guerra4.

Em nenhum momento esses filmes colocam algum personagem para dizer diretamente que a URSS e os novos países que começavam a formar o Terceiro Mundo deveriam ser aliados contra os impérios americano e britânico, que a Guerra da Coreia deveria se encerrar de maneira rápida; que a única relação possível com as potências capitalistas ocidentais era uma reedição sem fim da história oficial da Segunda Guerra; que os únicos responsáveis pelos problemas pós-revolucionários na URSS eram os americanos, etc. Essas mensagens, contudo, não deixam de se fazer sentir, por meio de comparações, alusões e comentários na maioria das vezes nada sutis. Mesmo um camponês semiletrado, sem muita vontade de ler o Pravda e o Izvestia, poderia captar suas mensagens, e provavelmente de uma maneira mais aprofundada do que a rígida, oficiosa e não muito confiável mídia impressa soviética. Outras mensagens são se fazem ocultar parcamente por filmes de época, como as acusações de continuidade do genocídio racial nazista, agora por seus herdeiros americanos, em Serebristaya pyl [Pó de prata], 1950, ou Russkiy vopros [Questão russa], 1947. Esses filmes, no entanto, não transcorrem sequer parcialmente no passado recente. Apresentam a versão chancelada do tempo imediato. Os filmes de época trabalham preferencialmente o discurso latente, como formulado por Ferro (1976, 1992). A análise da propaganda política nos filmes soviéticos, como formulada por Taylor (1998), como uma rede de mensagens e formulações se espalhando entre a audiência. Esta possuía suas próprias impressões, sua própria rede informal de comunicação constituída por grupos de amigos, colegas de trabalho, que disseminavam informações próprias, releituras ou negativas da mídia institucional, além de muitos boatos (LEWIN, 1988) que poderiam bloquear a propaganda como concebida por Taylor. Ferro responde esse problema ao lembrar que o cinema está profundamente envolvido com a sociedade. É por meio de sua cultura, sua mentalidade, que suas mensagens são absorvidas de diferentes maneiras por diferentes públicos separados pelo espaço e pelo tempo (FERRO, 1992). A propaganda inserida ou tema fundamental dos filmes de época direcionados para as massas mantinha contínuo contato com a realidade social e política do país, servindo aos interesses do Kremlin e sendo por este direcionados. Não se trata de um cinema vanguardista, intelectual e de difícil assimilação, mas sim de um formulado segundo a linguagem (e, na medida do possível, na organização e técnica) da melhor indústria até então, a de Hollywood. A recepção desses filmes não deixa dúvida quanto ao seu potencial para atingir as massas. Enquanto o premiado cinema intelectual e vanguardista de Eisenstein não atingiu um milhão de expectadores, no ano seguinte, sofrendo da mesma carência de salas de cinema e projetores não incinerados, ou de celuloide para as cópias a serem distribuídas, a aventura de Juravlyov, produto do conformismo realista socialista e da linguagem simples para as massas do cinema clássico hollywoodiano, banal e divertido, conseguia mais de 19 vezes sua audiência; o de Braun, mais de 36 vezes.

Tabela 1: Lista parcial dos filmes elencados e suas respectivas bilheterias

Filme

Ano

 

Bilheteria no primeiro ano

Admiral Ushakov 

 

1953

26 milhões

Geroi Shipki 

 

1954

24.5 milhões

Korabli shturmuyut bastiony 

 

1953

22.1 milhões

Maksimka 

 

1952

32.9 milhões

Pyatnadtsatiletniy kapitan 

 

1945

17.5 milhões

V mirnyye dni 

 

1950

23.5 milhões

Vstrecha na Elbe 

 

1949

24.2 milhões

Ivã, o Terrível 

 

1944

900 mil

Fonte: https://www.kino-teatr.ru.

 

A Crimeia, a saída para os mares e a marinha

Após a morte de Lenin, a URSS se viu dividida quanto ao seu paradigma militar: criar uma grande frota capaz de apoiar a revolução em qualquer parte do mundo, em especial nos elos fracos capitalistas, suas colônias e demais regiões periféricas, como queria a estratégia de Trotsky, ou manter a tradição russa de um imenso exército, destinado à defesa das fronteiras e pendências nessas mesmas áreas, o que era o plano de Stalin. O debate dos anos 1920 pode ser encontrado em outras épocas. No final do século XVII e ao longo do século XVIII, Pedro I, o Grande, e Catarina II, a Grande, se viram envolvidos na construção e modernização de grandes frotas, voltadas para afirmar a posse russa de saídas para os mares, inicialmente o Báltico e posteriormente o Negro, e até mesmo o Mediterrâneo. O comércio naval no Báltico tonou-se importante ainda com as relações anglo-russas de Ivã IV, o Terrível (fato lembrando dentro do contexto da aliança por Eisenstein), em meados do século XVI. Durante o século XIX, o comércio marítimo através do Mar Negro e do Mediterrâneo transformou-se em preocupação central da Rússia, em vista do escoamento de cereais para a Europa Ocidental, sua principal fonte de receita, se dar por ele, o que gerou uma espiral de tensões e conflitos na região balcânica (CLARK, 2014). A Rússia nunca conseguiu o controle dos estreitos que fecham o Mar de Mármara, apesar de várias vezes ter levado suas tropas às imediações de Constantinopla. A pressão diplomática e militar da Europa Centro-Ocidental (com cada uma de suas potências com seus próprios objetivos e estratégias de controle indireto do Império Turco Otomano, que não passavam pela posse direta ou de algum Estado aliado, com a Rússia desejava em boa parte do tempo) a fazia recuar para as linhas iniciais. O poder da marinha russa, se capaz de destruir a frota turca, como em Sinope em 1853, não era páreo paro o de ingleses (mais ainda coligados com os franceses), sendo destruído uma vez na Crimeia em 1854, uma segunda em Tsushima no Mar do Japão em 1905, e comprimido pelos alemães no Bósforo no pré-Primeira Guerra. Não era capaz de resistir a uma investida americana no Alasca russo, que foi vendido em 1867. 

O longo declínio da Marinha, claro com a Guerra da Crimeia (1853-56), tornou-se em eclipse com a Revolução, a política de contenção e isolamento contra o novo regime, e as fracas forças do país combalido por guerra, fome, peste e caos, que assim não foram dirigidas ao mar. Em 1921, após afundamentos, capturas ou inutilização, representava apenas 16.2% do volume da Marinha Imperial. Os expurgos promovidos entre os militares por Stalin em 1937-38 decapitaram a Marinha e paralisaram o programa de expansão e modernização. A participação no orçamento da Defesa caiu de 11.5% em 1941 para 6.6% em 1944 (HARRISON, 1990, p. 582). O fim da Segunda Guerra Mundial presenciou o renascimento da Raboche-Krestyanskiy Krasnyy Flot, Frota Vermelha de Trabalhadores e Camponeses, transformada em fevereiro de 1946 na Sovetskiy Voyenno-Morskoy Flot, a Frota Marítima Militar Soviética, dentro do quadro de transferência das alavancas do partido para o Estado durante o stalinismo tardio (LEWIN, 2007). O programa de rearmamento foi retomado diante da iminente Guerra Fria. Entre 194555 foram construídos 248 submarinos e 619 navios – antes da guerra possuía 218 submarinos e mais de 500 navios (HERRICK, 1968). Em comparação, ao fim da guerra os EUA possuíam 1,164 embarcações sem contar veículos anfíbios, dos quais 232 eram submarinos (DOYLE, 2013). Quando Stalin respondeu às preocupações de Mao Tsé-Tung na Coreia, de que era preferível uma guerra antes, enquanto a URSS estava forte, do que depois, com a reconstrução dos aliados europeus dos EUA (VOLKOGONOV, 2004), ele se referia ao poder terrestre. A frota agora essa essencial para atingir a todos os países aliados da URSS, além de enviar apoio e exercer influência sobre os movimentos de libertação que se disseminavam rapidamente por todo o mundo colonial, que se armavam também com equipamento soviético (como Israel em 1947), e que, na medida em que formavam novas nações contrárias à dominação das antigas metrópoles coloniais, eram possíveis aliadas e parceiras comerciais para os soviéticos. 

Além de legitimar o emprego dos recursos do país, também era preciso justificar o novo cenário de rompimento de cordões sanitários e o retorno aos mares. Lembrar da importância da Marinha Imperial Russa, que derrotara por diversas vezes a dos turcos e até mesmo a de Napoleão, além de estar presente nos oceanos em missões, treinamentos e visitas, era uma ótima opção. Afinal, a URSS não fazia nada de novo, ou nada que sua antecessora não tivesse feito.

Tratava-se de recuperar o justo espaço, perdido nos anos anteriores. Além de se ligar às tradições e glórias do passado, num movimento de reabilitação e releitura da história czarista que ocorria desde os anos 1930, com o retorno de impulsos conservadores e nacionalistas na sociedade soviética, que se encaixavam na nova formatação centralizadora e autocrática do Estado, com a derrota e substituição da NEP e do federalismo. Stalin continuava o trabalho de engrandecimento do Estado realizado pelos grandes czares e almirantes (DAVIES, 1991). A Crimeia, palco de recentes deportações de povos inteiros considerados traidores por seu engajamento como auxiliares e tropas à serviço dos nazistas, ganhava nas telas do cinema a áurea de um local místico e sagrado por sua resistência e triunfo militar. Como a derrota dos brancos por Stalin em Tsaritsin/Stalingrado em 1919, e a destruição do 6º Exército de Paulus, ¼ de século depois, segundo a propaganda, pelo mesmo herói, a Crimeia era palco cíclico para a reafirmação da nacionalidade, das fronteiras e do Estado. Sua conquista por Catarina, Potemkin e Ushakov, sua defesa por Nakhimov, a expulsão dos brancos Denikin e Wrangel, sua resistência e vitória final por Stalin na Segunda Guerra, que se integrava e reafirmava a todas as anteriores. Como é o caso de Tretiy udar [O terceiro golpe], 1948, de Igor Savchenko, no qual Stalin coordena de Moscou a libertação da Crimeia e a retomada da tão cobiçada Sebastopol. A revisão do Tratado de Versalhes não fora completa, pois o monte Ararat e outras regiões armênias que pertenceram à Rússia czarista continuavam sob mando turco. O desejo manifesto de Stalin por bases e controle compartilhado dos estreitos, sua secular busca pelos czares, que levou ao envolvimento na Primeira Guerra, a tensão crescente com a Turquia e a presença da frota americana na região em 1946, levantavam a questão do passado de inimizade russo-turco. Relembrar as guerras, os traumas, os sentimentos populares antiturcos, e a destruição trazida pelos agressores ocidentais na região era de interesse político, uma vez que galvanizava o apoio interno às ações de Stalin no plano externo. Poderia trazer também a aprovação da sociedade a políticas internas. Lembrar da luta turco-russa na Crimeia era lembrar também das rebeliões da população tártara pró-turca e de seus raids contra os residentes e colonos eslavos. A colaboração nazista não fora o pecado original dos tártaros da Crimeia, e Stalin agia para saná-lo de uma vez5, impedindo a criação de uma cabeça-de-ponte inimiga – relacionando os novos (ou velhos) inimigos anglo-americanos com as maquinações do pequeno oponente ao sul. A leitura oficial indicava que, por trás dos sucessivos ataques turcos, sempre havia uma grande potência ocidental. O que se renovava com a Guerra Fria.

Os custos de se criar uma grande marinha, o bombardeiro estratégico, o arsenal nuclear, ao mesmo tempo em que se moderniza o exército, significavam para a população soviética que a produção de bens de consumo e habitações, raros no país destruído pelo ataque nazista, continuariam protelados. A audiência precisaria ser intensamente “esclarecida” sobre o motivo de ainda continuar morando em buracos no solo, com poucos calçados e alimento, enquanto o já superdesenvolvido setor militar abocanhava boa parte do orçamento e os tremendos esforços e sacrifícios exigidos durante os anos de guerra não cediam nos recentes anos de paz. Esta deveria ser exibida como frágil e transitória, sempre acossada pelos inimigos imemoriais da Rússia, num apelo aos setores nacionalistas, e a sua transmutação nos inimigos de classe e da Revolução, para aqueles com sentimentos partidários mais profundos.

Revisão do passado recente (1941-45)

Vsevolod Pudovkin foi ao lado de Eisenstein, Vertov, Kulechov e Dovjenko (BO, 2019), um dos grandes vanguardistas do cinema soviético dos anos 1920. Com o fracasso de bilheteria de seu primeiro filme sonoro, Dezertir [O desertor], 1933, a pressão pela adoção do realismo socialista e a mudança da base ideológica do internacionalismo para o nacionalismo – ou patriotismo, na acepção soviética, o diretor passa a se dedicar a biopics de grandes personagens, de onde surge o comissionado Admiral Nakhimov (ROLLBERG, 2009, p. 552-556).

A Guerra da Criméia, travada pela Rússia contra a Inglaterra, França, PiemonteSardenha, Áustria e o Império Turco-Otomano, é lembrada em Admiral Nakhimov [Almirante Nakhimov], 1946, de Vsevolod Pudovkin, num momento em que Stalin ainda esperava exercer alguma influência sobre os estreitos que ligam o mar Mediterrâneo ao mar Negro, sob controle turco, além de revisões fronteiriças entre a soviética Armênia e a província turca de Kars e Ardahan, em mais uma tentativa de anular o Tratado de Versalhes e retornar às fronteiras czaristas pré-Primeira Guerra - o que, fosse com o Pacto de Não-agressão com a Alemanha ou os acordos com os aliados em Yalta, se deu em boa medida, conforme o Kremlin repartia esferas de influência com seus igualmente interessados parceiros do momento. A destruição da frota turca em Sinop é mostrada como um ato defensivo, seguindo o argumento russo-soviético de jamais ter iniciado uma guerra. Um gesticulante e histérico Napoleão III (Alexander Khokhlov), evocando Hitler – o que é reforçado com sua ordem em direção ao Oriente –, coloca sobre a França a principal culpada pela guerra, o que evidencia a relutância em lembrar o papel dos ingleses. Não se exibe qualquer liderança política britânica e o grosso das tropas combatidas na Crimeia são francesas, com exceção do capitão Evans (Nikolay Brilling) e do comandante-geral inglês, lord Raglan (FitzRoy Somerset, primeiro barão de Raglan, interpretado por Pavel Gaideburov). O marechal Jean-Jacques Pelissier (Boris Olenin) tem mais espaço na tela que sua contraparte inglesa. Os ingleses são poupados. A URSS pretendia estreitar os laços com a França, não apenas pela importância do Partido Comunista Francês como também pelo sentimento de busca por autonomia (se o país em breve entraria para a OTAN, De Gaulle o retiraria do tratado anos depois), tornando a vilania de Napoleão III inadequada, mas não de todo. A IV República Francesa e o profundo sentimento republicano não morriam de amores pelo presidente eleito que virou imperador. A maior parte da população austríaca estava sob ocupação soviética (enquanto os aliados detinham o restante do país) e a Itália e seu partido comunista se encaixavam na mesma situação da França. Apresentar o rei do Piemonte-Sardenha como uma grande ameaça não seria factível. A película se inicia com vitórias russas, apresenta a destruição de sua frota e da ensolarada Crimeia por uma coligação ocidental invasora e termina com a expulsão dos inimigos. Uma repetição e projeção do discurso oficial sobre a Segunda Guerra no passado, o que aproxima Stalin de Nakhimov como herói. O conflito, que resultou em 400-500 mil mortes russas6, não pode ser disfarçada como uma vitória – o que não é raro no cinema em geral. A Rússia perdeu suas conquistas sobre a Turquia nos Balcãs, mas assegurou a vitória no Cáucaso, permitindo negociações menos impositivas (MILLAR, 2004, p. 344). O sacrifício do almirante é ensejo para a modernidade e coragem da Frota Vermelha na Segunda Guerra. O diretor lança uma ponte entre sacrifícios do passado remoto e do passado recentíssimo, anunciando a vitória neste último. Igor Lukovsky, que trabalhara em apenas dois filmes anteriormente, escreveu o difícil roteiro.

O filme estava em produção desde 1943 (FIGES, 2018) – logo após o fim da resistência heroica de nove meses em Sebastopol, e em 1946 ainda era incerta o destino da aliança, para lançar um ataque veemente ao passado russo-britânico. Ao mesmo tempo, permitia ao público perceber os interesses nacionais em jogo, anunciados por Stalin, a possível transitoriedade da amizade com os anglo-americanos e, de maneira mais sombria, uma insinuação de uma terceira reedição, futura, do processo de vitória-destruição nacional-vitória, fortalecendo a coesão da audiência para os novos e incertos desafios da Guerra Fria. Figes (2018) lembra que o filme de Pudovkin era uma resposta ao anglo-britânico Lady Hamilton, a divina dama [Lady Hamilton], 1941, de Alexander Korda, preferindo tratar das relações do almirante com a população da Crimeia e não como combatente contra os ingleses. Durante a edição, em 1946, em decorrência da crise nos estreitos e no Cáucaso, os EUA enviaram sua frota para o Mediterrâneo Oriental em agosto de 1946. Daí a famosa frase de Stalin que o acusou de ser um bom filme de Nakhimov como homem, mas um filme ruim sobre Nakhimov líder7. Ainda segundo o autor, as exigências sobre Pudovkin para uma versão política do filme convergiam para o discurso oficial já adorado na historiografia, como a trilogia de Evgeny Tarle sobre o conflito, publicada entre 1943-55.

Podemos assegurar que essa pressão do regime para a adoção e exposição pelo cinema da versão oficial e da contextualização Segunda Guerra-Guerra Fria lançada para o passado se refletiu em boa parte dos filmes de época do stalinismo tardio8. Apesar dos problemas de produção e pósprodução, o trabalho dos câmeras Anatoly Golovnia e Tamara Lobova ganhou o prêmio de melhor cinematografia no Festival de Locarno de 1947 (ROLLBERG, 2009, p. 30), realizando parcialmente os objetivos artísticos da equipe, frustrados parcialmente pelas exigências do regime. Um Nakhimov sem energia militar não interessava diante da luta no Bósforo.

Releitura da história como história presente (1946-53)

A Guerra da Crimeia receberia também um filme de aventura para o público infantil, Tainstvennaya nakhodka [Achado misterioso], 1953, de Boris Buneyev. O filme é composto por várias histórias de um lugarejo. Em uma delas, Guriy Gagarka (Gennady Yudin, Kurt Kraus em U nikh yest Rodina, Kurt Dietrich em Vstrecha na Elbe, Dick Jones em Serebristaya pyl), um simples timoneiro, enfrenta a fragata inglesa Miranda, que usa seus canhões e fuzilaria contra seu pequeno escaler. Evgeny Teterin, no papel de capitão britânico, desde o começo da Segunda Guerra interpretava apenas oficiais e soldados nazistas. É sintomático que, em uma trama na qual os habitantes de um povoado recordam e celebram diversas passagens de sua história, uma destas, que compõe o filme, ocorra na Guerra da Crimeia.

O tema da expansão por mares quentes é retomado na duologia sobre o almirante Ushakov, dirigida em 1953 pelo cineasta Mikhail Romm. Na primeira película a coligação de inimigos traiçoeiros é apresentada quando ainda vigorava a paz – em uma das festas da czarina Catarina II. Outro personagem heroico, fruto da reabilitação da história czarista como a da construção do Estado, é o príncipe Grigory Potemkin (Boris Livanov) encontra os aparentemente cordiais convidados confabulados, mas não se deixa enganar: “Inglaterra, França, Turquia, todos amigos...”. Embaixadores da França e Grã-Bretanha, visitando a Crimeia junto a Catarina (a famosa viagem que deu origem às vilas de Potemkin, não mencionadas no filme), não reagem à acusação de que fornecem armas aos piratas turcos. Willian Pitt (como está em Londres é de se supor que o local seja o 10th Downing Street, ocupado novamente por Churchill desde 1952), é alertado por seu pai, o ex-primeiro-ministro Willian Pitt, o Velho, em seu leito de morte, de aumentar o poder da Inglaterra e dominar os mares colocando seus inimigos em confronto, ou seja, lançar a Rússia e o Divã em uma guerra na qual a Grã-Bretanha seria a real vencedora, estendendo sua influência sobre o sultão (Victor Feinleib) e esgotando os rivais, sem gerar para si ônus nenhum. Lieven (2014, p. 32) afirma que a “Política do Grande Jogo”, que oporia britânicos e russos na Ásia durante o século XIX, surgiu nesse momento. O interesse na fronteira norte da Índia e na Turquia fez com que Londres pressionasse São Petersburgo para se retirar da Romênia na Guerra Russo-Turca de 1787-92, limitando as conquistas russas no Mar Negro. “A atuação de Pitt nunca foi esquecida em São Petersburgo”. Os britânicos participam do combate como observadores nos navios otomanos. Na Crimeia, o espião britânico Orfano (Pavel Shpringfeld, de ascendência teuto-russa) procura incendiar o estaleiro, gerar motim entre os marinheiros e colonos, rebelar os tátaros e coordenar a invasão turca. Orfano não interage diretamente com os tátaros, mas com o mujique russo Tikhon Prokofiev (ninguém menos que Sergey Bondarchuk), que fugira da fazenda de Ushakov para participar da Rebelião de Pugatchev (1773-75) e agora era um sabotador e provocateur, ao estimular os colonos russos a abandonarem a Crimeia pelo Don e assim fugir da peste e da quarentena9. A escolha do personagem traidor, e sua posterior redenção contra o inglês (a partir do trabalho político de Ushakov), indica o zigue-zague da história oficial em torno das rebeliões camponesas (DAVIES, 1991, p. 30). E também o atual desejo de união interna contra o desafio externo anglo-saxônico. O perdão e a reabilitação individuais não eram raras sob Stalin. Várias ocorreram após a yejovchina, sob acusação do antigo chefe do NKVD ter cometido excessos. Rokossovsky saiu da prisão diretamente para chefiar um exército com a invasão nazi. 

A necessidade de expandir a marinha levou à criação da Ordem de Ushakov, no mesmo movimento de restauração dos heróis czaristas no exército com as ordens de Suvorov e Kutuzov. O túmulo do almirante se perdera com a demolição de sua capela durante campanha antirreligiosa da Revolução de Outubro. A marinha encomendou o filme como parte do retorno de sua memória. Pode conter uma crítica à Stalin. Quando Ushakov pede permissão à Potemkin para usar uma nova tática contra a frota turca, e aceita prontamente que a ideia pertencerá a seu superior, Potemkin responde: “bom garoto”. Comportamento desejado por Stalin diante de seus generais. Vários pequenos erros surgem no filme de Romm, como o tapa-olhos de Potemkin sobre o direito e não o esquerdo e o nome grafado errado de Mordvinov (Nikolay Svobodin), simplificações que tornaram a narrativa mais fluída ou compreensível para a audiência (como a supressão da morte e sucessão do sultão turco, da mudança do navio capitânia do almirante russo e da idade de superiores, às vezes mais jovens que o próprio Ushakov), que tornaram o filme menos caro (quanto aos navios usados) e alterações que engrandeciam os feitos de Ushakov, aumentando o porte e número de naus capturadas e o desfecho de batalhas. Curiosamente, o herói da independência dos EUA, John Paul Jones, serviu como um vitorioso Contra-almirante mercenário para Catarina nesta guerra (MONTEFIORE, 2016, p. 311). O que não se menciona no filme. Um jovem Nelson, ainda sem nenhuma amputação e olho perdido10, utiliza a sala de Pitt como sala de guerra, em meio a estratégias e táticas para derrotar os russos – imagem que o cinema soviético imputara a Hitler em outras películas. 

O segundo filme se passa durante a campanha mediterrânea russa contra os franceses durante as guerras revolucionárias e napoleônicas. A Inglaterra não suporta a presença russa no Mar Negro – e ainda menos no Mediterrâneo, apesar de sua aliança contra a França durante a Segunda Coalizão. Napoleão conquista o norte da Itália11, promove sua campanha no Egito e em seguida o resto da península italiana, onde estabeleceria seu general (e cunhado) Joachim Murat como rei de Nápoles poucos anos depois (1808)12. Cabe à Rússia revidar aos franceses em Corfu, na costa grega (1798-99), a Esquéria dos feácios da Odisseia. Os aliados ingleses, no entanto, ignoram a frota francesa no Mediterrâneo. Pretendem que russos e franceses se destruam – como na versão oficial soviética sobre a Segunda Guerra. Nelson permite que a marinha inimiga desapareça no nevoeiro sem ser incomodada. O calculado imobilismo inglês13 obriga a Rússia a derrotar sozinha os franceses. A tomada da ilha de Corfu não foi realizada apenas pelos russos, mas também pelos turcos, agora aliados antinapoleônicos no cambiante tabuleiro internacional da época. No entanto, o filme a apresenta como ação inteiramente russa. Os turcos aparecem recebendo instruções e ordens de Ushakov, mas participam do conluio dos pseudo-aliados anglo-italianos. O embaixador Hamilton, interessado na posse das Ilhas Jônicas, procura afastar Ushakov delas. Afirma ao rei Ferdinando IV das Duas Sicílias que não pode reaver Nápoles enquanto os russos estão em Corfu e os Britânicos em Malta, conseguindo que este também faça pressão sobre Ushakov, além de delegar a sua esposa Emma, juntamente com Orfano, um atentado contra o almirante. Ushakov quer fazer das Ilhas Jônicas a República Septinsular, tendo por base seus costumes locais. Metaxa [Alexey Alekseev], um oficial de origem grega, se contrapõe. Seria um perigo entregar o poder à ralé. O almirante o critica por desrespeitar seu povo e por se contrapor à necessidade russa de bases militares na área. O idealismo se une ao senso prático. A película faz eco às lutas que culminariam na libertação grega dos otomanos e no auxílio russo à causa grega, o que era interessante após a derrota do partido comunista e de seus aliados na Guerra Civil Grega (1946-49), à adesão da Grécia à OTAN em 1952 (MILLAR, 2004, p. 605, 1149) e à relação com o Leste Europeu. A lembrança da ação passada era um atenuante para a inação presente decorrente da obediência de Stalin aos termos do Acordo das Porcentagens elaborado por Churchill em 1944 e em sua expectativa dos ingleses fazerem o mesmo. Os italianos podem desempenhar com mais desenvoltura o papel de vilões, não muito aquém dos ingleses, uma vez que o governo provisório de Enrico De Nicola e Alcide De Gasperi e o Papa Pio XII lançaram uma campanha política de terror psicológico, boicote e isolamento ao Partido Comunista Italiano nas eleições de 1948, além de, como a França, expurgar os comunistas eleitos dos cargos do Estado, o que permitiu aos comunistas fazerem o mesmo com liberais e conservadores no Leste Europeu (HOBSBAWM, 2001). Retornar ao Mediterrâneo (o que a URSS consolidaria apenas com a base naval de Tartus, na Síria, em 1971) não era mais do que recuperar o prestígio do passado russo. 

A ideia explorada pelo cinema hollywoodiano da agente soviética imoral é invertida. Sobre lady Hamilton, Orfano diz que “conheço esta mulher há vinte anos. Ela começou em Londres, nas tabernas dos marinheiros. E agora os senhores leem seus despachos”. Um retrato condizente com a escalada social da filha de ferreiro que se apresentava nua e se casou com o rico tio do amasiado (PEAKMAN, 2005, p.4-9). Apesar de se envolver em política, e na repressão cruel aos jacobinos na Itália, não era uma agente como no filme de Romm. Como Hollywood faria com o desempenho soviético na Segunda Guerra, Romm exibe Nápoles se rendendo aos russos e sua anistia, tento o comodoro Foote (Vakhtang Tumanov) um papel coadjuvante. Uma inversão dos fatos. Ushakov (aristocrata de uma empobrecida família de príncipes russos e hoje santo) e os oficiais russos improvavelmente lamentam-se pelo destino dos jacobinos italianos nas mãos dos monarquistas e o fim de sua república, com a reintronização do casal real. Ushakov repreende Nelson pelos fuzilamentos de prisioneiros14. É pelo poder naval que unidades russas participam da libertação de Roma dos franceses.

Em Maksimka, 1952, de Vladimir Braun, é lembrado o passado americano de tráfico negreiro. Os russos aparecem no filme para salvar os cativos africanos das mãos americanas. Uma corveta da marinha russa, a Bogatyr, encontra um tumbeiro americano no Atlântico, a escuna Betsy, quando o tráfico já fora proibido. O capitão americano (Mikhail Astangov – célebre nos papéis de vilões, como Hitler, generais nazistas e americanos, inescrupulosos jornalistas estadunidenses) e o imediato (Emmanuel Geller) decidem lançar a carga humana ao mar para apagar as provas, o que causa um motim entre os marinheiros, que se negam em executar a ordem (os soviéticos mantém o discurso de internacionalismo de classe e a visão benfazeja dos proletários da nação rival). O comandante resolve esconder os escravizados no porão, em meio a açoites, e despistar os russos na tempestade. O filme serve politicamente ao preparar a população para a necessidade de aproximação com o nascente Terceiro Mundo, com os gastos crescentes com a corrida armamentista e as novas preocupações oceânicas do campo socialista em expansão global, e a crítica ao racismo dos EUA. Este passado exploratório e escravagista invalidaria suas pretensões de ser a polícia do mundo na emergente Guerra Fria, e reforçaria internamente as da URSS em se destacar como liderança para as novas nações, ansiosas para se distanciar das ex-metrópoles, e sua política de amizade entre os povos. Se impõe uma visão higienizada do czarismo, sem seus problemas coloniais na Ásia Central, Cáucaso e Manchúria ou mesmo a lembrança do regime de servidão que ainda vigorava na época em que a película transcorre – meados do século XIX. Temos no início da película Maksimka (Tolya Bovykin), o Terceiro Mundo, próximo de seu amigo russo, o marinheiro Luchkin (Boris Andreev), a URSS, ambos contra os exploradores americanos. Eles são parecidos por sua condição econômica-social – o ex-escravo Maksimka ajuda Luchkin, exservo, rude, ainda com um crucifixo sob a telnyashka (a camisa listrada símbolo de virilidade e das forças armadas russas e soviéticas), a abandonar o alcoolismo que adquiriu pelas injustiças sofridas por um senhor de terras da aristocracia do czar. Os dois sofrem um processo de libertação, interna e externa. A incompreensão da amizade entre um branco e um menino negro os leva a serem tomados por atração numa escala na América do Sul. Ambientado por volta de 1861, transcorre no momento em que a Rússia recém-libertou seus servos, e os EUA ainda não o fizera com seus escravos. E no Japão, a delegação inglesa é cercada por servis sikhs de sua colônia indiana e submissas gueixas locais. 

A presença opressora americana se faz sentir em todas as partes. Na América Latina Maksimka percebe o contramestre (Alexander Kashperov) e o imediato da Betsy (agora Mary) a procurar por material humano adequado para ser raptado e transformado compulsoriamente em marinheiros, o que se repete no Japão. Lançam droga na bebida de Luchkin15, falsificam um contrato e o aliciam à força, além de recuperarem o menino. Quando combatendo os americanos na Mary, é de um indiano muçulmano, branco, com turbante (mais uma ligação de boa-vontade com o Terceiro Mundo e contra o imperialismo), que recebe ajuda. Como o menestrel Blondel, cantando pela Europa até chegar ao castelo Dürnstein e encontrar Ricardo I Coração de Leão no calabouço, os marinheiros da Bogatyr usam um escaler para se moverem entre os navios do porto, cantando até serem reconhecidos por Maksimka, que salva a Luchkin. O capitão alega que detém a posse legal do menino negro, por ter sido adquirido nos EUA. Os russos o salvam novamente ao provar que procedia de um tumbeiro, ilegal pelo direito marítimo e um ato de pirataria. Diante da ameaça numérica dos americanos, os russos contrapõem a Justiça e a verdade. Essa troca de libertações ante os americanos reforça sua aliança.

Geroi Shipki [Os heróis de Shipka], 1954, foi dirigido por Sergei Vasilyev, um dos irmãos Vasilyev, que rodaram Chapayev, iniciador do realismo socialista, 20 anos antes. A película trata da Guerra Russo-Turca de 1877-78, com ênfase na Batalha do Passo de Shipka. O passado foi redimensionado para as condições presentes da URSS. O jogo diplomático das potências europeias assemelha-se à versão stalinista do pré-Segunda Guerra. Alemanha, Áustria e especialmente a Inglaterra temem que a Rússia ganhe importância com a vitória certa sobre a Turquia do sultão Abdul-Hamid II (o búlgaro Dako Dakovsky). Mas permanecem esperançosos que o Kremlin e Constantinopla se aniquilem completamente, criando um vácuo de poder na região e sobre seus próprios governos, tornando possível e fácil a tutela ocidental. Eles próprios conquistaram seu quinhão com a atuação russa: a neutralidade diante da Unificação alemã, a distração para a anexação da Bósnia-Herzegovina pela Áustria-Hungria, o aumento da influência britânica sobre o Divã e os Estreitos dos Dardanelos e Bósforo. Bismarck (Nikolay Simonov) e Moltke (Vasily Sofronov), o imperador austríaco Franz Joseph e o chanceler e primeiro-ministro húngaro, conde Gyula Andrássy (Bruno Freundlich), o primeiro-ministro inglês Benjamin Disraeli (Vladimir Taskin), o líder conservador e antecessor de Disraeli no 10th Downing Street, conde de Derby (Fedor Nikitin) e o chanceler marquês de Salisbury (Vladimir Gaidarov), se unem para a possibilidade de uma vitória fácil sobre a Rússia. O que seria indesejável torna-se a oportunidade para uma nova Guerra da Crimeia, atiçando as potências europeias. Assim, o Congresso de Berlim de 1878 se torna uma convenção para a agressão militar à Rússia, e não de negociação diplomática para pressioná-la a recuar.

A trama era reconhecível pela plateia soviética. As democracias ocidentais, com sua política de panos quentes, lançando a beligerância nazista sobre a União Soviética, na expectativa de ditar os termos de paz, ou mesmo se unindo à Alemanha contra a URSS. A coordenação por Disraeli das ações estratégicas da Sublime Porta ecoava à audiência soviética como a recém entrada da Turquia na OTAN, em 1952. A mensagem de união espiritual e linguística com o povo búlgaro é reforçada pela lembrança da tentativa britânica de atingir Sófia antes dos soviéticos, mantendo uma monarquia conservadora dependente dos britânicos, e seu fracasso em decorrência da agilidade soviética em atuar com seu exército mais rapidamente do que a Royal Navy nesse intento. Traz também uma nova mensagem: o dever internacionalista da União Soviética de promover a libertação popular em outros países – naquele momento, na península coreana. A guerra deveria ser rápida. O atraso nas operações permitiria ao Ocidente se unir e organizar para atacar a URSS, como a Inglaterra pretendia ao aportar sua marinha em Constantinopla. Seu papel de polícia do mundo agora era transmitido aos Estados Unidos. Guerras localizadas não deveriam tornar-se ensejo para uma nova guerra mundial e nuclear. A coligação de 18 países adversários na Guerra da Coreia16 ressoava na plateia. Sua estreia deuse em 1954. Como o tempo de produção durante a era stalinista era de dois anos, pode-se dizer que foi o último dos grandes filmes stalinistas. 

Em uma das cenas, o primeiro-ministro britânico aparece sob luzes avermelhadas e sombras, acentuando o caráter diabólico de suas maquinações com os turcos. É interessante notar que, apesar da escolha do franzino Vladimir Taskin para o papel de Disraeli – de família de judeus emigrados do ghetto de Veneza, e ele convertido ao anglicanismo na juventude –, as charges dos jornais ingleses da época mostravam o primeiro-ministro tory com traços muito mais antissemitas17 do que a caracterização do personagem feita pelo cinema soviético num filme que foi rodado no momento em que a trama do Complô dos Médicos atingia seu auge na União Soviética – e sua subsequente desaparição durante os 100 dias de governo de Beria. As políticas raciais (demonstrado por expulsões passadas, recepções cautelosas não tão recentes, racismo imperialista) e eugenia ainda eram presentes na Inglaterra18. Filmes como Russkiy vopros [Questão russa], 1947, de Mikhail Romm, e Serebristaya pyl [Pó de prata], 1953, de Pavel Armand e Abram Room, acusavam os americanos não só de também o serem, como de promoverem uma nova onda de perseguições, massacres e genocídios como continuidade dos planos nazistas. Estabeleceu-se um antissemitismo racial na Alemanha nazista, e político na URSS após a reviravolta da liderança social-democrata israelense, de uma aproximação com a União Soviética promovida por armas exportadas da Tchecoslováquia que auxiliaram na Guerra de Independência em 1947 para uma sólida aliança com os EUA. Stalin (que possuía um judeu no seu círculo íntimo de relações e círculo restrito de poder, o comissário dos Transportes Lazar Kaganovitch) não precisou de muitos esforços para engajar chauvinistas russos e outros povos do país nostálgicos dos pogroms czaristas ou insatisfeitos com a presença judaica em bons cargos de direção política e econômica, na nova onda de perseguições políticas do Caso Leningrado (1948-50) e do Complô dos Médicos (1951-53). Precisou apenas colocar as forças sociais a seu favor. Disraeli poderia também chamar a atenção da audiência para as ações do novo aliado americano no Oriente Médio, gerando apoio a nova política de aproximação com os países árabes e de combate ao cosmopolitismo interno19.

Em Prjevalskiy, 1951, de Sergei Yutkevich, Disraeli (mais uma vez Vladimir Taskin) novamente aparece em sua poltrona, como um trono, coberto com a vermelhidão e a escuridão lançadas por uma grande lareira. A cena termina por uma transição que acentua ambas as cores até se amalgamarem e tornarem-se totalmente opacas, encobrindo a astuta e malévola face do político judeu-bretão. A propaganda antissemita nazi baseava-se em alguns elementos presentes na versão soviética de Disraeli. Sua inteligência, dissimulação, perfídia (HERF, 2014). No entanto, todos os anglo-americanos o são. E com a escolha de atores muitas vezes descendentes de imigrantes alemães dos séculos XVIII e XIX ou de bálticos, passa-se longe da associação racial destes com os judeus, como nos momentos mais desvairados do nazismo sob a perspectiva da derrota (quando se preferiu esquecer da natureza germânica dos anglo-saxões). Disraeli é o que é acima de tudo por ser capitalista e dirigente inglês. Chauvinistas russos (ucranianos e outros), em geral antissemitas, poderiam ser atraídos para as posições do Kremlin especificamente pela etnia. Em nenhum momento o primeiro-ministro é associado a símbolos judaicos. Adicione-se ainda a característica da economia de ações (e não a avareza) – deixar terceiros fazer o trabalho sujo, e novamente se depara com um mote da propaganda sobre o capitalismo e, em especial, a Churchill. A ingenuidade e parvidão é encontrada na propaganda soviética antinazista. Se procurará em vão por um capitalista tolo nos filmes (o que não significa que não possam ser enganados e superados por bons planos e liderança), e uma raposa política (ou esfinge indecifrável) como Disraeli não poderia receber outra luz de Yutkevich ou Vasilyev. 

Conclusão

A interpretação promovida pelos filmes de época, em especial sobre a Crimeia e a presença da marinha imperial russa nos mares, tratava as tensões entre a Rússia e as potências ocidentais como uma cíclica repetição do passado. E este, formulado segundo o discurso sancionado pelo regime das motivações e desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. As potências da Europa Ocidental, em especial a Inglaterra, pretendem enfraquecer a Rússia por meio da delegação da guerra a terceiros. A exceção se dá no próprio filme ambientado na Guerra da Crimeia, onde a ação inglesa acaba amortecida pela vigência da aliança antinazista. Não se tratava apenas de indicar o inimigo britânico, com seu império se despedaçando, à mercê de soviéticos e americanos, mas também da mensagem de que estes ocupavam rapidamente o lugar dos antigos rivais, agora decadentes. Apenas se retomava seu antigo espaço nos mares, por direito seu. Além de procurar expor ao público soviético essa visão do presente (da nascente Guerra Fria) como repetição do passado nos assuntos externos, com a Rússia czarista e a URSS sempre utilizando de inteligência, vontade, liderança e estratégia, para escapar ao jogo das potências que a tentam destruir pela guerra, há também a preocupação de se agregar essa mesma audiência em torno dos objetivos do Kremlin. A segurança da nação (e, portanto, a projeção de seu poder naval, para romper o isolamento imposto pelos rivais e também para defender o território soviético de novas incursões destrutivas, cuja imagem estava arraigada na mente da população, como na Guerra da Crimeia e a Segunda Guerra) precisava superar as divisões internas da sociedade, étnicas e políticas, por meio do convencimento político-ideológico ou da mão pesada do Estado. Nem sempre o cinema respondeu perfeitamente aos comandos do Kremlin. Mas a adoção da linguagem e a inversão da propaganda hollywoodiana permitiram que a versão sancionada por Stalin se impusesse no cinema e nos filmes de época. Os comandos do ditador, para encontrarem repercussão social, precisavam encontrar um terreno propício para operar. A aversão ao estrangeiro do chauvinismo russo encontrava expressão maior no antissemitismo. Uma vez que era importante ferramenta para o combate aos rachas sociais e culturais internos promovidos pelos “cosmopolitas”, associar o sionismo e os anglo-saxões na figura do traiçoeiro Disraeli foi de grande importância. O antissemitismo de Stalin, no entanto, era político, eximindo-se de representações religiosas ou de caricaturas étnicas, como ocorria dentro da própria luta entre torys e whigs na Inglaterra Vitoriana. 

Referências bibliográficas

ALTMAN, Rick. Los géneros cinematográficos. Barcelona: Paidós, 2000.

APPLEBAUM, Rachel. Empire of friends. Ithaca: Cornell University Press, 2017.

BO, João Lanari. Cinema para russos, cinema para soviéticos. Bazar do Tempo, 2019.

BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A Arte do Cinema. Campinas: Unicamp, 2013.

CLARK, Christopher. Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra Mundial. São Paulo:

Companhia das Letras, 2014.

CONDIT, Doris. The test of war: 1950-1953. Washington: Historical office OSD, 1988.

DAVIES, R. Censura e falsificações na História da URSS. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991.

DOMENACH, Jean-Marie. La propaganda política. Buenos Aires: Eudeba, 2015. DOYLE, Peter. World War II in numbers. Londres: A&C Black, 2013.

DUGGAN, Christopher. História de Itália: desde 1796. Lisboa: Edições 70, 2017.

FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FERRO, Marc. El Cine, una visión de la historia. Madrid: Akal, 2008.

FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: NORA, Pierre (org.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

FIGES, Orlando. Crimeia. Rio de Janeiro: Record, 2018.

FÜRST, Juliane. Late Stalinist Russia: society between reconstruction and reinvention. Londres: Routledge, 2006.

HARRISON, Mark. The volume of Soviet munitions output, 1937–1945: a reevaluation. In: Journal of Economic History, 1990, nº3, pp.569–589.

HERF, Jefrey. Inimigo Judeu: propaganda nazista durante a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. São Paulo: EDIPRO, 2014.

HERRICK, Robert. Soviet naval strategy: fifty years of theory and practice. Annapolis: U.S.

Naval Institute, 1968.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

JOWETT, Garth; O'DONNELL, Victoria. Propaganda and persuasion. Thousand Oaks: Sage, 2006.

KEEP, John; BRISBY, Liliana. História Contemporânea na concepção soviética. Rio de Janeiro: Record, 1965.

KENEZ, Peter. The birth of the Propagada State: Soviet methods of mass mobilisation, 19171925. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

KULKOV, E.; RJECHEVSKI, O.; TCHELICHEV, I. A verdade e a mentira sobre a Segunda

Guerra Mundial. Lisboa: Editorial “Avante”, 1985.

LEVINE, Philippa. Eugenics: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2017. LEWIN, Moshe. O fenômeno Gorbachev: uma interpretação histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

LEWIN, Moshe. O século soviético. Rio de Janeiro: Record, 2007.

LEYDA, Jay. Kino: a history of the Russian and Soviet film. Nova York: Macmillan, 1960.

LIEVEN, Dominic (org.). The Cambridge History of Russia: Imperial Russia, 1689–1917. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

LIEVEN, Dominic. Rússia contra Napoleão: a batalha pela Europa de 1807 a 1814. Barueri: Amarilys, 2014.

LYONS, Graham (org.). The Russian version of the Second World War. Nova York: Facts On File, Inc., 1976.

MEYER, Karl; BRYSAC, Shareen. Tournament of shadows: the Great Game and the race for empire in Central Asia. Nova York: Basic Books, 1999.

MILLAR, James (org.). Encyclopedia of Russian History. Farmington Hills: Thomson Gale, 2004.

MONTEFIORE, Simon Sebag. Os Románov: 1613-1918. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

MORETTIN, Eduardo Victorio. A representação da história no cinema brasileiro (1907-1949). In: Anais do Museu Paulista: História e Cultura material, São Paulo, 1997, vº5, nº1, pp.249271.

MORLAND, Paul. A maré humana: a fantástica história das mudanças demográficas e migrações que fizeram e desfizeram nações, continentes e impérios. Rio de janeiro: Zahar, 2019.

OLIVEIRA, Dennison. O cinema e a Segunda Guerra Mundial no século XXI. In: VIII Encontro Nacional de História da Mídia, 2011, Guarapuava. 8º Encontro Nacional de História da Mídia-Rede Alcar. Guarapuava: Ed. da UNICENTRO, 2011. vº1. PEAKMAN, Julie. Emma Hamilton. Londres: Haus Publishing, 2005.

POSPELOV, P. (org.). Istorria Velikoi Otecestvennoi Voiny Soiuza. Moscou: Voyenizdat, 1960-65. 6v.

POSPELOV, P. (org.). La Gran Guerra Patria de la Unión Soviética. Progreso: Moscou, 1975. RODGER, Nicholas. The command of the ocean: a naval history of Britain: 1649–1815. Londres: Allen Lane, 2004, v.2.

ROLLBERG, Peter. Historical dictionary of Russian and Soviet cinema. Lanham: Scarecrow Press, 2009.

ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

STALIN, Iosif. Stalin i kosmopolitizm, Dokument №17 Pravlenaya stenogramma vystupleniya I.V. Stalina na zasedanii orgbyuro TSK VKP(b) po voprosu o kinofil'me “Bolshaya zhizn” (2-

ya         seriya),             09/08/1946.     Arkhiv Aleksandra      N.        Yakovleva.       Disponível       em: https://www.alexanderyakovlev.org/fond/issues-doc/69293. Acesso em 10/05/2021.

STEFOFF, Rebecca. Scientific explorers: travels in search of knowledge. Oxford: Oxford University Press, 1992.

TAYLOR, Richard. Film propaganda: Soviet Russia and Nazi Germany. Londres: I. B. Tauris, 1998.

VIDIGAL, Armando. Nelson: o homem que derrotou Napoleão. São Paulo: Contexto, 2013.

VOLKOGONOV, Dmitri. Stalin: triunfo e tragédia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. WOHL, Anthony. “Ben JuJu”: representations of Disraeli's jewishness in the Victorian political cartoon. In: Jewish History, Nova York: Springer, outono de 1996, vº10, nº2, pp.89-134.

Fontes

ADMIRAL Nakhimov [Almirante Nakhimov]. Direção: Vsevolod Pudovkin. Moscou: 

Mosfilm, 1946. 1 DVD (88 mi), P&B.

ADMIRAL Ushakov [Almirante Ushakov]. Direção: Mikhail Romm. Moscou: Mosfilm, 1953. 1 DVD (108 min), color.

GEROI Shipki [Os heróis de Shipka]. Direção: Sergei Vasilyev. Leningrado/Sofia: Lenfilm/Boyana Film, 1954. 1 DVD (137 min), color.

KORABLI shturmuyut bastiony [Bastiões da tempestade dos navios/Almirante Ushakov parte II]. Direção: Mikhail Romm. Moscou: Mosfilm, 1953. 1 DVD (108 min), color.

MAKSIMKA. Direção: Vladimir Braun. Kiev: Dovjenko Kinostudiya, 1952. 1 DVD (78 min), color.

MIKLOUHO-MACLAY. Direção: Alexander Razumny. Moscou: Mosnauchfilm, 1947. 1 DVD (84 min), P&B.

PRJEVALSKIY. Direção: Sergei Yutkevich. Moscou: Mosfilm, 1951 DVD (115 min), color.

PYATNADTSATILETNIY kapitan [Capitão aos quinze]. Direção: Vasily Juravlyov. Gorki: Soyuzdetfilm, 1945.1 DVD (83 min), P&B.

ROBINZON Kruzo [Robinson Crusoé]. Direção: Aleksandr Andriyevsky. Tbilisis: Tbilisis Kinostudia/Stereokino, 1946. 1 DVD (85 min), P&B, 3D.

RUSSKIY vopros [Questão russa]. Direção: Mikhail Romm. Moscou: Mosfilm, 1947. 1 DVD (91 min), P&B.

SEREBRISTAYA pyl [Pó de prata]. Direção: Pavel Armand; Abram Room. Moscou:   

Mosfilm, 1953.  1 DVD (102 min), color.

SOVEST mira [Consciência do mundo]. Direção: Abram Room. Moscou: Mosfilm, 1951. 1 DVD (90 min), P&B.

TAINSTVENNAYA nakhodka [Achado misterioso]. Direção: Boris Buneyev. Moscou: Kinostudiya imeni M. Gorkogo, 1953. 1 DVD (72 min), color.

V mirnyye dni [Em dias de paz]. Direção: Vladimir Braun. Kiev: Kievskaya Kinostudiya, 1950. 1 DVD (97 min), color.

VSTRECHA na Elbe [Encontro no Elba]. Direção: Grigori Aleksandrov. Moscou: Mosfilm, 1949. 1 DVD (104 min), P&B.

Recebido em 15/04/2021.  Aceito em 17/05/2021.

 

1                      Toda propaganda política utiliza conteúdos ideológicos e está associada intimamente a estes, ao contrário do que afirma Domenach (2015), que identifica uma propaganda totalitária, que é política e ideológica, e a propaganda política dos regimes liberais, naturalizada pelo autor. Uma definição adequada é a de e (JOWETT; O'DONNELL, 2006, p.1-12), que apontam que propaganda é uma campanha deliberada e sistêmica, que possui o objetivo de tentar criar uma situação ou percepção em determinado público, dirigindo a comunicação para uma meta préestabelecida. O estado desejado pode ser perceptual, cognitivo, comportamental ou a soma de todos. Daí a importância de simbolismos, da cultura e valores e emoções pessoais. E a criação de diferentes técnicas e formas de comunicação para procurar obter determinados desejos daqueles que detém a emissão da propaganda. A propaganda é fruto da sociedade de massas, sistêmica, portanto, ao capitalismo e ao socialismo. O que invalida a afirmação de Kenez (1992) de que o sistema soviético formava um Estado-propaganda.

2                      Entende-se o gênero histórico como o conceituado por Morettin, bem como suas consequências: “o chamado filme histórico contribui para que determinadas imagens sobre o passado sejam consolidadas e/ou reelaboradas, permitindo que um público mais vasto entre em contato com este saber” (MORETTIN, 1997, p.251-252). Oliveira (2011) aponta que o cinema foi o principal contribuidor para essa construção entre as massas. Morettin e Rosenstone (2015) acreditam que o filme não deve ser abordado segundo a noção de deturpação da história, pois forneceria uma construção desta, realizada a partir de sua própria linguagem fílmica e necessidades – como as preocupações com a economia de tempo e recursos, a audiência, etc., como a própria historiografia o faz. Ferro (1976) pensa tais deturpações como possivelmente interessadas. Postura que aparenta ser a mais adequada. 3 Os diretores encontraram um lapso de informações oficiais sobre a Segunda Guerra. Pouco material foi publicado até perto da morte do ditador. Pesquisas e obras anunciadas em 1945 foram canceladas logo em seguida. Assim, a linha chancelada para explicar o evento partia dos pronunciamentos de Stalin – como seu discurso eleitoral de 9 de fevereiro de 1946, em que anunciava que o país precisava se preparar para enfrentar uma longa guerra cultural promovida pelo capitalismo (KEEP; BRISBY, 1965, p.224). O essencial para forjar o padrão presente nos filmes.


4    O gênero cinematográfico é um modelo de classificação de um filme baseado por seu estilo ou tom, ambientação ou tema, e seu formato ou produção, além de apresentar subgêneros, formados por divisões internas ou fusões com outros gêneros (ALTMAN, 2000). Bordwell e Thompson (2013) mostram como os limites entre gêneros e suas próprias definições são fluídas, essencialmente formuladas pelas expectativas do público em reconhecer elementos básicos de diferentes tramas que se demonstraram bem-sucedidas e são recontadas sucessivamente.

5    As deportações de tártaros, ou tátaros, da Crimeia iniciou-se logo após a conquista de Catarina. Sua população começou a recuar frente à dos eslavos com a emigração para áreas sob controle turco, e prosseguiu com deportações ao longo do século XIX. Stalin procedia dentro de uma atitude tradicional. Os rancores mútuos eram seculares. A população eslava da região era oprimida pelo canato tártaro desde o Medievo. Apenas entre os séculos XVII e XVIII mais de um milhão de russos, ucranianos e poloneses foram escravizados fora das fronteiras da Crimeia, em raids tão longínquos quanto as cercanias de Moscou. A própria economia do canato dependia do comércio escravagista. Apesar da destruição pelo exército russo de sua capital e principal entreposto de escravos, Bahçesaray, em 1736, sua reconstrução e reinício das atividades levou Catarina à política de conquista de 177283. A época da colheita também era uma época de terror pelas pilhagens tátaras. 183,155 tátaros e 15,040 gregos seriam deportados da Crimeia para o Uzbequistão e a República Autônoma de Mari (no nordeste da Rússia) entre meados de maio e o fim de agosto de 1944 (MILLAR, 2004, p.339-341, 384).

6    Figes (2018) fala em no mínimo ¾ de milhão de soldados mortos em batalha ou perdidos por doenças e enfermidades, 2/3 deles russos; Lieven (2006, p.540), em 450 mil soldados e marinheiros.

7    Ou, mais precisamente: “Pudovkin, por exemplo, empreendeu a produção de um filme sobre Nakhimov sem estudar os detalhes do assunto e distorceu a verdade histórica. O resultado foi um filme não sobre Nakhimov, mas sobre bailes e danças com episódios da vida de Nakhimov” (LEYDA, 1960, p.391). A transcrição exata do comentário do ditador no birô do partido em 9 de agosto de 1946, no entanto, é: “Existem elementos da abordagem desonesta dos diretores ao estudo do assunto que eles queriam mostrar. Eles atuam em todos os tipos de pequenas coisas, dois ou três navios de papel foram mostrados, o resto - danças, todos os tipos de informações, todos os tipos de episódios para entreter o espectador. Na verdade, este não é um filme sobre Nakhimov, mas um filme sobre qualquer coisa, com alguns episódios sobre Nakhimov. Devolvemos o filme e contamos a Pudovkin que ele não havia estudado esse caso, nem mesmo conhecia a história, não sabia que os russos estavam em Sinop. O caso é retratado como se os russos não estivessem lá. Os russos fizeram prisioneiros um bando de generais turcos, e isso não é transmitido no filme. Por quê? Não sei. Talvez por exigir muito trabalho e seja muito mais fácil mostrar as danças” (STALIN, 1946). As reuniões de comitês no estúdio e no Ministério do Cinema que deliberaram os acréscimos e a liberação do filme contavam com roteiristas, atores e diretores como Gerasimov, Romm e Kalatozov. A estátua de Nakhimov em Sebastopol fora destruída em 1928 ainda durante o frenesi revolucionário. Poucos anos depois o herói caído fora restabelecido na história e na Marinha.

8    A ambiguidade dos aliados ocidentais, seu desejo de apoiar o campo fascista, sua responsabilidade pelo Pacto Ribbentrop-Molotov, figuravam nos livros didáticos também (LYONS, 1976, 4; 8-9).

9    Tátaros – do Volga e não da Crimeia – e bashkires foram dos principais apoiadores da rebelião, criando uma zona de contato para o personagem. 120 anos antes do período do filme tártaros da Crimeia foram também importantes para a Rebelião de Stenka Razin (MILLAR, 2004, p. 1020, 1272, 1155).

10  O historiador assessor de Romm (infelizmente seu nome não está no letreiro) mostrou-se correto quanto as datas.

Nelson, ainda inteiro em 1792, perderia o olho direito na Córsega em 1794 e o braço direito em Tenerife em 1797 (VIDIGAL, 2013). O futuro vice-almirante Edward Foote acusa as manobras inventadas por Ushakov na Batalha de Tendra, 1790, de bárbaras por romperem com a tradição. Nelson percebe sua importância e as copia. Um almirante idoso adverte Nelson de que quebrar as regras e a tradição podem levá-lo a ser fuzilado, como John Byng. Enquanto os soviéticos, representados por Ushakov, agem baseados em ciência e pensamentos audazes e revolucionários, os czares e o inimigo externo se fragilizam pela adoração cruel da hierarquia e tradição. Mote que justificava o comportamento de Stalin diante da genética e outros ramos da ciência que se desenvolviam no Ocidente (e o tratamento dispensado aos cientistas desviantes) e sustentava as campanhas de maior envolvimento do proletariado urbano e rural com o trabalho e a inovação. Byng, no entanto, não foi fuzilado por desrespeito aos procedimentos, mas sim pela derrota pelos franceses em Minorca num momento em que a Inglaterra perdia batalhas em vários frontes da Guerra dos Sete Anos, motins eclodiam e que se procurava por um bode expiatório. Rodger (2004, p.272) ainda afirma que Nelson e outros foram influenciados não pelo renovador Ushakov mas sim pela corte marcial de Byng, que fez com que oficiais da marinha britânica incorporassem a audácia às tradições como forma de escapar a uma punição semelhante.

11  1796-99, quando a expedição austro-russa (sendo o comandante russo o famoso marechal Aleksandr Suvorov, príncipe da Itália, que recebeu um filme soviético homônimo em 1940) invade e derruba a República Cisalpina criada e apoiada pela França, e novamente a partir da invasão napoleônica de 1800 (DUGGAN, 2017).

12  A duologia de Romm é puramente nacionalista, sem tendências internacionalistas ou social-revolucionárias (com a exceção da condenação do elitismo de Catarina II). Caso a visão positiva da Revolução Francesa nos primeiros anos da Rússia soviética ainda vigorasse, as repúblicas proclamadas pelos jacobinos italianos concomitantemente com a chegada de tropas francesas às respectivas capitais italianas poderiam ser bem-vistas. Como a ação da jornalista Eleonora de Fonseca Pimentel, “la portoghesina di Napoli”, que procurou angariar apoio popular aos republicanos napolitanos por meio de planos de educação e cultura para as massas. No entanto, a Rússia (e Ushakov), unida a Nelson, bombardeou as forças revolucionárias italianas e os “liberadores” franceses até Nápoles, reempossando temporariamente Ferdinando IV pelo apoio ao exército do arcebispo Fabrizio Ruffo (DUGGAN, 2017, p.55-58). Não havia como conciliar internacionalismo revolucionário e nacionalismo grãorusso na narrativa de Romm.  

13  A atuação britânica no Mediterrâneo foi muito mais intensa do que o filme aponta (VIDIGAL, 2013). 14 O que não é um exagero. Na derrubada da República de Nápoles em 1799, a carta de anistia do cardeal Ruffo aos jacobinos (e não do comodoro Foote) que ainda resistiam na cidade foi suspensa por Nelson, que “mandou prontamente enforcar um dos líderes rebeldes numa verga de um dos seus navios, após o que o cadáver foi atirado ao mar sem sepultura cristã, num sinal de que não devia ser dado quartel ao inimigo” (DUGGAN, 2017, p.58). Outras vítimas seriam o professor de Botânica, amigo de Lineu e membro da Royal Society de Londres Domenico Cirillo, e a jornalista Eleonora de Fonseca Pimentel. Fuzilamentos eram mais sugestivos que enforcamentos para uma plateia recém-saída da Segunda Guerra – apesar deste último ser o destino dos partisans antifascistas. 15 Um pequeno adendo é necessário para tratar da insinuação dos estrangeiros, especialmente os capitalistas anglosaxônicos, como ébrios, invertendo a propaganda hollywoodiana e a imagem concebida do Ocidente sobre o comportamento russo. É o caso de filmes históricos, como em Maksimka, 1952, de Vladimir Braun, quando o escravo Maksimka (Tolya Bovykin) serve ao capitão americano do navio negreiro em uma caneca. E é numa taberna num porto Japão que os ingleses usam a bebida para obter trabalhadores escravos, de qualquer origem e etnia, para seu navio. Em Admiral Ushakov [Almirante Ushakov], 1953, de Mikhail Romm, o primeiro-ministro britânico William Pitt, o Novo (Nikolay Volkov), precisa beber antes de tratar da ascensão marítima russa promovida pelo almirante Feodor Ushakov (Ivan Pereverzev) e Catarina II, a Grande (Olga Jiznyeva); em sua sequência, Korabli shturmuyut bastiony [Bastiões da tempestade dos navios], de Mikhail Romm, 1953, novamente Pitt está bebendo, bem como Ferdinando IV de Nápoles e Sicília (Sergey Martinson), o embaixador britânico em sua corte, William Hamilton (Iosif Tolchanov), o embaixador britânico em Constantinopla, Spencer Smith (Boris Bibikov), enquanto planejam desgastar a Rússia contra Napoleão e os otomanos. Apesar do almirante Horatio Nelson (Ivan Soloviev) ter inventado uma mistura de gim, soda e limão para limitar o escorbuto entre a tripulação, diante de sua brutal experiência caribenha, ele não bebe. O herói britânico é desconstruído com o fuzilamento de prisioneiros de guerra (sugestivo com os nazistas no pós-Segunda Guerra) e sua histórica ligação com Emma Hamilton (Elena Kuzmina), esposa de Sir Hamilton (VIDIGAL, 2013). Não seria impossível ao público ver Nelson como Hitler, abstêmio, sanguinário, irascível, obcecado – apesar de relutante, em virtude da estratégia política anti-russa imposta pelo aristocrático e sumamente interesseiro (a ponto de lançar a esposa como isca para o almirante britânico, seu amante) lorde Hamilton. A ligação amorosa impura com a mulher do embaixador inglês em Nápoles seria outro motivo para tal comparação - não seria a estrela loira do cinema soviético dos anos 1930 uma lembrança de Eva Braun, não assumida pelo Führer até a véspera de sua morte? O único par possível para Ushakov é Catarina - nesse caso, uma união política e casta sem outros fins além do engrandecimento e segurança da pátria-mãe. O que reforçaria a comparação deste com Stalin, que jamais possui família (passada ou presente) nos filmes. Uma vida integralmente dedicada ao país e a sua missão revolucionária.

16                    Além de Estados Unidos e Coreia do Sul, em 1951 as Nações unidas enviaram tropas da Austrália, Bélgica, Canadá, Colômbia, Cuba, Etiópia, França, Grécia, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Filipinas, África do Sul, Tailândia, Turquia e Reino Unido (CONDIT, 1988, p.58).

17                    Disraeli foi chamado na imprensa britânica de judeu traidor, judeu abominável, judeu arrogante, e nas revistas humorísticas e satíricas Fun, Punch, e Judy era exibido nas charges como um estrangeiro, anti-inglês, não-cristão

(apesar de batizado) e anticristão, um “judeu secreto”, o arquetípico criptojudeu, que precisava ser desmascarado para o público inglês, bem como suas políticas errôneas. Utilizava-se o preconceito casual e irracional para elaborar mentiras, causando um incremento perigoso do antissemitismo (WOHL, 1996). Temas candentes dentro do próprio eleitorado conservador, religioso, nacionalista e imperialista por vias militares do partido Tory de Disraeli. 18 Eduardo I expulsou os judeus da Inglaterra tão cedo quanto 1290. O país os receberia séculos depois, inclusive em uma onda na última década do século XIX. O primo de Darwin, Francis Galton, desenvolveu o termo e tornou a eugenia uma pseudociência, muito bem-recebida entre os neomalthusianos que formulavam ações anti-natalidade na colônia da Índia. O controle da natalidade (e de uniões) e outras ações eram aventadas como a panaceia para o problema da “degeneração racial”: a existência de pobres, alcoólatras, criminosos, deficientes físicos e mentais, imigrantes, minorias étnicas (ou no caso da Índia britânica, amplas maiorias), e outras variantes de indesejáveis. Nos Estados Unidos especialistas eugenistas seriam promovidos politicamente pela liderança, como sob o governo de Theodore Roosevelt (LEVINE, 2017, p.1-6; 12). EUA e Inglaterra foram por décadas os maiores promotores da eugenia, até a ascensão dos nazistas. “D. H. Lawrence [1885-1930, poeta e romancista britânico] era positivamente genocida na reação às massas: “se eu pudesse fazer as coisas a meu modo, construiria uma câmara letal tão grande quanto o Palácio de Cristal, … depois sairia pelas ruas secundárias e ruas principais e os traria, todos os doentes, coxos e aleijados””. Um eugenista, o dr. John Berry Haycraft, louvou a tuberculose em sua obra Darwinism and Race Progress, de 1895, comentando: “Se nós erradicarmos as doenças infecciosas, perpetuaremos esses pobres tipos” (MORLAND, 2019, p.55-105). 300 mil pessoas morreram de fome nas colônias europeias no Norte da África entre 1866-68; esta, tão tarde quanto a década de 1920, ainda reduzia a população da Índia Britânica (MORLAND, 2019, p.260; 296).

19 Ao mesmo tempo que alinhado às exigências do regime, Geroi Shipki pode ocultar uma das primeiras críticas ao stalinismo. A historiografia oficial passou a apresentar uma linha de progresso da era dos czares ao stalinismo, que a amputou dos problemas e introduziu melhorias. Até o momento em que historiadores liberais soviéticos (e futuros políticos neoliberais) utilizaram o marxismo para apresentar uma imagem de atraso e opressão nessa mesma linha antes evolutiva e idílica, durante a perestroika (DAVIES, 1991, p.31-35). A reabilitação dos grandes monarcas pelo conservadorismo e nacionalismo stalinistas não foi total. Filmes como Piotr Pervyy [Pedro I, ou Pedro, o Grande], 1937, e Admiral Ushakov, apresentavam o czar Pedro e Catarina II como construtores do Estado russo, porém aristocráticos, elitistas, defensores da hierarquia e separação física de classes, distantes do povo. Como o conde Mordovtsev no mesmo filme sobre Ushakov. Quando se torna chefe do Conselho do Almirantado do Mar Negro e suprime a inovação tática e proximidade com os marujos instituídos pelo almirante: “o oficial tem voz. O contramestre tem um cachimbo. E o marinheiro é apenas matéria para execução de comandos”. Czares menos importantes e os ancestrais imediatos de Nicolau II não desfrutaram da mesma sorte. Além daqueles pontos negativos e outros novos, acrescia-se sobretudo a incompetência. Assim o duelo Paulo I e Suvorov, em Suvorov, 1940, deixa claro que Suvorov defende a pátria contra os agressores e os falsos aliados, todos ocidentais, contra o inepto Paulo I que põe tudo a perder. Novamente um cenário que se adapta ao discurso de Stalin e às condições diplomáticas da isolada URSS. O conde Aleksandr Suvorov é apresentado como um homem do povo, assim aproximando-se da imagem da liderança de Stalin. Os filmes traziam um líder popular de fato e um falso líder, sem comando real. Geroi Shipki alterou esse sistema. Um grupo de hábeis generais - Mikhail Skobelev (Evgeny Samoilov), Iosef Gurko (Sergey Papov) e outros - se confronta com o czar Alexander II (Ivan KononenkoKozelsky), e seus péssimos generais da corte - como o Grão Duque Nikolai Nikolaevich (Alexey Savostyanov), que tornam o conflito moroso, possibilitando a articulação inimiga. O choque entre esses dois grupos poderia sugerir o de Stalin e seus generais como Pavlov, Voroshilov, Timoshenko e Vlasov e os comandantes capacitados encabeçados por Jukov, Chuikov, Koniev, Rokossovsky. O primeiro marco da desestalinização nas artes é o livro de 1954 O degelo, do importante escritor, propagandista e jornalista judeu-soviético Ilya Ehrenburg, em que mostra um tirânico chefe de departamento - que representa o próprio líder recém-falecido. Geroi Shipki talvez seja o primeiro filme a dessacralizar sutilmente a imagem de Stalin como líder militar na Segunda Guerra. Apesar do foco deste artigo ser o adesionismo, isso mostra, como Ferro (1976, 1992, 2008) argumenta, que o cinema pode conter mensagens latentes difíceis de controlar. Korabli shturmuyut bastiony, involuntariamente, também traz o problema ainda recente da forma em que se deu a libertação da Europa dos nazistas. Durante a libertação de Corfu dos franceses ocorrem problemas semelhantes aos de Berlim e da Prússia. No entanto, o russo estava apenas bêbado, enquanto era o aliado turco que violava as ilhoas. Metaforicamente, o cinema soviético procura apontar para a conduta franco-anglo-americana na Alemanha e a americana na França e se desculpar ou ocultar suas ações similares, o que apenas chama a atenção para a lembrança das mesmas. 

 

Anexos

 

Fig.1. Napoleão III gesticula como Hitler. Disraeli ao lado de um imenso globo, como Hitler posava em sua Neue Reichskanzlei. ADMIRAL..., 1946; GEROI..., 1954.

Fig.2. Acima, referências bíblicas contra Disraeli (como um assírio, em holocausto, e como lúcifer expulso do céu); Fun, 1870; Illustrated, 1881. Funny Folks, 1876. Abaixo, como Hécate, a deusa grega da magia – mas que aqui mais se parece com o demônio no shabat judaico ou o sabbath das bruxas, e Disraeli acompanhado do demônio no vagão; Alice through the looking-glass. WOHL, 1996, p.110; 111; 113.

 

 

Fig.3. Disraeli como simiesco e estereotipado como judeu frente (ou atrás, no guarda-chuva) ao etnicamente anglosaxônico e rival whig Gladstone, Punch, 1878; London Sketch Book, 1860. Ao lado, os traços semíticos inflados pela caricatura da Vanity fair, 1869. Disponível em: http://www.punchcartoons.com/index.html; https://www.corbisimages.com. Disraeli como o não-inglês diante de Gladstone, como Guilherme, o Conquistador; sobre a conquista pela Grã-Bretanha do Chipre otomano em 1878, Disraeli, como conde (e Gladstone, imperialista comercial, como bobo), a Vênus de Chipre, que conspurca o ideal de beleza clássico, Fun, 1880, Fun, 1878. Disponível em: http://www.punchcartoons.com/index.html.

 

 

Fig.4. Disraeli como o mercador oriental (e o mercador judeu, apesar da roupagem das Mil e uma noites), vendendo a coroa da Índia à Victoria, e ganhando da nova imperatriz o título de conde – em mais uma insinuação judaizante, em charge da Punch, 1876. WOHL, 1996, p.103. Disponível em: https://jewishmuseum.org.uk/50-objects/jm-687.

 

 Fig.5. Acima, Disraeli em tons avermelhados em Geroi Shipki. No meio e abaixo, a transição demoníaca em Prjevalskiy. GEROI..., 1954; PRJEVALSKIY, 1951.

 

 

Fig.6. Acima, Willian Pitt como protótipo de polícia do mundo; no centro, a Inglaterra procura ocupar tal espaço atacando a Crimeia, 50 anos depois; abaixo, a nova polícia do mundo trafica e escraviza povos do futuro Terceiro Mundo, na África, Ásia e América Latina, e é atrapalhada em seus planos pela Rússia desde o século XIX. ADMIRAL..., 1953; TAINSTVENNAYA..., 1953; MAKSIMKA, 1952.

 

 

Fig.7. Falsos aliados manobram para enfraquecer e destruir a Rússia em guerras enquanto apoiam em segredo aquele que deveria ser o inimigo em comum. O casal real do Reino das Duas Sicílias e britânicos procuram tomar Corfu dos russos. Abaixo, “Inglaterra, França, Turquia, todos amigos...”. KORABLI..., 1953; ADMIRAL..., 1953.

 

Creative Commons License  Este trabalho está licenciado sob a licença Creative Commons Attribution 4.0 International License (CC BY 4.0)

 



[1] Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professora da SEED-PR. Brasil. E-mail: gelise.ponce@yahoo.com.br.

[2] Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pósdoutorando pela UFPR, professor da SEED-PR/funcionário da seção de História do NRE de Campo Mourão. Brasil. E-mail: mw.franciscon@hotmail.com.