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Religião e religiosidade católica no Brasil contemporâneo: entrevista com a professora
Dra. Solange Ramos de Andrade
Kelly Caroline Noll da Silva
1
“Multifacetado, complexo e multidisciplinar”, é assim que a professora Solange Ramos
de Andrade define o campo de estudos da História das religiões e religiosidades no Brasil. Na
manhã do dia 21 de outubro de 2020 conversamos com a professora sobre temas que tocam o
contexto religioso e a expressão da religiosidade católica no Brasil e na América Latina
atualmente. A entrevista foi realizada através de chamada de vídeo, ferramenta que vem sendo
muito valorizada em tempos pandêmicos e que tem permitido a realização de diálogos
profícuos, mesmo que distantes fisicamente.
A professora Solange comentou sobre a importância do desenvolvimento dos programas
de pós-graduação para a consolidação de pesquisas na área de história das religiões e
religiosidades no país. Também foram temas da nossa conversa o pluralismo religioso, a crise
no processo de institucionalização e as alterações no conceito de comunidade religiosa que vêm
sendo colocado em xeque por conta do isolamento social causado pela Covid-19. O destaque
dado para a juventude católica pelos últimos três papas, as tensões e disputas narrativas entre o
discurso eclesiástico e as manifestações da religiosidade católica, bem como as possibilidades
e os desafios na utilização de documentos eclesiásticos enquanto fonte de pesquisa foram
igualmente abordados.
A atividade avaliativa proposta na disciplina de “História do Tempo Presente: Teoria e
Historiografia acabou sendo apenas uma desculpa para ouvir a professora compartilhando suas
experiências de pesquisa com o tema da religiosidade católica, ao qual é referência para tantas
pesquisadoras e pesquisadores. Graduada, mestra e doutora em História pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Solange atualmente é professora associada
da Universidade Estadual de Maringá (UEM), onde também é docente do ProfHistória e do
Programa de Pós-Graduação em História. Editora da Revista Brasileira de História das
Religiões, ao longo de sua trajetória profissional, tem se dedicado em suas pesquisas a pensar
a História da Igreja Católica, da religiosidade católica e do discurso eclesiástico.
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Doutoranda no Programada de s-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH-
UDESC). Bolsista CAPES. E-mail: kellycarolinen@gmail.com.
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1) Gostaria de iniciar a entrevista pedindo para a professora falar sobre o campo de
estudos da História das religiões e religiosidades no Brasil. Em artigo publicado em 2008
a senhora discorreu sobre como até a década de 1980 outras áreas das ciências humanas
pesquisavam mais o tema das religiões do que historiadoras e historiadores, como observa
este cenário atualmente?
Eu não desenvolvi porque não era esse o objetivo do artigo, a ideia era mais justificar a
própria abordagem do objeto. Mas se nós pensarmos por que a partir da década de 1980 é que
o historiador começou a pensar essas questões, nós vemos que esse modelo de análise centrada
nas religiões e religiosidades partiu principalmente de duas tendências historiográficas: a
história social inglesa e a terceira geração dos Annales. Não vou colocar a primeira geração
porque, no Brasil, primeiro os programas de pós-graduação leram a terceira e a segunda geração
dos Annales para depois trabalharem efetivamente com a primeira. Mesmo assim, Marc Bloch
e Lucien Febvre abordam algumas categorias que nos ajudam a pensar as manifestações
religiosas. O Febvre com a biografia de Lutero e o Bloch com os Reis Taumaturgos, por
exemplo.
No caso da terceira geração dos Annales, a história das mentalidades vai oportunizar
uma abordagem de crenças e comportamentos coletivos na longa duração. No início dos anos
1990 nós vamos perceber vários trabalhos realizados a partir dessa abordagem, inclusive a
minha dissertação de mestrado, que se insere na área de história das mentalidades por conta de
pensar crenças e comportamentos coletivos na longa duração. O interesse de pensar essa
imaginação popular, pensando no Vovelle, em pensar as crenças e práticas coletivas, pensando
na história das mentalidades e, principalmente, o interesse que a história passa a ter em fins dos
anos 1980 e início dos anos 1990 sobre pesquisar maneiras de viver, de relacionar das pessoas
comuns, fez com que inúmeros estudos fossem realizados sobre minorias, marginalizados,
atitudes mentais, comportamentos coletivos, e o estudo das religiosidades entram nessa
perspectiva. Daí a importância, por exemplo, de alguns temas vinculados a esse caráter da
religiosidade, essa fuga do aspecto institucional, essa profusão de objetos que vão fazer, por
exemplo, final dos anos 1980 e início dos anos 1990, se falar não apenas das religiosidades,
mas de todo um contexto e de temas que antes não faziam parte dessa perspectiva
historiográfica do Brasil e que passam a existir. Como a história do medo, onde Delumeau vai
ser uma leitura importante, a história do corpo com a Mary Del Priore e a história dos odores
pensando no Alain Corbin.
No caso da história social inglesa acho que dois autores foram fundamentais,
principalmente porque eles permitiram analisar os movimentos sociais presentes nas
manifestações religiosas. Primeiro o Thompson com a categoria de experiência, e depois o
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Hobsbawm com a invenção da tradição e que nos ajuda também a pensarmos em alguns
modelos de santidade, principalmente quando se analisa santidades mais marginais. Mas
fundamentalmente, a obra de Thompson que aparece no Brasil em 1987 e a de Hobsbawm que
aparece em 1984 vão permitir, por exemplo, o trabalho da Zilda Iokoi sobre movimentos sociais
católicos e sobre os estudos dos messianismos.
Esse panorama geral ajuda a pensarmos especificamente o caso do catolicismo. Até a
década de 1980 nós vamos encontrar um interesse dos historiadores voltado para a história das
relações políticas e institucionais da Igreja, principalmente para as relações entre Igreja e
Estado. Nesses estudos, o Estado aparece como primeiro foco e a Igreja é secundarizada. A
partir dessa perspectiva vamos pensar as relações de poder e as relações político e sociais dessa
relação da Igreja institucional com o Estado.
A partir da década de 1980 vão surgir trabalhos com a ênfase nos comportamentos e
atitudes de determinados grupos religiosos. É quando os historiadores vão se interessar, por
exemplo, pela antropologia religiosa para analisar os rituais, as práticas religiosas e o
comportamento das pessoas diante do fenômeno religioso. Então a partir desse momento a
história vai se aproximar da antropologia, sociologia, filosofia, teologia, geografia, literatura
etc. e nós vamos encontrar vários procedimentos metodológicos para analisar os fenômenos
religiosos. Na esteira de toda essa questão, de todo esse contexto, nós vamos ver a noção de
documento histórico ampliada, porque a partir do momento que esses objetos surgem, a
necessidade de procurarmos documentos para respaldar nossas pesquisas aumenta. Só que nós
não trabalhamos com isso, então precisamos dos trabalhos desses antropólogos, sociólogos etc.
Então quem trabalha com religiões e religiosidades não tem como se furtar de fazer um trabalho
transdisciplinar. Esse é um dos primeiros aspectos que quem vai pesquisar religiões e
religiosidades no Brasil se depara, porque nós vamos encontrar uma produção consistente da
historiografia no final dos anos 1980 com o desenvolvimento dos programas de pós-graduação,
dos grupos de pesquisas e dos locais para publicarmos nossos trabalhos.
Algo que eu identifiquei e que é extremamente interessante nas pesquisas sobre religiões
e religiosidades do início dos anos 1990, é que se você pega os trabalhos da Laura de Mello e
Souza, do Ronaldo Vainfas, desse pessoal que estava publicando nos anos 1980 e que vão
abordar de uma certa maneira a História da Igreja Católica no Brasil, qual é o documento, a
obra que eles encontram? Eles vão para os teólogos. E você encontra, por exemplo, na Laura
de Melo e Souza, o teólogo Eduardo Dougherty. A história da Igreja reproduzida por eles era
uma história teológica. Então mesmo no caso da Laura de Mello e Souza, que vai trabalhar com
a religiosidade colonial e que vai utilizar o conceito de circularidade cultural para pensar quando
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o catolicismo chega ao Brasil, os teólogos são utilizados. Vários autores vão fazer isso, porque
a história da Igreja Católica no Brasil até os anos 1980 era escrita majoritariamente por teólogos.
É preciso ter cuidado quando for pesquisar ou ler alguma coisa. Leiam sabendo que esses
autores são leitores de teólogos também.
Se pensarmos hoje em quais são os autores que influenciam sobremaneira as religiões e
religiosidades, citaria o Michel de Certeau, a Laura de Mello e Souza, o Guinzburg, o Peter
Berger pensando o hibridismo cultural, os trabalhos do Bourdieu, principalmente aqueles
vinculados as instituições, e outros autores que vão pensar esse processo de assimilação e
apropriação. Nós também teremos uma diversidade maior de pesquisas e de objetos e o
descentramento da pesquisa do catolicismo. Passam a existir muito mais outros objetos e outras
crenças a serem analisadas. Ainda que as pesquisas sobre Igreja Católica e suas derivações
sejam majoritárias, nós encontramos pesquisas sobre algumas instituições protestantes
tradicionais e neopentecostais. A questão das religiões mediúnicas, vamos pensar no
espiritismo, no candomblé, na umbanda e em todas as manifestações religiosas que fogem a
qualquer vínculo institucional e que possuem suas próprias regras. É um campo multifacetado,
complexo e multidisciplinar que abriga inúmeras formas e possibilidades de estudo. Reforço
que os programas de pós-graduação é que vão firmar o estudo sobre as mais variadas
manifestações das religiões e religiosidades. Também as associações, de História das Religiões,
o GT de História das Religiões e Religiosidades da ANPUH, os grupos, por exemplo, de
História do catolicismo, a religiosidade indígena, os neopentecostais, enfim, várias
possibilidades.
2) Considerando o pluralismo religioso presente na contemporaneidade, de que forma a
professora tem compreendido o contexto religioso e a expressão da religiosidade católica
no Brasil e na América Latina?
Essa pergunta devia ter sido feita ano passado antes da pandemia e agora. Porque no
contexto atual esse pluralismo religioso se acentuou, e esse processo de institucionalização está
caminhando para uma crise. Eu acho que existe um processo de valorização de uma
religiosidade mais interna. Durante o isolamento, as pessoas não podiam ir para o Templo, para
a Igreja, para a Mesquita, para a Sinagoga, o espaço de devoção dessas instituições ficou restrito
da mesma forma que aquelas não institucionais. Então tudo começou a ser feito via web. A
partir disso, eu penso que nós teremos uma mudança muito grande nessa perspectiva, então vou
tentar falar para você o que eu penso em termos de instituições hoje.
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Nós vemos essa crise de atribuições de sentido e vamos perceber que as instituições
tentam lidar com essas manifestações mais íntimas de crenças. A Igreja Católica, que é onde
eu consigo ter uma visão mais ampla no interior dessa instituição, várias vertentes
institucionais buscam atingir determinado público, e para isso elas se especializaram. Existe
uma hiper especialização, por exemplo, na Renovação Carismática Católica (RCC), que
privilegia a família. Mas fundamentalmente quem nessa família? Que tipo de diálogo ela
estabelece? Para quais pessoas? A grande sacada de hoje, é que quanto mais jovens uma
instituição agregar, mais possibilidades de manutenção e de sucesso ela terá. O apelo a tradição
e as formas tradicionais de devoção não são mais o foco de adesão religiosa. É por isso que as
instituições tradicionais patinam um pouco, porque elas não conseguem identificar isso um
bom tempo. A Igreja Católica tenta a partir das mídias, de algumas figuras, de alguns padres,
que tenham um apelo maior e que tenham um carisma tanto para atingir o católico tradicional,
como o católico jovem. Aquele que é católico por tradição tem que ser convencido a ser católico
por adesão.
Pensando pós-pandemia, acho que a grande questão seria como a religiosidade está a
ser vivida por essas pessoas. Mês passado um orientando meu defendeu, ele trabalhou com a
festa do Divino em Ponta Grossa
1
. Como a festa não pôde ocorrer este ano, eles fizeram todos
os cultos e todo o rito via internet. As pessoas estavam em casa compartilhando de determinados
momentos, não estavam mais lá compartilhando as sensações de estarem junto aos seus. Então
o conceito de comunidade religiosa está sendo colocado em xeque, está sendo questionado. O
que é hoje uma comunidade religiosa? E aí eu nem sei o que vai acontecer com os santinhos. A
Romaria a Aparecida no dia 12 de outubro, por exemplo, algumas pessoas foram, mas a maioria
não. Então fica essa questão, como esses santuários se organizam e como estão se organizando
para a manutenção dessa crença.
3) Poderíamos pensar num perfil do que significa ser santo no Brasil e na América Latina
atualmente? Entendendo que os modelos de santidade se atualizam conforme as
demandas sociais, políticas e culturais, esse perfil estaria atravessado por questões de
raça, gênero e classe?
Sempre. Tudo depende de qual é o objetivo. Nós podemos pensar principalmente entre
João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013), mas o Papa Francisco (2013 ) também
segue muito dessa tendência. Em primeiro lugar, o destaque que foi dado ao martírio. O modelo
de santidade, o grande modelo, ainda é o mártir, que é aquele que provoca uma maior
identificação. O mártir agrega violência, sofrimento e esperanças comuns. Seja esse rtir
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canonizado, beatificado ou esse mártir que nunca será qualquer coisa desse tipo, acho que ele
continua sendo o grande modelo. Isso porque sofrimento, violência, a associação com a pureza,
com a classe social, com o gênero e com a etnia, tem tudo a ver. Principalmente com algumas
minorias que precisam ser destacadas e com maiorias que são invisíveis. Porque a gente fala
muito em minorias, mas e as maiorias invisíveis? O mártir acaba representando muito essas
maiorias invisíveis.
Vamos pensar na RCC, a perspectiva mariológica dela é muito grande. Por que Maria?
Por que a necessidade de recorrer a proteção de Maria e por que pensar nessa mulher a partir
de algumas características de santidade? Porque essa perspectiva mariana vai percorrer algumas
santidades femininas: a da mãe, aquela que luta, mas que também aceita o seu próprio momento.
Ao mesmo tempo, nós temos uma Albertina Berkenbrock, que é uma criança, é vista como uma
criança, uma menina que foi vítima de uma violência enorme e essa violência é importante no
processo de adesão à fé. O devoto da Albertina vai em função da violência e é confrontado entre
a violência, a beleza, a santidade e a pureza. Então em que consiste essa devoção a partir dessa
perspectiva para quem crê, como essa leitura é feita pela Igreja Católica? O que é caracterizado,
que é algo que eu falo sempre, é que a questão colocada é a de gênero, mas ela antecede ao
gênero, porque a violência contra meninas acontece o tempo todo.
4) A professora conceitua como religiosidade católica todas as manifestações que
envolvem crenças e práticas ligadas ao catolicismo, sejam institucionalizadas ou não.
Também observa que para o devoto pouco importa o reconhecimento oficial ou não da
santidade dos santos cultuados. Nesse sentido, na sua avaliação, as beatificações e
canonizações realizadas pelos pontífices intervêm nas devoções e identificações dos fiéis?
Sim, intervém porque essas devoções existem, estão lá. Algumas devoções são
muito tímidas, nesses casos elas conseguem criar uma tal visibilidade graças à intervenção dos
pontífices. Por exemplo, existe uma devoção à Santa Paulina, mas após a canonização o lugar
se transformou em outro, em uma outra estrutura. Existe uma estrutura institucional que
permite, digamos, mais adesão àquele tipo de devoção, que é o objetivo mesmo da instituição.
“Qual o modelo de santidade, de comportamento e de conduta que nós utilizaremos para
representar aquela região?” É estratégico, não tem nada de tático.
E principalmente, ao canonizar, você institucionaliza um culto que pode fugir ao
controle, que pode ser desenvolvido de uma outra forma. Se bem que eu não vejo hoje a Igreja
Católica querendo tomar o controle dessas devoções, da forma como fez no passado. Mas vejo
a necessidade de criar um contraponto para outras devoções regionais que nunca serão matéria
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nem de consulta, de debate, nada. Que são aquelas santidades, sobretudo santidades femininas,
que são associadas a prostitutas, por exemplo. Se você busca por regiões, as mulheres que foram
mortas de forma violenta em algum momento, mesmo não tendo nada a ver com isso, elas
passam a ser associadas a prostitutas. Esse tipo de devoção não interessa a instituição. No
entanto, numa região que tem uma devoção muito forte a esse tipo de santidade, a Igreja diz:
“olha, nós temos uma santa que está lá, que tem o seu santuário, que tem a romaria, que
representa o inverso e faz o mesmo tipo de milagre, concede as mesmas graças”.
A difícil penetração da Igreja Católica em determinados países e regiões, por exemplo,
ou a necessidade de uma maior reorganização institucional, também diz muito sobre as
nacionalidades desses santos.
5) No artigo publicado que trata da “Religiosidade católica e a santidade do mártir”, a
professora afirma que para a religiosidade católica o único especialista seria o santo,
enquanto para a instituição, o especialista seria o intermediário dessa relação com o
sagrado, ou seja, o sacerdote. Como identifica essas tensões e disputas narrativas entre o
discurso eclesiástico e as manifestações da religiosidade?
É interessante isso, se nós voltarmos para meados dos anos 1960, pós Concílio Vaticano
II (1962-1965), pós Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano de Medellín (1968),
de Puebla (1979), principalmente, pós Conferência de Aparecida (2007), nós não vamos
encontrar um discurso institucional de condenação a essas devoções marginais, limiares. Essa
religiosidade católica será utilizada como uma forma de penetração nesses grupos, então muitos
padres, inclusive do interior, vão aceitar, por exemplo, rezar uma missa no dia de romaria ao
cemitério de um santo. Aí você pergunta para o padre: “mas padre, porque rezar uma missa no
cemitério, no dia da devoção de um santo que nunca será canonizado? De um santo de
cemitério?” E ele responde: “não, eu estou rezando pelos mortos”. A instituição está ali,
atuando. Então como o pesquisador esse tipo de coisa? Esse tipo de conduta? É uma
instituição que se aproxima e ao mesmo tempo se distancia. Ela se aproxima por esse lado:
“olha então é uma missa em homenagem aos mortos, a gente não pode negar, estamos ajudando,
coletando doações para um determinado tipo de instituição católica”. O confronto se no
discurso, no peso discursivo da instituição, mas é um peso discursivo que não ofende e não
proíbe, apenas induz.
É muito interessante, a Igreja Católica tem uma cautela muito grande com relação a
devoção, ela não aceita, mas não se pronuncia publicamente. Todas as vezes que eu tentei
conversar com algum membro da Igreja sobre alguma devoção, principalmente sobre algum
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santo de cemitério, eles desconversaram. Eles muitas vezes falam: “olha, o pessoal acredita, o
pessoal é carente”. Na minha tese eu coloco assim: se em um primeiro momento as pessoas que
aderiram a essa crença, a crença nessa santidade, são avaliadas como ignorantes, em um
segundo momento elas o avaliadas como alienadas. Não se fugiu disso ainda. Essa é a grande
estratégia institucional, ela não vai acabar com essas devoções, ela sabe. Então como atuar
de uma maneira para interferir no processo? Para estar por ali? E você começa a ver a
presença dos padres. Eu vejo dessa maneira, aliás, nos estudos que tenho feito vários anos,
não consegui perceber um discurso violento, de 1965 até hoje.
6) Tendo também como referência o artigo citado na pergunta anterior, a senhora
menciona a valorização do martírio nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI e a
importância da figura do mártir no contexto estratégico da Igreja Católica em procurar
estar cada vez mais inserida no mundo moderno. Poderia falar um pouco mais sobre esse
contexto e as estratégias adotadas pela instituição a partir do final do século XX?
Sobretudo sobre àquelas relacionadas aos modelos de santidade estabelecidos e a
preocupação demonstrada com a juventude.
Acho que respondi um pouco sobre a questão do martírio. Sobre os jovens, se
pensarmos o final do século XX e a importância dada a eles, primeiro com João Paulo II e que
é continuada tanto com Bento XVI, quanto com o Papa Francisco, nós temos como estratégia
as Jornadas Mundiais da Juventude.
Mas e por que os jovens? Porque descobriu-se que o catolicismo é uma religião cristã
de velhos. O cristianismo é uma religião de velhos e o catolicismo é uma denominação de
velhos. Como fazer com que o jovem volte? Quais são os modelos que inspiram a juventude?
E, principalmente, não apenas um modelo que inspire o jovem a vir para a instituição, mas
como ele deve ser: não é qualquer jovem, é o jovem católico, aquele que comunga com o
catolicismo e, nesse sentido, novamente, o mártir é o mais indicado. Porque a associação que o
jovem faz com padres, com freiras, com o clero regular e secular, é muito distante. E
principalmente, a mensagem mais poderosa para essa juventude quando se cria um modelo de
santidade que é aspirado por todos, é que essa santidade não é específica do mártir, mas que
todos podem alcançar. Então você não precisa mais ser um santo mártir para ser santo, você
pode aspirar a santidade seguindo alguns princípios. Essa questão é muito importante para
pensar a juventude, ser santo em vida.
Mas como é que eu posso aspirar a essa santidade sem precisar morrer de forma violenta,
sem precisar sofrer, ou seja, o que é isso? O discurso desse convite a santidade, para a juventude,
é muito forte. Tanto é forte que você pode ver várias denominações pentecostais e
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neopentecostais criadas exclusivamente para jovens. E o que é discutido e colocado é a
valorização da castidade, da virgindade, a importância do casamento, da maternidade, da
paternidade e das ações sociais. Tudo sendo colocado como práticas rumo à santidade. Esse é
o chamado a santidade que João Paulo II, Bento XVI e Francisco fazem.
7) É muito característico da História do Tempo Presente a abundância e pluralidade de
fontes, bem como a facilidade no acesso, considerando a variedade de arquivos
digitalizados e disponibilizados de forma online. Nesse sentido, o site do Vaticano
apresenta para acesso público uma série de documentos eclesiásticos, entre eles
hagiografias, homilias, discursos e pronunciamentos dos pontífices, muitos deles
utilizados por você em pesquisa. Para finalizarmos, poderia falar um pouco da sua
experiência ao trabalhar com esses documentos e a metodologia utilizada para a escolha
e catalogação desse material? Também se a senhora puder indicar temáticas que ainda
carecem de atenção e poderiam ser exploradas em futuras pesquisas.
falei de algumas. Os documentos do site oficial do Vaticano são muito legais, porque
são documentos que não tem interpretação, eles foram redigidos e estão ali. Possuem a tradução
(e toda tradução implica em interpretação), mesmo assim, se você pega o original, você
consegue perceber que as traduções são relativamente fiéis ao original.
O que eu tenho feito e acho importantíssimo é pegar todo o tipo de documentação
existente sobre um determinado assunto. Então em primeiro lugar eu faço uma abordagem
temática. A partir da abordagem temática eu divido os tipos: se é comunicação, encíclica,
mensagem, ou homilia, porque existe um conceito da declaração do Vaticano com relação a um
determinado assunto. A encíclica, por exemplo, é algo muito legal, porque é uma resposta a um
determinado tema presente. Então as encíclicas têm a função de responder algumas questões
existentes naquele momento histórico. Quando você pega a “Fé e Razão do João Paulo II”
2
em fins do século XX, toda aquela discussão de crise e de paradigmas do retorno do religioso
possui uma discussão interessantíssima. É importante também não esquecer que o documento
oficial da instituição e a instituição católica possuem como característica a perspectiva
teológica, o respaldo é sempre teológico. É sempre com base em outros pronunciamentos,
outros documentos, e principalmente, documentos sagrados.
Se você pega, por exemplo, o documento da Congregação da Doutrina da Fé,
3
a forma
como esses teólogos respondem a determinadas questões, abordam determinados problemas,
dão condições de percebermos como a Igreja Católica se posiciona atualmente com relação a
vários pontos. Encontramos isso se analisarmos os papas mais recentes, no entanto, existem
documentos muito mais antigos que nos ajudam a pensar também alguns momentos históricos.
Por exemplo, eu desenvolvi uma pesquisa sobre indumentária e religião e comecei a perceber
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que nos últimos anos proliferaram sites de moral e conduta cristã, principalmente sobre
modéstia cristã, como um manual da modéstia cristã no culo XXI que informa como a católica
deve se vestir em casa, como ela deve se comportar na rua, a modéstia no falar, no vestir, no
comportamento etc. Eu trabalhei com alguns manuais de civilidade católica do início até
meados do século XX e vários manuais foram publicados, traduzidos nesse período sobre o que
era ser católica. A minha preocupação não era, por exemplo, as filhas de Maria, mas sim a moça
católica comum. Sobre isso, eu encontrei várias matérias em revistas e periódicos católicos,
mas também em outras revistas que circulavam no período. Por exemplo, o Jornal das Moças:
“como você deve se vestir, como vodeve se comportar e qual é o perigo dessas roupas, dessa
moda”. E buscando no site do Vaticano eu encontrei inúmeros documentos, inúmeras
referências, até mais ou menos meados dos anos 1960, sobre civilidade católica e sobre
modéstia.
Existe uma profusão de temas. Essa questão da civilidade e da modéstia é um objeto
muito interessante porque faz um cruzamento com a história das mulheres, com a história da
indumentária e com a história das religiões e religiosidades. Tem links para a História do
Tempo Presente que também são muito interessantes, até para você pensar a sua juventude.
Porque o jovem tem que se vestir, tem que se comportar e os manuais de civilidade caíram em
desuso. No entanto, os sites estão cumprindo o papel dos manuais de civilidade, se você olha o
Pinterest, se você procura sites católicos, blogs, você vai encontrar inúmeras referências.
Sobre santidade, estou partindo para uma pesquisa que eu gosto muito e que está se
desenvolvendo que é relacionar santidade católica no Brasil e na América Latina de uma
maneira geral. Até mesmo para entender como ocorre esse movimento e que santos são esses
que circulam na América Latina. Num primeiro momento eu começo com a Argentina e
trabalho, por exemplo, com o Gauchito e com alguns santos que tem peregrinação e formas de
devoção muito próximas da santidade e dos santos de cemitério no Brasil. Essa é a pesquisa
que eu tenho desenvolvido agora sobe religiosidade na América Latina, mas começo com a
América do Sul, vou para Argentina, Chile, pego um pouco o Paraguai. Ou seja, vou tentar
fazer um mapeamento desses santos, dessa santidade, na Argentina nesse primeiro momento.
Em resumo, esse tipo de catalogação, de documentação do Vaticano é muito importante,
principalmente para quem trabalha com a Igreja Católica. Não tem como se furtar a pesquisar
os documentos. As vezes o pesquisador trabalha com um documento que foi analisado e
trabalha com algumas referências partindo da análise de outo. O que eu acho interessante é
buscar realmente, fazer esse trabalho de garimpagem, porque o repositório é enorme. Como o
meu objetivo não é trabalhar com o documento em si, mas sobre alguns temas tratados no
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documento, eu caracterizo o tipo de documento, mas fundamentalmente eu procuro fazer uma
abordagem temática, poque é muita coisa. Se você não for para essa documentação pelo menos
com uma diretriz, você se perde.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Solange Ramos de. A religiosidade católica e a santidade do mártir. Projeto
História, São Paulo, n. 37, p. 237-260, 2008. Disponível em: <
https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/3054 >. Acesso em: 01 dez. 2020.
ANDRADE, Solange Ramos de. A religiosidade católica no Brasil a partir da Revista
Eclesiástica Brasileira. Revista Brasileira de História das Religiões, v. 1, p. 78-117, 2008.
Disponível em: < http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/article/view/26644 >.
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Recebido em 27/11/2020.
Aceito em 10/12/2020.
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