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Os desafios do tempo presente e a colonialidade da natureza: intersecções para pensar
novas sociabilidades
Present time’s challenges and coloniality of nature: intersections to think new
sociabilities
Natalia Ferreira
1
Resumo
Este artigo intenciona introduzir e aprofundar
discussões sobre a colonialidade e seus aspectos
inseparáveis, demonstrando as sobreposições
das opressões da Matriz Colonial do Poder a
partir da análise de linguagens e hábitos
recorrentes e naturalizados em nossa sociedade.
Tal intenção dialoga com as demandas postas
pelo presente, no que diz respeito especialmente
às mudanças climáticas, pandemias, violências
de gênero, soberania alimentar, racismo
ambiental e direitos da natureza. Serão
analisadas fontes jornalísticas e publicitárias de
cunhos distintos, a fim de demonstrar a
complexidade da intersecção entre sexismo,
racismo e especismo, utilizando dos conceitos
do pensamento decolonial e do ecofeminismo,
propondo uma alternativa que intenciona
superar os problemas verificados através da
educação, sensibilizando para a alteridade e
despertando uma ética de cuidado.
Palavras-chave: Colonialidade; Linguagem;
Direitos da natureza.
Abstract
This article aims to introduce and deepen
discussions about coloniality and its inseparable
aspects, demonstrating the overlapping of the
Colonial Matrix of Power’s oppressions, from
the analysis of recurrent and naturalized
languages and habits in our society. This
intention dialogues with present’s demands,
regarding especially climate changes,
pandemics, gender violence, food sovereignty,
environmental racism and nature’s rights.
Different subjects of journalistic and
advertising sources will be analyzed, intending
to demonstrate the complexity of the
intersection between sexism, racism and
specism, using the concepts of decolonial
thinking and ecofeminism, therefore proposing
an alternative that intends to overcome the
verified problems through education,
sensitizing for otherness and awakening a care
ethics.
Keywords: Coloniality; Language; Nature’s
rights.
Pensando uma categoria subversiva
Quando me lancei à tarefa de analisar casos de violência de gênero algumas lacunas se
impuseram, como por exemplo a ausência de uma categoria de análise que não considerasse
somente o recorte “mulher” como vítima, mas também se atentasse ao grupo LGBTQIA+ e aos
recortes de classe e “raça” (uso aspas pois concordo com Aníbal Quijano e Achille Mbembe
quanto à ficção deste conceito e à não existência de raças humanas distintas). Encontrei no
pensamento decolonial e no ecofeminismo uma vastidão de conceitos, análises e possibilidades
1
Natalia Ferreira é licenciade em História (UCS) e mestrande em História do Tempo Presente (UDESC). E-mail
para contato nferreira1@ucs.br.
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que me levaram a pensar na criação da categoria “não-homem”, considerando que este seja o
homem branco, cisgênero e heterossexual; por esta razão, utilizo uma linguagem de gênero
neutro quando aplicável. Para pensar tal categoria, me apoio no trabalho de Jacques Derrida
quando se deu aos estudos de gênero; Derrida formulou a ideia da existência de uma
subjetividade carnofalogocêntrica compartilhada pelos sujeitos imersos nas culturas e tradições
ocidentais e ocidentalizadas. Este sujeito é masculino, “falante”, comedor de carne animal.
Conforme resumiu Llored,
O carnofalogocentrismo é esse conceito que nomeia o sacrifício animal pelo qual o
homem é responsável quando ele cabo da vida dos animais por meio de uma profusão
de práticas culturais triviais visando apropriar-se de suas vidas e ingeri-los. Esse
conceito fundamenta-se, tal como observado pelo próprio Derrida, em outras duas
noções que nele se encaixam: o logocentrismo e o falocentrismo. Ambas designam o
fato de que o Ocidente concede um privilégio absoluto à palavra e à razão, sem as quais
não é possível fazer parte da comunidade dos viventes, a qual sempre foi, e permanece,
uma invenção do poder masculino. O poder político no Ocidente é encampado pelo ser
humano do sexo masculino, que se considera racional e que expressa tal racionalidade
por meio da palavra considerada como própria do homem por consequência (LLORED,
2016, p. 58).
Tal ideia é utilizada no trabalho de Carol J. Adams, ecofeminista responsável pela teoria
da política sexual da carne (ADAMS, 2012); Adams reivindica o conceito de referente ausente,
com o qual se torna possível perceber a intersecção entre o racismo, o sexismo e o especismo,
que consiste no entendimento do humano como animal superior e separado da animalidade.
Conforme Adams, os animais tornam-se ausentes através da linguagem, e o conceito tem
implicações também para gênero, raça e classe. Para ela,
o referente ausente, em razão da sua ausência, geralmente impede que estabeleçamos as
conexões entre grupos oprimidos. As imagens culturais de retalhamento e violência
sexual são tão interpenetradas que no discurso feminista radical os animais atuam como
o referente ausente. Nesse sentido, a teoria feminista radical participa do mesmo
conjunto de estruturas representacionais que ela quer expor. Nós sustentamos a estrutura
patriarcal de referentes ausentes, apropriando-nos da experiência dos animais para
interpretar a violência cometida conosco (ADAMS, 2012, p. 85).
O contato com o pensamento de María Lugones quanto à colonialidade do gênero, que
se alia intrinsecamente à colonialidade da natureza, do ser e da linguagem, especialmente, e
com a noção de humano/não humano destacada em seu trabalho, também foi fundamental para
começar a pensar esta categoria de “não-homem”. Segundo Lugones, “a imposição colonial do
gênero atravessa questões sobre ecologia, economia, governo, relaciona-se ao mundo espiritual
e ao conhecimento, bem como cruza práticas cotidianas que tanto nos habituam a cuidar do
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mundo ou a destruí-lo” (LUGONES, 2014, p. 935). Lugones abriu espaço para um pensamento
feminista decolonial quando chamou atenção para a ausência da atribuição de nero na
categoria não humano; segundo Heloísa de Hollanda, para Lugones,
o sistema de gênero surge quando o discurso moderno colonizador estabelece a
dicotomia fundadora colonial: a classificação entre o humano e o não humano. Como
humano, o colonizador. Como não humano, os nativos indígenas e, um pouco mais tarde
os africanos escravizados todos vistos como animais e primitivos (HOLLANDA, 2020,
p. 17).
Concordo com María Lugones quanto à inseparabilidade dos aspectos da colonialidade
(LUGONES, 2014, p. 940), e entendo que a sobreposição das opressões exige uma análise
igualmente complexa que seja capaz de dar conta dos distintos âmbitos da vida humana e não-
humana a que tais opressões afetam, direta ou indiretamente. Esta é uma tarefa inesgotável,
portanto a intenção desta análise é também provocar outros pesquisadores a observarem tais
aspectos para que novas análises e estudos possam surgir. As fontes que serão utilizadas neste
pequeno recorte tratam de casos de violência de gênero, violência contra animal e publicidade
de utensílios de churrasco, intencionando dar conta da complexidade das imbricações entre as
opressões. As linguagens utilizadas nestas fontes, sejam elas verbais ou visuais, se inserem na
colonialidade da linguagem, demonstrando padrões culturais postos pela
modernidade/colonialidade que permanecem dominantes, e que são verificados como a causa
de problemas sociais e ambientais que têm se mostrado crescentes, carentes de análises
historiográficas e ricos em possibilidades de pesquisa. Invoco a categoria de “não-homem”,
dialogando com a antropóloga Ochy Curiel quando esta diz que “são necessários, além da
criação de outras categorias, conceitos e teorias que deem conta da complexidade das relações
sociais, conquistando assim um desengajamento epistemológico e político na maneira como
produzimos conhecimento” (CURIEL, 2020, p. 130), aliando a teoria à práxis e produzindo um
saber que se intenciona transgressor e revolucionário. Curiel defende que
uma posição decolonial feminista significa entender que tanto a raça quanto o gênero, a
classe, a heterossexualidade etc. são constitutivos da episteme moderna colonial; elas
não são simples eixos de diferenças, são diferenciações produzidas pelas opressões, de
maneira imbricada, que produzem o sistema colonial moderno (CURIEL, 2020, p. 133,
grifo meu).
O pensamento decolonial fornece ferramentas importantes para esta análise, como a
proposta de uma desobediência epistêmica de Aníbal Quijano, defendida por Walter Mignolo
(MIGNOLO, 2008, p. 288), que não consiste em recusar aquilo que vem do Norte global, mas
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em desprender-se dos métodos e categorias de análise impostos pela colonialidade ao mundo
colonizado, que são incompletos e deixam lacunas incapazes de serem preenchidas. Valoriza-
se, portanto, uma pluriversidade de conceitos e ideias, pensamentos fronteiriços, saberes
tradicionais de povos racializados e suas epistemologias marginalizadas. É também crucial
anexar à análise propostas de contra-pedagogias da violência, como coloca Rita Segato
(SEGATO, 2018), já que a teoria não pode (ou ao menos creio que não deva) estar separada da
prática; não há transformação sem ação coletiva. Suely Messeder pontua que
articular a dimensão educativa prática no processo de descolonização nos permite seguir
um percurso de aprendizagem que nos reporta às ideias expressas em Paulo Freire sobre
a relação entre opressor/a e oprimido/a e perceber que a teoria feminista não deverá estar
divorciada da nossa práxis (MESSEDER, 2020, p. 167)
Encontramos uma multiplicidade de propostas e alternativas ao capitalismo e à
modernidade nos pensamentos dos povos originários de Abya Yala, nos povos de África e em
outras culturas que subsistem apesar do avanço da modernidade/colonialidade sobre elas.
Invoco aqui o conceito de Bem Viver (Buen Vivir, a tradução literal do Sumak Kawsay
quéchua), partilhado por muitos povos de Abya Yala. Como defende Alberto Acosta
(ACOSTA, 2016), o Bem Viver abarca uma pluriversidade de mundos possíveis que rompem
com a noção dicotômica humano/natureza, e reforçam a necessidade do cuidado de todo ser,
vivo ou não, entendendo a Terra como uma entidade viva, como também defende Ailton Krenak
(KRENAK, 2020, p. 20). Acosta enfatiza que
se o desenvolvimento trata de “ocidentalizar” a vida no planeta, o Bem Viver resgata as
diversidades, valoriza e respeita o “outro”. O Bem Viver emerge como parte de um
processo que permitiu empreender e fortalecer a luta pela reivindicação dos povos e
nacionalidades, em sintonia com as ações de resistência e construção de amplos
segmentos de populações marginalizadas e periféricas. Em conclusão, o Bem Viver é
eminentemente subversivo. Propõe saídas descolonizadoras em todos os âmbitos da
vida humana. O Bem Viver não é um simples conceito. É uma vivência (ACOSTA,
2016, p. 82).
A naturalização da investida humana sobre a natureza considera ser possível que
vivamos à parte dela, o que não se verifica na realidade; o inverso, no entanto, é gritante: para
quem não vive alheio às mudanças climáticas, às queimadas, desmatamentos, mortes de animais
aos milhões diariamente ao redor do mundo, ao extrativismo, ao uso da água, à distribuição do
alimento produzido, dentre outros problemas, é visível que enquanto provocarmos a destruição
da natureza, estaremos provocando a destruição da própria humanidade, bem como de todos os
outros animais. Essa naturalização não está isolada, mas é fruto da mesma matriz que naturaliza
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a cultura do estupro, o racismo e a violência de gênero, a partir da animalização de outre (de
que chamo “não-homem”), do seu retalhamento, da retirada de seu significado original
(humano, sujeito de direitos para o pensamento ocidental), do referente ausente invocado por
Adams. A filósofa Susana de Castro coloca que
o uso das categorias “natural” e “natureza” é fundamental para a empresa moderna-
colonial-capitalista-global. “Natureza” tem um duplo sentido. Por um lado, o ser
humano racional, isto é, o homem europeu, possui a superioridade intelectual que lhe
autoriza o domínio do âmbito natural, seja ele representado pelas mulheres europeias,
naturalmente inferiores aos homens europeus, seja representado pelas comunidades e
sociedades não europeias. Classificar algo como “natural” equivale nesse contexto
histórico a autorizar sua exploração (CASTRO, 2020, p. 149).
Castro também ressalta que “descolonizar nosso pensamento significa justamente
abandonar as categorias de análise dicotômicas típicas de um modelo de pensamento
eurocêntrico, tais como civilizado/não civilizado, natural/racional, homem/mulher,
hetero/homo, superior/inferior’.” (CASTRO, 2020, p. 149). Estas ideias são essenciais para
introduzir a discussão e a análise que segue, irrompendo um silêncio historiográfico e recusando
a simplificação e separação de temas complexos e imbricados. Debates como este que proponho
têm ganhado força nos últimos trinta anos, seguindo os movimentos em prol do meio ambiente
e as transformações no pensamento fronteiriço que emergem do Sul global, atentando para os
problemas que irrompem no presente; como defende o historiador ambiental Klanovicz, a
questão ambiental precisa ser entendida em sentido amplo, visto que a relação com o ambiente
coloca um problema radical e inescapável para a continuidade da vida humana, não estando
relacionada somente com as consequências da grande transformação urbano-industrial (ou
Grande Aceleração), mas também com uma série de outros processos macro históricos
(KLANOVICZ, 2019, p. 211).
Sobre esta dicotomia própria da modernidade/colonialidade que distingue
homem/natureza como partes separadas, o antropólogo Bruno Latour defende que a
artificialidade da distinção sociedade-natureza é uma falácia fadada a deturpar as possibilidades
de interpretação das relações existentes entre os dois grupos no mesmo coletivo (KLANOVICZ,
2019, p. 212). Por essa razão, é urgente buscar meios de romper com o pensamento moderno
limitante de interpretações e aliar os saberes dos povos da floresta e da ancestralidade que é tão
presente em nossa sociedade (inclusive na linguagem, como defende Lélia Gonzalez sobre a
existência de um “pretuguês”) às análises desenvolvidas nos espaços da academia, que são
tradicionalmente espaços de privilégio e reprodução das dominações modernas/coloniais.
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Assim, nesta análise valoriza-se a pluriversidade de cosmologias e interpretações de mundo
próprias de povos historicamente marginalizados, entendendo que tais visões oferecem
possibilidades de superação de uma cultura da violência própria da modernidade/colonialidade.
A complexidade desta cultura da violência envolve o que se convencionou chamar de cultura
do estupro (NIELSSON; WERMUTH, 2018), a biopolítica do poder, a necropolítica, o racismo
ambiental, a predação sobre animais não-humanos e o entendimento da natureza como um
“recurso” a ser explorado.
Rompendo com as fragmentações ilusórias do pensamento moderno/colonial
O conceito de interseccionalidade desenvolvido pela doutora em Direito, Kimberlé
Crenshaw e disseminado no Brasil por feministas negras como Djamila Ribeiro e Carla
Akotirene, chamou atenção para a sobreposição do racismo e sexismo experienciado pelas
mulheres negras das sociedades colonizadas. Este conceito é operacional e não intenciona
esgotar análises neste sentido, e por esta razão entendo o feminismo decolonial (que por
natureza pensa raça e classe como recortes de extrema relevância para as análises de gênero) e
o ecofeminismo (que dá conta do racismo ambiental) como visões complementares que
possibilitam ampliações no debate que pretendo travar. A importância deste conceito em minha
pesquisa reside no fato de irromper um silêncio e demonstrar que não é possível separar gênero
de raça e classe; adiciono aqui as categorias de espécie e natureza como partes inseparáveis
deste todo, e intenciono romper as fragmentações ilusórias que provocam o surgimento de
movimentos identitários segmentados, enfraquecendo as lutas sociais pela conquista de direitos
dos povos indígenas, negres, pessoas gênero-dissidentes (não cisgênero), reforma agrária (ou
direito à terra e moradia), soberania alimentar, e também pelos direitos dos animais e da
natureza. Para desfragmentar é necessário complexificar.
Por esta razão, entendo que pensar tais categorias como elementos interseccionais é uma
forma de dar conta da complexidade que gera os problemas apontados, em primeiro lugar, e
que a fragmentação deixa lacunas abertas e limita nossas percepções à cartilha eurocêntrica que
parte da branquitude heterocentrada, dicotômica, liberal. Além disso, no que tange à própria
militância e ao ativismo político, a eficiência das lutas segmentadas é logicamente menor do
que a união entre as reivindicações, que são pautas interligadas por diversos aspectos da
colonialidade. Sendo assim, entendo que também a separação entre teoria e prática provoca
uma falsa sensação de neutralidade, e que é impossível separar a identidade e subjetividade do
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próprio pesquisador de seu objeto de pesquisa; neste sentido, pesquisa e ativismo podem ser
complementares de grande valia, já que a pesquisa demonstra as necessidades de ativismos das
mais variadas causas e pode oferecer caminhos possíveis para pensarmos novamente as utopias
e a superação dos problemas apontados.
Como colocou Walter Mignolo,
Nós, estudiosos e pensadores descoloniais, podemos contribuir não ao relatar para os
estudiosos, intelectuais e líderes indígenas qual é o problema, porque eles o conhecem
melhor que nós, mas ao agir no domínio hegemônico da academia, onde a ideia de
natureza como algo fora dos seres humanos foi consolidada e persiste. Descolonizar o
conhecimento consiste exatamente nesse tipo de pesquisa (MIGNOLO, 2017, p. 6).
Na historiografia brasileira ainda não se verificam muitos estudos que seguem
perspectivas decoloniais do feminismo ou ecofeminismo, portanto os rompimentos não
ocorrem sem resistências; frequentemente trabalhos como este são considerados
antiacadêmicos, manifestos ideológicos, entendidos como ativismo e descredibilizados de seu
valor científico por subverterem normas teórico-metodológicas europeias e recusarem o uso de
categorias de análise que não se aplicam às particularidades dos povos racializados e
colonizados. A perspectiva ecofeminista alia a teoria à prática, valoriza saberes ancestrais e a
pluriversidade de mundos possíveis. Conforme Marti Kheel,
o ecofeminismo refere-se à ideia de que a desvalorização das mulheres e da natureza
tem andado de mãos dadas na sociedade ocidental patriarcal. Essa desvalorização se
reforça mutuamente, por exemplo, as mulheres são associadas com a natureza e por isso
são desvalorizadas; e a natureza é vista como feminina e por isso também é
desvalorizada. A desvalorização das mulheres é também comumente vista como
conectada com outras formas de opressão, tais quais racismo, classismo [classism],
heterossexismo e especismo (KHEEL, 2019, p. 32).
Kheel também destaca que
ecofeministas apontam para uma série de dualismos que permeiam a cultura ocidental,
incluindo racional/irracional, autônomo/dependente, bom/mau, sagrado/profano,
consciente/inconsciente, ativo/passivo e masculino/feminino. O lado positivo do
dualismo é associado com aquele que transcende a terra e o lado negativo é associado
com o mundo material mais modesto da matéria [matter] (palavra que deriva da mesma
raiz que a palavra “mãe” [mother]). Nessa visão dualista, o sagrado é visto como
materializado num Deus masculino situado no céu, que cria e governa sobre a Terra
imaginada feminina (KHEEL, 2019, p. 33).
Marti Kheel observou que a caça e o sacrifício animal exemplificam o corte da conexão
com as mulheres e os animais, afirmando que através da história a caça tem sido tanto uma
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atividade predominantemente masculina quanto um ritual para entrar na idade viril. O objetivo
desta iniciação é de separar o menino de seus laços de afeição, impondo um padrão externo de
masculinidade focado na exibição do controle sobre os outros. A socióloga Maria Mies afirma
que a primeira divisão sexual do trabalho verificada na história é que as mulheres escolhiam
dedicar-se à coleta e à capinagem, enquanto os homens especializavam-se na caça; as mulheres
conseguiam, assim, garantir alimento para todo o clã, enquanto os homens nem sempre tinham
sorte em suas expedições de caça (MIES, 2016, p. 853). Mies relata que
“Martin e Voorhies demonstraram através de uma análise secundária de uma amostra
de caçadores e coletores do Atlas etnográfico de Murdock, que 58 por cento da
subsistência dessas sociedades era constituída por colheita e 25 por cento por caça,
sendo o resto por colheita e caça conjuntamente (Martin e Voorhies, 1975: 181).” Estes
autores acreditam que tais grupos matricêntricos coincidem com uma fase vegetariana
da evolução dos hominídeos (MIES, 2016, p. 849).
Mies identificou a criação de uma imagem do “homem-caçador”, uma projeção sexista
cuja função ideológica consiste em legitimar e atribuir universalidade, atemporalidade e
caráter natural às relações de dominação existentes entre mulheres e homens, entre, de um lado,
povos e classes subalternizadas e, de outro, seus dominadores e exploradores” (MIES, 2016, p.
855). Rita Segato afirma que a masculinidade está mais disponível para a crueldade porque a
socialização e treinamento para a vida do sujeito que deverá carregar o fardo da masculinidade
obriga-o a desenvolver uma afinidade entre masculinidade e guerra, masculinidade e crueldade,
masculinidade e distanciamento, entre masculinidade e baixa empatia; esta é uma construção
que reside em uma escala de tempo de grande profundidade histórica (SEGATO, 2018, p. 13).
Segato propõe contra-pedagogias da crueldade que consistem em meios de superação do que
chama de “pedagogias da crueldade”, que são todos os atos e práticas que ensinam, habituam e
programam os sujeitos a transformar o vivo e sua vitalidade em coisas, o que chama de
“coisificação da vida” (SEGATO, 2018, p. 11).
Segato destaca que a primeira vítima do mandato de masculinidade são os homens,
obrigados a curvarem-se ao pacto corporativo e obedecer suas regras e hierarquias desde que
ingressam na vida em sociedade, e que é a família que os prepara para isso; sendo a iniciação à
masculinidade um trânsito violentíssimo, a autora reconhece que essa violência mais tarde
reverte-se ao mundo (SEGATO, 2018, p. 16). Considerando esta proposição, invoco novamente
Kheel quando esta nos leva à dimensão prática afirmando que
a construção cultural da identidade masculina representa um impedimento central para
a empatia que não deve ser negligenciado. Enquanto os meninos forem criados para
suprimir seus sentimentos de empatia, vamos continuar tendo práticas baseadas no
domínio e controle da natureza. As normas incorporadas na construção oposicionista da
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identidade masculina devem ser desafiadas nas escolas, na família e na mídia (KHEEL,
2019, p. 38).
Kheel acrescenta que feministas enfatizaram a noção de que nossas ações pessoais têm
impactos sociais e políticos, e propõe uma filosofia ecofeminista holística que busca prevenir a
manifestação agressiva ao invés de controlar, como ocorre na tradição ética ocidental; concordo
com sua afirmação de que uma das maneiras mais diretas de prevenir a violência contra as
mulheres (eu acrescentaria, contra não-homens) e à natureza é educar as crianças pequenas, os
meninos, antes que o condicionamento cultural de aceitar e se engajar na violência torne-se
arraigado (KHEEL, 2019, p. 39-40). Essa é a ética do cuidado ecofeminista que reivindico como
meio de superação da cultura da violência típica do patriarcado ocidental, moderno/colonial.
Alicia Puleo (2019, p. 55) considera o conceito de androcentrismo como fundamental para
compreender a ideologia do domínio; Puleo afirma que o viés androcêntrico da cultura provém
da bipolarização histórica dos papéis sociais de mulheres e homens. Neste cenário, os animais
não humanos servem de meio para a construção de uma identidade viril historicamente
concebida como separação dos sentimentos de empatia e compaixão pelo Outro
1
; esta violência
tem dois objetivos fundamentais: experimentar a vontade do poder e afirmar e solicitar
reconhecimento de sua identidade de gênero bipolarizada obtida pela repressão dos sentimentos
de compaixão (PULEO, 2019, p. 57).
Este condicionamento que forma a subjetividade masculina ocidental parte da mesma
cultura que impôs ao mundo colonizado sua hierarquia de gênero e seus conceitos dicotômicos
padronizadores do mundo, que persiste subjugando e violentando seres humanos, não humanos
e a Terra. Tal dominação, assim como o racismo, é estrutural e estruturante em nossa sociedade
ocidentalizada, e legitima-se através de uma linguagem que naturaliza e apaga as opressões. A
ecofeminista Carol J. Adams afirma que por meio da metáfora o sujeito é transformado em
objeto, por meio da fragmentação o objeto é separado de seu significado ontológico, e
consumido ele existe apenas por meio do que representa; o consumo do referente ausente reitera
sua aniquilação como sujeito que tem importância em si mesmo, é a efetivação da opressão, a
aniquilação da vontade, da identidade separada (ADAMS, 2012, p. 86-87). Adams observou as
mudanças nos estágios do consumo da carne, sendo o primeiro um consumo mínimo com as
próprias mãos ou galhos, o segundo, a caça, que dispõe de equipamentos e provoca uma divisão
na cultura entre caçadores e não caçadores, o terceiro é a domesticação de animais, que envolve
a proteína feminilizada (ovos, leite), e o quarto é o aprisionamento de animais, o atual estágio
do consumo de carne (ADAMS, 2012, p. 129).
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Neste sentido, Adams afirma que
as mudanças nos estágios do consumo de carne indicam a crescente dependência de uma
cultura em relação à estrutura do referente ausente. Além disso, indicam a crescente
inserção do racismo branco - porque se passa a não conhecer fontes alternativas de
proteína - na estrutura do referente ausente. Se o “androcentrismopor meio do racismo
branco elimina modelos concorrentes para as relações entre homens e mulheres, o
racismo branco sustenta um modelo de consumo que se fixa na proteína animalizada e
obscurece o uso de fontes alternativas de proteína que caracterizam a maioria das
culturas do segundo estágio. O racismo branco distorce as culturas que eram ou o
centradas nas mulheres e não completamente dependentes da proteína animalizada
(ADAMS, 2012, p. 130).
Concordo com a afirmação de Adams quando esta diz que um sinal de que as opressões
do sexismo e do especismo são parte da mesma estrutura aparece quando a cultura patriarcal
sente que seu controle sobre as mulheres está sendo ameaçado pela opção pela dieta sem carne;
no plano doméstico, quando a violência é justificada pela ausência da carne (ADAMS, 2012, p.
245), ou quando o agressor pratica violências nos animais domesticados como forma de ameaça
à vítima, e no plano social, quando as pessoas que se abstêm de carne são silenciadas,
intimidadas e violentadas. Exemplo disso é a ocorrência de homens que “protestam” em
festivais vegetarianos e veganos comendo pedaços de carne crua, como pode-se observar em
vídeos no YouTube
2
, reivindicando seu direito à virilidade, ao prazer de dominar a vida de
outros seres em seu benefício. A relação entre a cultura moderna/colonial que produz a
subjetividade carnofalogocêntrica e a existência de uma cultura da violência que objetifica e
animaliza a outredade/alteridade não é, portanto, mera casualidade. É precisamente por esta
razão que é necessário romper o silêncio historiográfico sobre o especismo e o
antropocentrismo da sociedade ocidentalizada, moderna/colonial. A análise que segue requer o
entendimento destes conceitos, teorias e práxis que são ferramentas essenciais para a
compreensão e superação das linguagens e representações em sua complexidade.
As linguagens da carne: o não-homem, o não-humano e o referente ausente
Para este pequeno recorte da análise selecionei uma matéria do jornal mensal A Ponta,
da Associação do Bairro do Sambaqui na cidade de Florianópolis, do mês de outubro de 1993,
intitulada “Apesar de tudo Farra-do-Boi continua”; uma matéria do site Jusbrasil publicada pela
Agência de Notícia dos Direitos Animais intitulada “Mulher ameaça denunciar farra do boi e é
espancada em Florianópolis (SC)”, de 2014; uma matéria da Revista Veja, “Quando a cantada
não é um elogio, mas um crime”, de outubro de 2013; uma matéria da Istoé, “Promotoria
denuncia açougueiro que matou e arrancou o coração de travesti”, de janeiro de 2019; e um
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vídeo de publicidade da marca Tramontina chamado “A Bíblia do churrasco”, de 2014. Nestas
fontes encontro linguagens e metáforas que exemplificam o referente ausente em situações de
violência de gênero contra não-homens, contra animais não-humanos, e também na reprodução
de um imaginário masculino viril e no reforço de um padrão de masculinidade que é
interdependente do consumo de animais não-humanos e de mulheres, mais especificamente, já
que essa estrutura impõe o gênero binário e torna subversiva toda pessoa que excede à regra,
embora saibamos que há um consumo velado da sexualidade da mulher racializada, bem como
da transsexual e da travesti.
A matéria
3
do jornal A Ponta, de 1993, inicia sua chamada com o subtítulo: “Depois da
campanha contra as brincadeiras com o boi o mero de farristas aumentou. Até as mulheres
estão se mobilizando em Sambaqui” (grifo meu). O uso da palavra brincadeiras coloca o boi
como o brinquedo, objetifica-o; a afirmação de que até as mulheres estão se mobilizando
informa subjetivamente que elas não costumam se mobilizar, que é um evento excepcional sua
participação na farra. Sambaqui é um bairro tradicional açoriano do norte da ilha de
Florianópolis, onde residem majoritariamente pessoas de classe média e alta. No começo do
texto o autor da matéria, afirma que a campanha no final dos anos 80 que tentava acabar com a
Farra-do-Boi não teve sucesso, e que na realidade o que se verificou foi justamente o contrário,
ressaltando que até a campanha contra a Farra ocorrer não haviam tantos participantes. O autor
critica o fato de jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul terem afirmado que
“a Farra era uma prática que consistia em torturar o animal até a morte”, que após as violências
era morto para ser servido um churrasco. Lê-se em seguida que
a gota d’água que revoltou a comunidade de origem açoriano-portuguesa, foi um
programa da apresentadora Hebe Camargo. Alí, até razões sexuais foram levantadas
para “provar” que os farristas eram bárbaros, criminosos, carniceiros e outros adjetivos.
Tentaram proibir a brincadeira. A Justiça e a Polícia fizeram ameaças, mas o efeito foi
o contrário do esperado: não só aumentou o número de farristas como o de boi solto nos
pastos, nas ruas. Pessoas que tinham brincado na infância com o boi, voltaram a
brincar. Outros, que nunca tinham ouvido falar, por curiosidade, começaram a
frequentar as correrias (A PONTA, 1993, p. 4, grifos meus).
Neste trecho quero chamar atenção para alguns aspectos: a comunidade “ofendida”
pelos comentários contrários à Farra do Boi é açoriano-portuguesa, é colonizadora, patriarcal,
cristã; novamente o uso da palavra brincadeira, e a volta nas Farras de pessoas que foram
aculturadas neste meio desde a infância. É neste aspecto que identificamos a pedagogia da
crueldade de que fala Rita Segato. Kheel afirma que a pesquisa mostra que um entorpecimento
psíquico ocorre em face da violência genocida, invocando o estudo do psicólogo Paul Slovic
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(2010), que demonstra que quanto maior o número de afetados pela violência, menos provável
é que as pessoas venham em seu auxílio (KHEEL, 2019, p. 38). O apego ao padrão cultural e a
negação do erro e da possibilidade de mudança está, neste sentido, ligado à falta da construção
de empatia; o autor da matéria afirma que os descendentes de açorianos e portugueses foram
carimbados como pessoas violentas e que a polêmica chegou a extremos, reforçando que as
críticas teriam partido do desconhecimento da brincadeira. Não há, em nenhum momento, o
reconhecimento da violência e a tentativa de reparação, somente sua defesa. A matéria segue
dizendo que
o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, atendendo consulta feita pelo então
Governador Pedro Ivo Campos, saiu em defesa da farra e dos farristas. Professores,
como Valmir Martins e Raphael Bastos, artistas e intelectuais, se manifestaram,
publicando textos ou dando entrevistas.
Um seminário nacional de Antropologia, realizado em Florianópolis, debateu
exaustivamente o assunto. Seus participantes concluíram que se tratava de uma
manifestação cultural, de uma tradição trazida e mantida desde os Açores. Um livro
reunindo diversos artigos de historiadores, sociólogos e antropólogos, teve o mérito de
reestabelecer o equilíbrio na polêmica.
O livro contou com o apoio do governo do estado e de diversas prefeituras. Assim
como o filme-documentário “Farra-do-Boi”, dirigido pelos cineastas Zeca Nunes Pires
e Norberto Depizzolatti (15 milímetros), com o apoio, também, da Universidade
Federal de Santa Catarina e da iniciativa privada (A PONTA, 1993, p. 4, grifos meus).
Aqui quero destacar o caráter dos apoios à Farra: governos, a Universidade e a iniciativa
privada, todos eles instrumentos de dominação econômica e social da
modernidade/colonialidade; o esforço na busca pela legitimidade da Farra do Boi envolveu
muitos homens além dos próprios farristas, invocando argumentos de autoridade para fomentar
a prática como um aspecto cultural, tratado como um patrimônio dos descendentes de açorianos
e portugueses da região. A matéria segue dizendo que em razão da vigilância policial, os
farristas preferem as madrugadas, que também evita os fotógrafos, cinegrafistas e repórteres;
menciona também que em Ganchos a população resistiu à polícia, que feriu pessoas e abateu
um animal no meio do asfalto. A prática do abate quando a polícia atende a denúncias de Farras
do Boi é também alvo de polêmicas, que a justificativa para o ato é a impossibilidade de
rastrear a procedência do animal, visto que suas identificações costumam ser removidas, e,
portanto, não seria “seguro” consumir sua carne. Lê-se na continuação:
Em Sambaqui, por exemplo, as farras estão acontecendo fora das datas tradicionais. Até
as mulheres resolveram arregaçar as mangas e ajudar na farra. Vinte e cinco mulheres
de Sambaqui, Barra e Santo Antônio de Lisboa abriram uma poupança, com depósitos
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mensais, para comprar um boi nas festas de final de ano (A PONTA, 1993, p. 5, grifo
meu).
O que as mulheres fizeram, no entanto, não foi exatamente participar da tal brincadeira,
mas criar uma poupança para comprar o animal que seria brinquedo para os homens farristas.
Nas três fotos presentes na matéria verificam-se exclusivamente homens e meninos. Ao final
da matéria está presente uma pequena caixa de texto onde lê-se “como é a farra”; neste trecho,
o autor do texto menciona somente que a brincadeira com o boi não tem hora certa para
começar nem terminar, que os muros das casas viram arquibancadas e todos esperam pelo
animal, impacientes, e muitos bebem; o boi solto gera correria, e quando é brabo ninguém chega
perto, quando se enfia pelo mato é um Deus nos acuda, e pode ser perseguido durante a noite
inteira. “O boi pode atravessar da Barra para o Sambaqui, da Ponta para Santo Antônio, que
uma multidão persegue e é perseguida pelo animal”, enche ruas de pessoas quando está sobre a
carroceria do caminhão, sendo festejado com foguetes, gritos e buzinas e acompanhado por
uma caravana de carros e motos, provocando uma festa cada vez que é solto. A Farra do Boi
foi proibida no ano de 1997, considerada crime ambiental; o animal não humano é entendido
como sendo parte da natureza pela lei, enquanto o animal humano é entendido por essa mesma
lei como separado da natureza.
Na matéria
4
do site Jusbrasil do ano 2014, lê-se que uma mulher natural de Curitiba,
residente há quatro meses em Florianópolis que não conhecia a Farra do Boi, deparou-se com
um boi magro e sangrando correndo em sua direção na rodovia principal do bairro Rio
Vermelho, perseguido por pelo menos trinta homens armados de paus e pedras. A mulher
ameaçou fazer uma denúncia e foi espancada pelo grupo e o boi foi levado para um frigorífico
onde seria morto; ninguém foi preso. Segundo informação prestada pela Polícia Militar, no ano
anterior um adolescente de quinze anos “teria sido” morto por farristas e outras cinco pessoas
agredidas. A matéria também afirma que a prática ocorre especialmente entre os dias da
Quaresma, e que o boi é entendido como a alegoria de Judas, e por isso perseguido e torturado
até a morte. Aqui evidencia-se a presença de uma mulher como sujeito dotado de empatia pelo
animal não-humano, que se coloca em risco em sua defesa, além da exposição da violência que
outrora havia sido negada existência como apresentado na matéria do jornal A Ponta, que
afirmava ser uma brincadeira. Os vinte e um anos de intervalo entre uma matéria e outra
demonstram a permanência dos aspectos culturais que promovem e legitimam este tipo de
violência, sendo o Estado omisso apesar da proibição, visto que os animais vítimas das
violências acabam mortos de um jeito ou de outro, enquanto poderiam ser encaminhados a
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santuários. A brincadeira não objetifica o boi, mas também torna-o inimigo do cristão ao
entendê-lo como alegoria de Judas; a inserção das crianças nesta prática naturaliza o sofrimento
do animal e insensibiliza, consistindo em uma poderosa pedagogia da crueldade.
Essa insensibilidade torna-se necessária para as pessoas que trabalham na indústria
animal, que são majoritariamente homens. No site da Revista Istoé foi publicada uma matéria
5
chamada “Promotoria denuncia açougueiro que matou e arrancou o coração de travesti”, no
mês de janeiro de 2019. Este crime chocou a comunidade LGBTQIA+ por tamanha violência
do assassino, que além de matar, ocultou o cadáver e arrancou partes de seu pulmão e coração.
O Brasil continua a ser o país que mais mata transsexuais e travestis no mundo
6
. Lê-se:
O promotor relata que ao “atingir o resultado pretendido, qual seja, a morte de Kelly, o
increpado, que trabalhou como açougueiro, de maneira desumana e brutal, abriu o peito
da vítima e retirou parte de seu pulmão e o coração, com escopo de levar o órgão para
sua casa” (ISTOÉ, 2019, grifo meu).
E segue:
“O crime de homicídio foi cometido por motivo torpe, eis que o increpado deu cabo da
vida da vítima por odiar pessoas com orientação sexual diversa da sua, demonstrando
sentimento abjeto e de repúdio por seres humanos que apresentam tais características, o
que revela a torpeza do crime”, anotou (ISTOÉ, 2019, grifo meu).
As observações anotadas pelo promotor consideraram o crime um homicídio motivado
por ódio ao não-homem, e a afirmação de que o assassino “trabalhou como açougueiro” revela
a animalização da travesti vitimada, deixando inclusive a confusão sobre “açougueiro” ser a
profissão do homem ou uma metáfora. Contudo, destaco que não são raras as notícias de
violências domésticas e de gênero partindo de açougueiros, e entendo este fenômeno como
consequência da sistemática insensibilização destes sujeitos que são condicionados ao
distanciamento, à frieza e à visão do outro (o animal não-humano ou o não-homem, neste caso)
como um ser inferior que serve aos seus propósitos e necessidades. Esta relação é também
percebida quando vítimas de violências sexuais afirmam terem se sentido “como um pedaço de
carne”. Na matéria
7
da Revista Veja, “Quando a cantada o é um elogio, mas um crime”, de
outubro de 2013, lê-se que “nos primeiros nove meses do ano, a capital paulista registrou dois
casos por dia de mulheres que foram à delegacia dar queixa da abordagem ofensiva de homens
na rua; denunciar ainda é algo raro, o que ajuda a perpetuar o ato”, implicitamente entregando
a responsabilidade do ato para as mulheres que não denunciam.
A titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), no Centro de São Paulo, Celi
Paulino Carlota, trabalha 20 anos com casos de mulheres agredidas verbal e
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fisicamente. Ela alerta que a vítima não deve, de maneira nenhuma, procurar em si
mesma algo que “justifique” o assédio. Daqui a pouco, vão perguntar para as mulheres
estupradas o que foi que elas fizeram para sofrerem a agressão”, afirma. A delegada
enfatiza que a mulher é livre para escolher a roupa que quiser, sem que o homem possa
usar esse “argumento” para justificar uma cantada, uma passada de mão ou um crime
mais grave. O medo, muitas vezes, faz com que elas deixem de usar uma roupa que
gostem para evitar o assédio na rua (VEJA, 2013, grifos meus).
Nesta fala evidencia-se a negação de uma existência da cultura do estupro que
culpabiliza a vítima na expressão daqui a pouco”, que as mulheres foram e são
repetidamente questionadas quanto às suas atitudes para identificar o que desencadeou no
homem o impulso sexual. Também a afirmação de que muitas vezes é o medo que faz com que
as mulheres deixem de usar uma roupa é uma demasiada simplificação do problema; mulheres
e não-homens deixam de sair à noite, de tomar atalhos, de sair sozinhes, de expressar afetos, de
frequentar lugares, etc. em razão do medo da ameaça constante da violência masculina. -se
no texto que
Para a advogada especializada em causas da mulher Luiza Eluf, a ausência de
levantamentos oficiais impossibilita traçar um plano adequado de combate à violência
contra a mulher. “Você precisa saber o tamanho do problema para saber as medidas que
serão adotadas. Essa falha demonstra que as ofensas dirigidas à mulher são vistas como
algo de menor importância.” (VEJA, 2013, grifo meu).
O caráter do Estado e da política como responsabilidades (e capacidades) masculinas
ainda não foi completamente superado em nossa sociedade, não contamos com
representatividade política em porcentagens realmente democráticas conforme nossa
população. Aqui é preciso atentar-se à interseccionalidade das opressões, que quanto mais
politicamente minoritário é o grupo social a que a pessoa pertence, maior é a vulnerabilidade à
violência do Estado (a necropolítica que vitima racializades), além da violência de gênero a que
está sujeite. Isso é explicitado na sequência da matéria onde lê-se:
Eu estava na Linha 3 Vermelha do metrô, quando um homem se aproximou e disse
no meu ouvido que sempre quis saber como é ter relação com uma negra. Eu o empurrei
e comecei a chorar de raiva. Ele saiu do vagão rindo e passando a língua na boca (VEJA,
2013, grifo meu).
As mulheres negras o, especialmente na cultura brasileira, vistas como objetos
sexuais, como fêmeas de reprodução, e foram historicamente animalizadas, estupradas, usadas
como amas de leite, cuidadoras e reprodutoras de mão de obra. Assim como ainda hoje ocorre
com as fêmeas não-humanas, os filhos das escravizadas muitas vezes foram roubados e
vendidos, igualmente objetificados. No sentido de analisar uma linguagem, invoco brevemente
um trecho da música eternizada na voz de Elza Soares, A Carne:
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Tudo o que acontece é minha carne negra
Vamos dar um basta, está na hora de acabar com a violência
A violência a violência
Nós vivemos hoje num país de guerra e não tomamos conta
Estamos esperando o quê?
Esperando o que mulheres do meu país
As matriarcas
Vamos à luta, vamos à luta
Precisamos de liberdade, paz, paz (SOARES, 2002)
Nesta música, Elza se refere à sua carne negra como a mais barata do mercado, aquela
que é dispensável, que pode ser encarcerada ou morta a qualquer momento. Elza se refere
indiretamente à necropolítica, e essa estrutura racial do poder sobrepõe a opressão de gênero
que as mulheres e não-homens negres sofrem; a imposição do heterossexismo permite um certo
espaço (mesmo que limitado) do homem negro à sociedade ocidentalizada, restringindo
sobremaneira as possibilidades das mulheres negras, e principalmente das pessoas LGBTQIA+.
A metáfora da “carne”, neste sentido, se aplica com precisão pontual à composição cantada por
Elza, também pelo fato de que os trabalhadores da indústria frigorífica são em grande parte
sujeites racializades e pobres, dado à falta de oportunidades no mercado de trabalho e à
localidade periférica normalmente escolhida para o estabelecimento destas indústrias
8
, além da
sobreposição das opressões no caso de não-homens negres. Esta é uma metáfora que não parece
ter fim:
Quando estava saindo do trabalho, três homens que estavam fazendo manutenção dos
fios da rua começaram a mexer comigo e com uma amiga nos chamando de filé, gostosa
e outros insultos. Me senti um pedaço de carne e fiquei com nojo e muita raiva do que
tinha acontecido. Achei uma grande falta de respeito (VEJA, 2013, grifo meu).
O relato da vítima invoca a estrutura do referente ausente, a experiência do animal morto
e retalhado para o prazer de saborear o poder sobre outro ser. A vítima, no entanto, entende
como uma falta de respeito, não verbaliza um entendimento como uma violência. Neste caso,
a agressão limitou-se ao insulto verbal. Sendo o referente ausente qualquer coisa cujo
significado original é solapado ao ser absorvido numa hierarquia de significado diferente, o uso
da metáfora age como uma comparação da experiência de vítimas de estupro e violência de
gênero à experiência de morte dos animais, cujo significado original de seu destino fora
absorvido numa hierarquia centrada no homem (ADAMS, 2012, p. 80).
Entendendo a complexidade das imbricações entre os aspectos da colonialidade é
possível observar com um outro olhar a reprodução destas violências através de linguagens sutis
e naturalizações “apresentáveis”, presentes na propaganda
9
de lançamento do livro A Bíblia do
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Churrasco da marca Tramontina. Em um site de marketing e mídia chamado Propmark foi
publicado em 2015 um anúncio
10
de que a Tramontina colocaria um único exemplar deste livro
à venda em uma loja na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro; a informação explica por si o
recorte de classe de quem teria acesso a um livro como este. A Tramontina raramente é uma
marca que entra na casa do pobre brasileiro - levemos isso em consideração para as informações
que seguem. No comercial do livro A Bíblia do Churrasco, a cena se inicia com três homens e
uma mulher, cujo rosto não aparece e é colocada como um tipo de “anexo do homem” ao lado
dela. Todos são brancos. A primeira frase do narrador, um homem, diz: “o churrasco é mais do
que uma refeição, é uma paixão (...)”. As cenas mostram mais pessoas, onde uma pessoa
apenas, ao fundo, de pele não branca. Conforme a marca, o livro “ensina as pessoas a
transformar carne em arte, um livro que pode ficar na prateleira ou virar um churrasco”.
As mãos que abrem e folheiam o livro são mãos masculinas, brancas. A música ao fundo
remete a um faroeste norte americano. A primeira página do livro carrega a frase “claro que o
fogo foi inventado pelo homem; até parece que os animais fariam isso eles mesmos” (grifos
conforme destaques do livro). Aqui é possível observar a negação do “homem” como um
animal, a separação entre humano/não humano a que se refere Lugones como apontado
anteriormente. A noção que esta frase intenciona transmitir é a de superioridade sobre os
animais não-humanos, o especismo. Esta página é grossa, feita de carvão; por isso é removida
do livro e, com o cabo de uma faca e uma bela demonstração da virilidade e força do
churrasqueiro, ela é quebrada em pedaços. Os pedaços são colocados na churrasqueira. A
próxima página diz “os neandertais criaram o fogo; nós gola rolê; alguém devia trazer os
neandertais de volta” (grifo meu). Aponto aqui a noção de “criação” do fogo, e não sua
descoberta e o aprendizado do seu uso, além de uma romantização da ancestralidade viril e a
menção aos neandertais, que demonstra desconhecimento sobre arqueologia e escala evolutiva
da raça humana. Essa gina é feita para começar o fogo do churrasco, portanto é removida e
acesa com um isqueiro do tipo Zippo (que diferente de isqueiros comuns, requer um certo poder
aquisitivo); penso que se a intenção é romantizar a ancestralidade viril, o livro deveria
acompanhar um par de rochas para o rapaz acender seu fogo. A próxima página serve para fazer
vento, e nela contém a frase “churrasco não é coisa de macho até porque dizer que uma coisa é
de macho não é coisa de macho”; pode-se perceber a padronização do que é “coisa de macho”.
Para complementar esta fonte, sugiro que e leitore faça uma breve busca no YouTube e compare
os resultados, “churrasco de macho” e “churrasco de mulher”; creio que não serão necessárias
explicações mais detalhadas do que me refiro aqui.
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A segunda parte do livro contém um avental com estampas de pedaços de carne, com a
frase “não é só carne que importa para o churrasco” e abaixo o desenho de um porco com algo
escrito sobre ele que não é possível ler. Na próxima página -se “não tenho nada contra
vegetarianos, desde que eles não encostem no meu chimichurri(grifos conforme destaques do
livro). Aqui, quero chamar atenção para o vegetariano como outro, como diferente, e a condição
de que não toquem em seu tempero vegetal para que, implicitamente, não despertem sua ira.
Observando outra propaganda da Tramontina chamada Contos do Mestre Churrasqueiro,
percebo a contradição: no episódio sobre sal fino, o Mestre Churrasqueiro repreende o rapaz
por querer temperar a carne com outras coisas além de sal grosso. Essa folha é um papel
alumínio onde é enrolada uma batata, aparentemente recheada e coberta com queijo, a proteína
feminilizada de que fala Adams. A página seguinte traz a frase “muitas coisas separam homens
de meninos mas apenas o churrasco separa homens de homens”, e esta é usada para afiar a faca.
A próxima página é removida, a carne é cortada sobre a capa do livro, a frase é mostrada na
cena, “a gente não pinta, não esculpe, não fotografa; a gente espeta e assa”, a página se torna
sal grosso quando amassada. Essa é uma tentativa de aproximar o churrasqueiro do artista,
porém não sem subentender a feminilidade de artistes.
Em outra página, lê-se “salgadinho, pipoca, ketchup sabor churrasco; quem eles estão
tentando enganar?”. Na próxima vez que e leitore for ao mercado, sugiro que repare nos sabores
artificiais colocados nos produtos industrializados; você não encontra “sabor abobrinha”,
“sabor feijão”, “sabor alho poró”. Quase todo sabor artificial tem a finalidade de produzir o
prazer que o alimento animal gera nos seres humanos que ainda pertencem (de forma aceita ou
irrefletida) a esta estrutura de dominação. A página que segue diz “existe o cada manhã, o
almoço e o jantar; e existe o churrasco”, reforçando a ideia do churrasco como algo além de
uma refeição, separado da ideia de “nutrição” por si só. Esta é a tábua onde é servida a carne e
a batata que acabaram de ser assadas. Na próxima, lê-se “o verdadeiro pecado da carne é faltar
carne”, que me provoca novamente a reflexão do acesso à carne, especialmente aos cortes
considerados “nobres”, e como observou Adams (2012, p. 58), as pessoas que têm poder
sempre comem carne. O desfecho do comercial informa que o livro foi lançado em março de
2014 e entregue a chefs de grandes churrascarias, e que uma versão simplificada seria vendida
em livrarias selecionadas no Brasil. Novamente aqui se percebe o caráter restritivo deste
material, com um claro recorte de classe onde não cabem seres humanos racializados. Como
informado no anúncio mencionado anteriormente, a marca acabou por comercializar um único
exemplar.
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Para fechar sem concluir: reconstruir as teorias e a promover as práticas
A produção da subjetividade carnofalogocêntrica está na estrutura historicamente
enraizada na sociedade brasileira, e é naturalizada através da reprodução de noções como estas
presentes na propaganda da marca Tramontina. A disposição para a crueldade é, assim,
estimulada nas crianças que carregam o fardo da masculinidade: “homem não chora”, “homem
não é sensível”, “seja homem!”. Em 2016 realizei uma breve pesquisa sobre consumo de
produtos de origem animal durante a graduação em História, onde 71 participantes preencheram
formulários do Google, e as respostas
11
demonstravam desconhecimento dos efeitos da
produção animal tanto sobre o meio ambiente quanto sobre a cultura e o corpo humano. Ao ler
as razões das pessoas que as mantinham consumindo tais produtos, a grande maioria tinha
relação com prazer, paladar, gosto, hábito, tendo um participante afirmado que no seu caso era
“Fome! Mas não existe refeição minha sem algum tipo de carne! Tambem gosto de criar
animais, matá-los e comê-los. uma arte por detrás disso! Muito mais arte ainda no momento
de cozinhar, quando trata-se de carne exótica.” (grifo meu, grafia original), algumas respostas
envolveram socialização, convívio familiar e o reconhecimento de um padrão cultural que nos
impele a consumir tais produtos. Evidências empíricas deste padrão cultural surgem nos mais
diversos suportes e de variadas formas, sendo possível elaborar questões com grande potencial
de pesquisa historiográfica.
É preciso buscar compreender a complexidade destas relações com mais profundidade,
de modo que a pesquisa possa realmente oferecer alternativas e propostas que rompam com a
estrutura que provoca, enraíza e fomenta tais opressões. Este pequeno recorte intenciona
ampliar o debate, aguçar este olhar outro sobre as fontes que analisamos, provocar reflexões
sobre antropocentrismo científico e encorajar pensamentos e ativismos existentes neste
sentido nas pessoas que até aqui acompanharam. Penso que qualquer transformação social
intencionada será possível através da educação, e por isso concordo com Segato sobre a
construção de contra-pedagogias da crueldade, com Lugones quanto à importância da educação
comunal neste cenário, com bell hooks
12
e Paulo Freire quanto à necessidade de se ensinar a
transgredir, tarefa eminentemente prática. A pesquisa já provou exaustivamente que o sistema
em que vivemos é falho, capaz de provocar pandemias pela simples forma como preda os
animais não humanos
13
e a Terra; se o capitalismo é problemático, por que procurar soluções
dentro dele? É disso que se trata o Bem Viver, de construir alternativas ao capitalismo e ao
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desenvolvimento, de romper com as noções ocidentais que permitem, promovem e legitimam
violências estruturais, institucionais, econômicas, sociais e alimentares.
Por essa razão proponho uma ética de cuidado ecofeminista, aliada às análises do
pensamento decolonial e à ideia de Bem Viver, intencionando uma prática educativa voltada
para a alteridade e retomada da unicidade entre o animal humano e a natureza. Acredito que o
momento que vivemos no presente, em plena pandemia do coronavírus que vitimou no dia
que escrevo, mais de um milhão e meio de pessoas no mundo, irrompe uma demanda urgente
que poderá definir a continuidade ou não da vida neste planeta. obtivemos tecnologia
suficiente para aos poucos sermos capazes de recuperar o estrago que causamos no planeta, mas
seguimos fazendo mau uso dela; vivemos em tamanho negacionismo da realidade que é preciso
entender as razões para tal, o que causa a cegueira coletiva que nos move direto ao abismo e
agir no sentido contrário em busca das utopias, das soluções. Fontes como as que foram
apresentadas neste recorte demonstram que uma estrutura a ser superada. Defendo que a
pesquisa histórica, a partir da valorização dos saberes ancestrais, é capaz de fornecer novas
possibilidades e sociabilidades; a historiografia ainda engatinha neste terreno decolonial que
requer o diálogo constante com outras ciências e a desobediência de métodos engessados que
moldam nossos olhares como historiadores. Permita que este texto sirva como uma convocação
ao desafio que é subverter a modernidade/colonialidade na teoria e na prática.
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1
Grifo da autora, tradução livre.
2
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Netherlands. Disponível em:
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a natureza. No canal, os vídeos são dedicados a mostrar sua alimentação com carne crua e criticar veganos.
3
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4
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5
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6
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7
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https://veja.abril.com.br/brasil/quando-a-cantada-nao-e-um-elogio-mas-um-crime/ acesso em 20 de outubro de
2020.
8
Não se encontram estatísticas claras sobre trabalhadores negros em frigoríficos, mas é possível observar em
fotografias e entrevistas presentes em documentários como Carne, Osso da Repórter Brasil, disponível em
https://carneosso.reporterbrasil.org.br/.
Ver matéria de CAMPOS, André. A árdua tarefa de pôr o frango na caixa.
07 de julho de 2016, Repórter Brasil, Serafina Corrêa, RS. Disponível em https://reporterbrasil.org.br/2016/07/a-
ardua-tarefa-de-por-o-frango-na-caixa/ acesso em 20 de outubro de 2020.
9
WUNDERMAN THOMPSON BRASIL. A Bíblia do Churrasco. Tramontina, 29 de abril de 2014. Disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=gG9HMWN2TYU acesso em 20 de outubro de 2020.
10
PROPMARK. Tramontina coloca exemplar único da Bíblia do Churrasco à venda. 27 de março de 2015.
Disponível em https://propmark.com.br/anunciantes/tramontina-coloca-exemplar-unico-da-biblia-do-churrasco-
a-venda/ acesso em 19 de outubro de 2020.
11
As respostas estão acessíveis ao público no formulário disponível em
https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSfm5FpGOkyTq3m3JnX7Ukc9jyrSpjyzWhcbJQIQh4IzimuQfw/vie
wanalytics. Observa-se que na primeira pergunta havia o campo “outro” para preenchimento de identidade de
gênero, que nenhum participante usufruiu.
12
O nome bell hooks é pseudônimo da autora Gloria Jean Watkins, inspirado em sua avó materna, Bell Blair
Hooks; o uso de letras minúsculas pretende dar enfoque ao conteúdo de sua escrita e não à sua pessoa. Ver
https://pt.wikipedia.org/wiki/Bell_hooks.
13
ONU NEWS. FAO: 70% das novas doenças em humanos tiveram origem animal. 16 de dezembro de 2013.
Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2013/12/1460081-fao-70-das-novas-doencas-em-humanos-tiveram-
origem-animal. Acesso em 20 de outubro de 2020.