Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
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A utopia dos direitos humanos na cidade: o direito à cidade, reformas urbanas e
projeções sociais em Florianópolis (SC) - entre a ditadura e a democracia (1964-2004)
The utopia of human rights in the city: the right to the city, urban reforms and social
projections in Florianópolis (SC) - between the dictatorship and democracy (1964-2004)
Reinaldo Lindolfo Lohn
1
Resumo
O objetivo deste artigo é o de discutir os
conflitos gerados pela imposição de reformas
urbanas em Florianópolis (SC) ao longo da
ditadura militar, com desdobramentos no
período democrático. Explora os choques entre
os projetos urbanos de uma cidade construída
em torno dos valores das classes médias e a
paulatina constituição de novas utopias e
horizontes sociais a partir das lutas
democráticas pelo direito à cidade, tomado
como dimensão dos direitos humanos.
Florianópolis tornou-se um palco de disputas
em torno das representações sociais construídas
acerca dos grupos populares urbanos e a difícil
concretização de demandas inspiradas na utopia
dos direitos humanos.
Palavras-chave: Direitos humanos; Ditadura
militar; Cidade.
Abstract
The purpose of this article is to discuss the
conflicts generated by the imposition of urban
reforms in Florianopolis (SC) during the
military dictatorship, with developments in the
democratic period. It explores the clashes
between urban projects in a city built around the
values of the middle classes and the gradual
constitution of new utopias and social horizons
based on democratic struggles for the right to
the city, taken as a dimension of human rights.
Florianopolis has become a stage for disputes
over social representations built about popular
urban groups and the difficult fulfillment of
demands inspired by the utopia of human rights.
Keywords: Human rights; Military
dictatorship; City.
Tempo presente e o direito à cidade
Abordar os processos históricos que envolvem experiências urbanas na sociedade
brasileira a partir da ditadura militar e de sua recente e mida democratização diz respeito a
compartilhar a compreensão sobre determinados consensos e disputas acerca do tempo em que
se vive. Esta condição é dos elementos integrantes de uma época em que a possibilidade de
escrever “história de nosso próprio tempo”, segundo Eric Hobsbawm, tem como pressuposto
que “uma experiência individual de vida também seja uma experiência coletiva” (1998, p. 244).
Este artigo explora as disputas sociais em torno dos direitos à cidade em Florianópolis, Capital
de Santa Catarina, no final do século XX e início do século XXI como parte da problemática
mais ampla da democracia e dos direitos humanos. A pressão social por ambientes
democráticos, direitos e espaços públicos levou, a duras penas, a que o espaço das cidades
passasse a significar cada vez mais dissenso, disputa e ainda segregação. Para tanto, a
1
Doutor em História. Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
do Estado de Santa Catarina. E-mail: reilohn@gmail.com.
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documentação explorada é constituída pela coleta de textos, artigos e propagandas publicados
em diferentes jornais de Florianópolis entre 1950 e 2005, especialmente o jornal O Estado, um
dos mais influentes na maior parte do período. Além disso, foram analisados documentos
oficiais de órgãos públicos, além de estudos sobre o planejamento urbano produzidos no
período em apreço.
No caso de Florianópolis, os consensos em torno da modernização urbana aparecem em
documentos produzidos desde meados do século XX, ao mesmo tempo em que a população
pobre da cidade surge como o inverso dos projetos que impuseram um futuro apresentado como
inquestionável, alijada de quaisquer direitos a interferir nos rumos impostos. Isso compreende
uma ação sobre a elaboração do tempo histórico e da gestão do futuro: os projetos políticos que
fazem a gestão do amanhã, mas que são disputados no presente, como horizontes de
expectativas. Para Reinhart Koselleck (2006, p. 308-312), as projeções no tempo aparecem
como “experiência futura, antecipada como expectativa”, portanto, têm materialidade social e
política, na medida em que esse futuro “se decompõe em uma infinidade de momentos
temporais”. Tal infinidade é alvo de gestões políticas e imposições que visam cercear os futuros
possíveis, limitar seu potencial e sua diversidade, evitando alternativas, excluindo
possibilidades. No processo de conflitos em uma cidade são constantemente mobilizados usos
políticos do futuro e das expectativas.
Em uma cidade como Florianópolis, o direito a participar democraticamente dessa
gestão é um dos aspectos do chamado direito à cidade e, mais amplamente, dos direitos
humanos fundamentais que orientam as dimensões do vivido, como a moradia e os custos de
manutenção da vida digna. Ao estarem na dependência de projetos políticos subordinados a
interesses empresariais capitalistas e a projeções individuais de ascensão social, as expectativas
em relação à cidade tendem a elidir direitos fundamentais de moradores e moradoras pobres.
Controlar o futuro é uma estratégia de poder nas cidades contemporâneas e associa-se também
ao domínio do espaço. O urbano, definido por Henry Lefebvre, comporta essas dimensões, na
medida em que aparece como um “campo de tensões” e “uma virtualidade, um possível
impossível que atrai para si o realizado, uma presença-ausência sempre renovada, sempre
exigente”. Na sociedade urbana, a possibilidade de experimentação da utopia, ou seja, do
não-lugar, o alhures (LEFEBVRE, 1999, p. 33-50). O direito à cidade é concreto e material
para Lefebvre (2001, p. 105-118), não uma abstração genérica, pressupondo uma tensão com
os “centros de decisão” para disputar programas de reformas urbanas e projetos urbanísticos
que levem em conta as conquistas básicas no mundo dos direitos humanos, sob a forma sintética
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de um “direito à vida urbana, transformada, renovada”, realizando as potencialidades do projeto
moderno.
Em interação com a observação de fenômenos a partir da escala de abrangência dos
direitos humanos, necessariamente global, cabe considerar os fatores e dinâmicas locais para
dotar de concretude política os conflitos em torno de sua implementação. Neste aspecto, o
direito à cidade aparece como dimensão concreta dos direitos humanos, considerando questões
como moradia, infraestrutura básica, e livre expressão da participação popular. A questão dos
direitos ganhou dimensão fundamental nas cidades, desafiando os projetos liberais, ampliando
a plataforma mínima prevista por elites intelectuais e políticos representantes dos setores
dominantes. A discussão envolve, portanto, as cidades em seu aspecto físico, mas também em
suas dimensões simbólicas no que diz respeito às articulações contemporâneas entre política,
cultura e economia.
Para David Harvey (2012), “vivemos em uma época em que ideais de direitos humanos
se deslocaram do centro da cena tanto política como eticamente”. O autor pontua que o direito
à cidade “está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de
mudar a nós mesmos pela mudança da cidade”. Este aspecto é central na presente discussão: a
maior parte da população de Florianópolis foi alijada dos processos de mudanças orientados
por planos urbanos conduzidos à revelia da ampliação de direitos. Harvey aponta que “a
liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos” seria “um dos mais preciosos e
negligenciados direitos humanos”. Este direito choca-se constantemente com o movimento
cíclico de reconstrução do espaço urbano, em uma dinâmica na qual necessariamente as cidades
são constantemente refeitas para garantir a absorção de excedentes de capitais e seu emprego
em obras de construção civil incorporadas ao cenário da vida social. O tempo presente de uma
cidade é assaltado de quando em quando pelas projeções de seu futuro, as quais orientam a
incorporação imobiliária, partilhas e sucessões, destruição criativa de espaços, valorizações e
desvalorizações de lugares e edificações. A temporalidade do capital privado está em processo
frequente de sobreposição à própria função social da cidade, na qual os direitos são exercitados.
A constância desse movimento é parte também do processo que torna as cidades um espaço
particular para a emergência de conflitos e crises, muitas vezes redundando em rebeliões.
Os fluxos de investimentos públicos e financeiros nas cidades geram excedentes de
capitais empregados para promover reformas urbanas de tempos em tempos, as quais afetam as
populações mais pobres, reduzindo seu direito à cidade. Este torna-se quimérico, quase sempre
deixando de existir porque é constantemente posto abaixo pela última reforma, operação ou
reconstrução. Mas, para além da transformação dos direitos em mercadorias, divulgadas por
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meios publicitários que prometem “qualidade de vida” e práticas hedonistas de usufruto da
cidade por classes médias internacionalizadas, as fragmentações e divisões tendem a alimentar
conflitos e ações políticas que demandam o movimento oposto (HARVEY, 2014, p. 11-24).
Daí que controlar as alternativas de futuro possíveis em uma cidade e impedir a gestão
democrática e a ampliação de direitos são desdobramentos políticos dessa tensão, afetando o
exercício dos direitos humanos.
Os processos de intervenção urbana das décadas recentes em Florianópolis
contrapõem-se às possibilidades de transformação social, na medida em que são constituídos
espaços que tendem a restringir e redefinir a esfera pública, privilegiando a segurança privada
e a intimidade e tendo na segregação espacial um elemento das relações políticas cotidianas que
expressa aspectos de incivilidade e agressão. Tais “espaços públicos, mas não civis”
(BAUMAN, 2001, p. 122) são exemplificados pelos os shopping centers e condomínios
fechados, lugares em que o exercício da vida pública moderna e a própria noção ampliada dos
direitos tendem a subordinar-se à lógica privada do mercado e do individualismo.
A presunção de uma vida cosmopolita anunciada por campanhas publicitárias é
restringida a novos particularismos e provincianismos. Trata-se da renovação constante e
ampliada de um movimento histórico que acompanhou os ciclos de transformação urbana e que
entrou em choque com a emergência da chamada última das utopias internacionalistas, aquela
dos direitos humanos e sua extensão e realização no conjunto das sociedades, tal como aponta
Samuel Moyn (2010, p. 41). As cidades foram palco dos choques e disputas entre as diferentes
formas de conceber o exercício dos direitos humanos como utopia realizável contra a
manutenção de estruturas de poder incrustradas no Estado e no mercado capitalista. Em conflito
com a ação de diferentes movimentos populares para a ampliação de direitos, não como
abstrações ou formalismos liberais, a reconstrução capitalista das cidades tende a relativizar
essas demandas sociais e a promover ciclos de exploração do trabalho de habitantes pobres,
com remoções e precarização do uso dos espaços urbanos. Isso lança os direitos à cidade, como
parte constitutiva dos próprios direitos humanos, para horizontes sociais ainda mais longínquos
e difíceis de serem alcançados pela maior parte dos cidadãos e cidadãs.
O processo de intervenções nas cidades em países capitalistas é histórico, cíclico,
diacrônico, conflitivo e percorrido por práticas autoritárias. No estudo dessa dinâmica, a
abordagem historiográfica de objetos como a cidade deve considerar a dimensão efetiva e
material das chamadas representações sociais (BURKE, 2005, p. 84). É o que este texto
persegue, em suas modestas dimensões e pretensões. A efetividade da produção e da recepção
de discursos jornalísticos e de planos urbanos no espaço da cidade passa por sua materialização
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na forma urbana e nas divisões e estratificações impostas à sociedade. Jornais e planos urbanos
pesquisados fornecem, por um lado, dados empíricos para a investigação referente à
urbanização recente de Florianópolis e, de outra parte, são suportes políticos do processo de
elaboração de imagens e representações relacionadas às transformações culturais ocorridas na
cidade. Esta estratégia passa por uma dimensão política e está inscrita no âmbito dos conflitos
sociais, influenciando na manutenção de privilégios e na dificuldade do acesso a direitos amplos
por parte da maior parte da população.
A partir da última ditadura militar brasileira processou-se a elaboração de
representações sociais que pretenderam não apenas refletir, mas intervir na cidade de
Florianópolis, como parte dos conflitos pela apropriação da cidade, de seu futuro. Isso
significou a restrição aos direitos da maior parte da população, especialmente aqueles que dizem
respeito a discutir sua constante reconstrução, apagando a própria função social da cidade. A
produção discursiva presente na imprensa e em planos urbanos, tomada aqui como construtora
de representações e articuladora de práticas sociais, balizou percepções e imagens sobre as
camadas populares urbanas e as relegaram a um espaço menor no mundo dos direitos,
especialmente o direito de participar das definições quanto ao amanhã da cidade.
A cidade e suas palavras
Em 17 de abril de 1964 ocorreu em Florianópolis a “Marcha da família com Deus pela
liberdade”, preparada pela Igreja católica e pelas forças locais vitoriosas no golpe de Estado
ocorrido dias antes. O principal jornal da cidade, O Estado, noticiou com destaque o evento,
que reuniu as forças políticas e econômicas mais poderosas da Capital de Santa Catarina, que
se apresentaram sob a imagem de uma grande e harmoniosa procissão católica. Mesmo sem os
tapetes coloridos do dia de Corpus Christi ou os estandartes da procissão de Nosso Senhor dos
Passos evento religioso com grande afluência de público que ocorre anualmente na terceira
semana da quaresma e é composta pelo desfile ritual da imagem do Senhor dos Passos , as
autoridades foram saudadas por uma multidão que se apresentava sem divisões e organizada
conforme uma hierarquia consentida. Associações e entidades filantrópicas, além de diferentes
instituições públicas ou ainda aquelas com atuação discreta, mas fundamental no âmbito das
redes sociais das elites políticas e empresariais, conclamaram adesões à manifestação (O
Estado, 18 abr. 1964, p. 2). A passeata-macha-procissão representava haver uma cidade
homogênea, na qual “donos” reconhecidos ditavam os padrões sociais aos quais a população
devia fidelidade. Uma estrutura de poder que articulava uma Florianópolis que ainda não
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chegava aos 100 mil habitantes, divididos entre a área ocupada na Ilha de Santa Catarina e uma
porção continental, no litoral Sul do Brasil.
Quando do golpe militar de 1964, Florianópolis era uma cidade bem menor do que os
projetos de suas elites. A agonia do movimento portuário e das atividades comerciais que
dinamizavam a economia no início do século XX, tornou o desenvolvimento econômico
fortemente dependente dos investimentos públicos oriundos de sua posição administrativa de
capital do Estado. A cidade passava por um processo de desindustrialização, com o retraimento
de atividades fabris e a preferência pela imobilização de capitais em glebas de terra disponíveis
em toda a Ilha de Santa Catarina e no litoral adjacente. O isolamento em relação aos principais
eixos rodoviários do país e a pujança econômica de regiões mais industrializadas do Estado, no
Norte e Vale do Itajaí, deixavam-na numa situação marginal, com poucas alternativas de
geração de emprego. A área urbana era tímida e novas construções e a criação de postos de
trabalho surgiam pela intervenção direta do poder público (FACCIO, 1997, p. 14-27).
Mas, a posição de Capital traz privilégios e a população citadina crescia, especialmente
com trabalhadores pobres que procuravam moradia nos morros da região central e no Estreito,
na área continental (PELUSO JR., 1981, p. 15). Essa expansão urbana e o aumento da
população de citadinos pobres ocorria desde a década de 1930 e intensificou-se entre os anos
de 1950 e 1960. Em paralelo, a incorporação política dos pobres no âmbito redes de influência
era operada por meio de redes de distribuição de recursos, favores e caridade. No centro dessas
relações estavam os chefes políticos, em especial os herdeiros do poder de Nereu Ramos, que
foi interventor de Getúlio Vargas e fundador no Estado do PSD (Partido Social Democrático).
As redes de amparo social e a possibilidade de obter favores do poder público surgiam como
táticas cotidianas de sobrevivência dos mais pobres em meio a relações de reciprocidade
(MARTINS, 1994, p. 35-43).
As representações sociais acerca dos grupos populares apareciam esparsamente nos
jornais, os quais faziam referências às “misérias” do interior da ilha quando algum habitante do
centro urbano registrava as “estradas que são umas verdadeiras picadas, com certas choupanas
fulminadas por miséria, fome, doenças e desespero”. Os mais pobres ocupantes da Ilha de Santa
Catarina eram representados por uma condição de vida precária e pela ausência de perspectivas
de futuro: “escravizados pela falta de compreensão e vergonha de nossos administradores” (O
Estado, 06 abr. 1954, p. 8). Ao fim da década de 1950 foi publicada a coletânea de contos
escritos desde o início do século pelo escritor e colaborador de diferentes governos da Primeira
República e arauto do integralismo local, Othon Gama D’Eça (1957, p. 15-29). O livro
“Homens e Algas” trouxe a visão de seu autor sobre as agruras cotidianas de pescadores da Ilha
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de Santa Catarina e outras localidades do litoral. Para esses homens e mulheres não haveria
futuro, apenas a eterna dependência dos humores da natureza, como as algas: “homens e algas
cuspidos todos numa praia, sob o sol dourado e vivo: as algas pelo mar e os homens pela
miséria”. A tônica da obra é a da desesperança, a submissão aos ditames do mar e do vento sul.
Os pobres pareciam não ter condições de fazer projeções de futuro e tampouco disputar os
projetos que estavam sendo elaborados para modificar as feições da cidade (LOHN, 2016).
Florianópolis não ocupou um lugar central em relação aos influxos dos grandes
movimentos populacionais sobre os quais se assentou a urbanização no Brasil do culo XX,
ou seja, a imigração estrangeira, a migração rural e os remanescentes da escravidão urbana.
Este último contingente foi o mais significativo na composição dos grupos populares do
perímetro urbano, juntamente com as populações pobres do interior da Ilha, em geral
descendentes de açorianos e madeirenses chegados a partir do século XVIII. Nas encostas dos
morros do centro, ocupados desde o início do século por populações pobres, a “gente humilde,
de parcos recursos” de áreas como o Morro do Mocotó ou o Morro da Caixa d’Água em
áreas fisicamente muito próximas a vias e serviços públicos importantes, a Avenida Mauro
Ramos e o Hospital de Caridade vivia em completa vulnerabilidade. Chamavam a atenção
“os casebres de palha pendurados no alto dos morros agressivos”, habitados por crianças de
“cabeças grandes, ventres crescidos e de pés descalços” (O Tempo: semanário independente,
27 out. 1952, p. 16). Um articulista notou: “quem sai da rotina viciada da praça de Florianópolis,
com tristeza nos lábios e lágrimas nos olhos, as pequenas favelas miseráveis e os seus
miseráveis habitantes” (Diário da Tarde, 10 set. 1952, p. 1). Esta nota chama a atenção por
fazer uso da palavra “favela”, que era raramente mencionada nos jornais. Sabe-se que as
palavras na cidade podem ser indícios de relações complexas entre memória e território. Uma
palavra como “favela” contribui para o conjunto das “linguagens organizadoras do social”,
assim definidas por Jean-Charles Depaule e Christian Topalov (2001, p. 24-30).
A palavra favela, cujo emprego no meio urbano brasileiro tem História conhecida,
ligada à ocupação do Morro da Providência no Rio Janeiro pelas famílias de soldados da
campanha de Canudos, tornou-se parte do glossário urbano do país, adotado no Estado Novo
pela administração pública e espalhando-se para quase todo o Brasil (VALLADARES, 2005,
p. 55-63). O geógrafo Wilmar Dias a utilizou em 1947 para descrever a situação dos moradores
com dificuldades financeiras que procuravam “as novas ruas”, nas quais começavam a formar
“favelas e bairros residenciais que as classes pobres construíram na terra barata das encostas
dos morros que circundam a cidade”. O autor aponta que “na sua maior parte” eram “ocupadas
pelo elemento negro”, cujas “condições de extremo pauperismo” impediam sua manutenção na
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“área peninsular supervalorizada da cidade” (DIAS, 1947, p. 9-17; 57-58). A palavra entrou
nos documentos oficiais quando da elaboração do primeiro Plano Diretor da cidade,
apresentado por um escritório de arquitetura de Porto Alegre. Para os autores do documento,
“como em todas as capitais do Brasil, na periferia da cidade encontram-se favelas miseráveis
no quadro da natureza subtropical”. E continuavam: “o baixíssimo padrão de vida de grande
parte das classes menos favorecidas gerou a existência dos núcleos de malocas na periferia do
centro urbano”, expressões de “atraso econômico” (PAIVA; RIBEIRO; GRAEFF, 1952, p. 14).
Contudo, tais representações urbanas dos locais de moradia da população empobrecida
da cidade não são frequentes na imprensa da cidade até a década de 1960. As palavras utilizadas
para o espaço urbano raramente nomeavam situações e condições que, ademais, pareciam estar
incorporadas à normalidade da vida social. Os pobres existiam e estavam no “morro”. Na
década de 1940, a construção da Avenida Mauro Ramos, na base dos morros centrais, delimitou
o lugar dos pobres da cidade: “a construção desta via pública inaugura uma outra etapa no
processo de modernização do espaço urbano da capital catarinense”, caracterizada não pela
inclusão social, mas por um lento processo de “integração regulada” dos pobres urbanos
(AREND, 2011, p. 76-78). Mas, mesmo que sem chamar a atenção da imprensa e do poder
público, nos “morros”, nas “favelas”, nas “malocas” ou nos “casebres” do interior da Ilha de
Santa Catarina, uma vasta população começava a adensar-se, formando imagens que diferiam
das “procissões”. Surgia uma cidade dos “outros”, embora ainda contida nas fronteiras físicas
e simbólicas criadas pelas elites.
Este quadro ganhou mais nitidez a partir dos desdobramentos políticos e sociais da
imposição da ditadura militar nas modificações ocorridas no cenário urbano de Florianópolis
nos anos de 1970. Novos programas de ação foram então elaborados por dirigentes públicos e
empresariais da cidade. Durante a ditadura, o ambiente de absoluta ausência de discussão ou
mínimo controle democrático sobre o futuro da cidade permitiu que excedentes de capital
reconstruíssem a cidade. O domínio político sobre o futuro da cidade resultou em reformas
urbanas que impactariam a vida de seus moradores, em especial os mais pobres, bem como
gerariam tensões sociais que evidenciaram processos de conquistas de direitos em
contraposição ao autoritarismo do regime e da própria gestão urbana. Também em Florianópolis
processou-se a restrição a espaços públicos pela “destruição física de lugares culturalmente
significativos como resultado do ritmo avassalador da remodelação urbana”, expressa no
“desprezo com que a tecnocracia dirigente dos que não tinham automóvel” (SADER, 1988, p.
118-119).
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Com o aprofundamento do regime ditatorial e a consolidação de um ritmo de progresso
econômico acelerado, mesmo sem transformações sociais importantes, o otimismo tomou da
linguagem oficial dos governantes difundida pelos meios de comunicação existentes. Àquela
altura o território estadual estava sendo interligado pela rede de telefonia e pelo funcionamento
das primeiras emissoras de televisão. Além disso, os governos da ditadura ampliaram o raio de
ação de instituições como o Banco do Estado de Santa Catarina (BESC), além dos
investimentos para a consolidação das Centrais Elétricas de Santa Catarina (CELESC). Grandes
grupos empresariais tornaram-se diretamente responsáveis pela condução de políticas públicas
para os diferentes setores da economia. A construção civil esteve na base do crescimento
econômico no litoral e as maiores cidades receberam o influxo de investimentos e de
trabalhadores que viriam a mudar suas configurações sociais. Em especial, os grandes
beneficiários foram os setores políticos e empresariais dominantes da Capital do Estado que,
em poucos anos, perceberam as oportunidades abertas pela especulação imobiliária e a
exploração de recantos naturais da Ilha de Santa Catarina. Para tanto, contaram ainda com as
indefinições quanto à “dominialidade” jurídica da Ilha, se responsabilidade da União, do Estado
ou do Município, o que gerava um mercado de terras devolutas, com apropriações, falsificações,
legitimação de posses e conflitos judiciais que escapavam a controles estritos do planejamento
urbano (AGUIAR, 1993, p. 118).
A dinâmica de um capitalismo que se concentrou em reconfigurar a cidade, refazer seus
espaços, pôr abaixo e construir novas infraestruturas com investimentos públicos e ganhos
privados, mobilizou uma força de trabalho renovada a partir do final da década de 1960. Aos
poucos houve a incorporação de migrantes de áreas rurais das regiões próximas. Equipamentos
fundamentais para a expansão urbana foram então requeridos. As linhas de ônibus mostraram-
se insuficientes para uma população em crescimento e que morava em bairros recém
incorporados, formando subúrbios de onde se deslocavam diariamente para o centro da cidade,
em busca das novas ocupações abertas para este contingente de trabalhadores. A carência de
transporte público fazia com que a imprensa pregasse a “encampação das empresas
concessionárias, ou então, a criação de uma empresa de transportes públicos, que oferecerá
passagens por preços mais baratos” (A Gazeta, 22 mar. 1964, p. 8). Depois de sucessivas
intervenções, apenas na segunda metade da década de 1970 é que um sistema de transporte
coletivo ganhou feições mais organizadas por meio de concessões a empresários do setor. Ao
mesmo tempo, o crescimento comercial e as obras de construção civil ofereciam empregos de
baixa qualificação e salários modestos. Houve a massificação de profissões na construção civil
e no comércio, com a criação de postos de trabalho em supermercados e lojas de departamentos,
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sem contar os ofícios de empregadas domésticas, faxineiras e lavadeiras que ofereciam serviços
para as famílias da nova classe média. Este segmento ganhou expressão pelo crescimento
urbano e os empregos públicos nas novas instalações estatais criadas na cidade, sejam as
universidades ou as empresas federais.
Uma utopia urbana autoritária
A ampliação das possibilidades de transformar o próprio espaço urbano no principal
vetor de reprodução de capital em Florianópolis começou a fazer sentido na linguagem corrente
da modernização que tomava de assalto os centros urbanos brasileiros desde meados do século
XX e que desenvolveu um mercado interno para segmentos médios de renda. Em Florianópolis,
a publicidade de imóveis para as classes médias ressaltava esses valores. Numa dessas peças,
apelava-se para o “futuro da família”. O “chefe de família” deveria ter uma “noção de
responsabilidade” em relação “ao futuro dos seus”. Uma pergunta retórica: “quem hoje em dia
passaria por previdente, ou sensato, se entendesse garantir o futuro dos seus com conservação
do dinheiro? Guardar dinheiro quando o mesmo se desvaloriza em 50% do valor aquisitivo, por
ano?”. Só o investimento em imóveis garantiria o futuro e este não mais era pensado a partir de
representações generalizáveis para o conjunto da humanidade ou mesmo da cidade, mas restrito
à família nuclear e numa escala de tempo individual (O Estado, 13 dez. 1963, p. 7).
A este respeito, são adequadas para esta análise as indicações de Gilberto Velho (1973,
p. 29-63) em estudo sobre moradores de Copacabana, no Rio de Janeiro, no final da década de
1960. A investigação concentrou-se em segmentos da classe média, predominantemente
formada pelos chamados white collars, em geral, funcionários públicos. Acompanhando a
trajetória do bairro, o autor aponta que Copacabana transformara-se em um conjunto compacto
de edifícios, com a grande maioria da população morando em apartamentos. Em lugar de uma
utopia ampla e generalizável ao conjunto da sociedade, o autor localizou uma utopia urbana
restrita à realização de projetos pessoais e familiares de ascensão social e de incorporação em
uma estrutura de classes hierárquica. Um apartamento de poucos metros quadrados poderia
significar para tais segmentos a incorporação a um grupo mais bem posicionado na
estratificação social.
Sob as condições de realização dessa utopia urbana individualista que inspirava os
projetos de setores médios beneficiados pela abundância de empregos públicos criados por
novos órgãos governamentais, como a Universidade Federal e a sede das Centrais Elétricas do
Sul (Eletrosul), Florianópolis deixou seu tradicional confinamento na área central. Isso permitiu
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o adensamento populacional e um grande crescimento do perímetro urbano. A região
continental, por sua vez, receberia projetos de implantação de núcleos habitacionais populares,
insuflados pelo Plano Nacional de Habitação, lançado pela ditadura militar.
Na área central, o crescimento da população ocorreu, em meados do século XX, a uma
média de 5,1% ao ano, enquanto que os licenciamentos imobiliários ocorreram a 6%, não
chegou a promover modificações abruptas à área urbana: “a trama urbana básica, ou estrutura
viária”, permaneceu “imutável” (PEREIRA, s/d, p. 34-36; 77). Isso significa que a distribuição
dos mais ricos no espaço urbano não fora sensivelmente afetado. Por outro lado, os anúncios
dos novos loteamentos populares afirmavam que estes estavam sendo construídos “em tempo
recorde” para atender a população em crescimento, seja em Florianópolis ou nos municípios
vizinhos (O Estado, 04 dez. 1966, p. 4). Se os ricos mantiveram suas posições, os pobres eram
realocados. Na vizinha cidade de São José, o distrito de Barreiros foi um dos primeiros locais
a receber loteamentos para trabalhadores e trabalhadoras que diariamente deslocavam-se a
Florianópolis. Eram compostos de pequenas casas e quase nenhuma infraestrutura, condições
que melhorariam com o passar de muitos anos, mobilização familiar para a autoconstrução
e lentas ações dos poderes públicos no atendimento a reivindicações dos moradores.
A construção de grandes Conjuntos Habitacionais foi a solução imposta pelos governos
estaduais e municipais ao longo da ditadura para o déficit de moradias. Por outro lado, foi
ampliada a dinâmica social que envolveu uma “submissão da terra aos capitais de promoção,
construção e financiamento imobiliário”. Mas isto não ocorreu uniformemente no tecido urbano
e, assim, como no conjunto do país, tal processo conviveu com diferentes formas de ocupação
e produção do espaço urbano, especialmente a “autoconstrução em loteamentos ilegais ou em
áreas invadidas” (MARICATO, 2003).
A dinâmica de reformas urbanas comandadas pelo Estado e pelo mercado imobiliário
gerava tensões entre as lógicas de lealdades e nculos políticos que mantinham privilégios
consolidados na estratificação social e os impulsos de uma modernização que trazia novas
tensões e projetos. É na década de 1970, nos anos da euforia do chamado milagre econômico”,
que a capital de Santa Catarina experimentou um ciclo de obras blicas e investimos
imobiliários que alterou efetivamente a silhueta tradicional da área urbana, avançou para os
bairros balneários nas praias da Ilha de Santa Catarina e alocou populações pobres em diferentes
franjas das áreas de conurbação com os municípios vizinhos. Áreas periféricas novas foram
integradas em condições precárias ao conjunto da cidade. Enquanto os segmentos médios de
renda eram motivados pelos anúncios de apartamentos no centro como parte de seus projetos
de futuro familiares, os planejadores dos programas habitacionais populares consideravam que
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poderiam proporcionar um projeto de vida também individualista aos pobres, que de baixo
padrão e com evidentes deficiências.
Uma população em crescimento que passaria a demandar maiores esforços da
administração. A cidade parecia não mais caber na grande procissão homogênea. Ao longo da
década de 1970 uma outra periferia e novos personagens aparecem na imprensa. O discurso
moralizador da pobreza cede lugar à criminalização dos pobres e de seus bairros. Uma palavra
como “favela” ganha mais frequência no noticiário jornalístico, sendo atribuída a moradores de
assentamentos excluídos do direito à cidade. Os desmoronamentos e desabamentos provocados
por chuvas em 1974 revelaram que os habitantes da comunidade do morro do Mocotó estavam
“preocupados com alguma medida repressiva das autoridades, que proíbe qualquer
remodelação naqueles barracos” (O Estado, 26 mar. 1974, p. 4). O poder público impedia que
os habitantes reforçassem suas casas, as quais, assim, não resistiam às intempéries. Na grande
área de expansão urbana formada pelo aterro da Baía Sul formou-se um aglomerado de
habitações que foi denominado pela imprensa de “favela dos três poderes”. O crescimento
urbano logo evidenciou as deficiências da cidade para a recepção da população em expansão.
Nos novos bairros em expansão a situação era crítica (O Estado, 10 fev. 1976, p. 16).
Florianópolis passava a conviver com tensões e conflitos sociais em que a disputa pelo
direito de habitar a cidade ocupava o centro do processo. O autoritarismo, o provincianismo e
as estratificações sociais acompanhavam o ritmo de uma cidade que se transformava em meio
a uma ditadura. As ambiguidades daí advindas logo ganhariam desdobramentos ainda mais
acentuados no âmbito da cultura e das relações que envolviam uma cidade em crescimento.
Jovens de classe média e universitários, atentos aos movimentos culturais que alteravam hábitos
e comportamentos, ocupavam espaços até então restritos e provincianos, o que ocasionou
choques. Tais ambiguidades foram ilustradas no episódio que envolveu a apresentação do grupo
musical ‘Doces Bárbaros’, que reunia Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Gilberto
Gil. Seus desdobramentos tornariam a cidade nacionalmente conhecida por um motivo
diferente do então esperado. Florianópolis mostrou-se como exemplo de provincianismo
quando da prisão e internamento compulsório, por posse de maconha, de Gilberto Gil, além do
baterista Chiquinho Azevedo, em 07 de julho de 1976. As cenas do documentário “Os doces
bárbaros”, de Jom Tob Azulay, mostram um então moderno edifício do Tribunal de Justiça em
que um promotor denunciava o porte da “erva maldita”. Ao fim, o juiz condenou os músicos à
internação em uma instituição psiquiátrica e só depois de 15 dias foram liberados.
Naquele mesmo ano de 1976, a imprensa registrava que a cidade alcançava “um dos
maiores crescimentos demográficos do país”, o que projetava para a cada seguinte “uma
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população superior a 200 mil habitantes em seu perímetro urbano”. Mais de 40 mil novos
habitantes foi o crescimento verificado entre 1960 e 1970. Ao longo da década, a expansão
urbana gerava a estimativa de que a cidade tivesse alcançado quase 170 mil habitantes e havia
quem estivesse preocupado com “o futuro humano da Ilha”, prevendo um “caos populacional
decorrente da explosão demográfica” e que geraria “não somente a falta de gêneros
alimentícios, mas de mercado de trabalho e até moradias”. Delineava-se uma percepção
segundo a qual o “formigueiro humano” causava uma “grande mistura de tipos” e de
“nacionalidades”. A conurbação entre Florianópolis e os demais municípios transformava-se
em realidade e a região ganhava uma dinâmica de crescimento acelerado, com uma “economia
mudando constantemente e em expansão” (O Estado, 24 mar. 1976, p. 1; 16).
A expansão populacional e empreendimentos imobiliários nos limites e pontos de
contato entre as cidades da micro região da Grande Florianópolis, possibilitava condições para
a dispersão do crescimento urbano por áreas cada vez maiores. Municípios próximos a
Florianópolis tornaram-se cidades-dormitório, abrigando em seus bairros periféricos milhares
de trabalhadores da construção civil, que encontravam ocupação nas várias obras em andamento
na Capital. Formava-se então um aglomerado urbano (Ceca/FNMA, p. 103-104). Migrantes
tanto de municípios rurais próximos, como é o caso de Santo Amaro da Imperatriz, Angelina e
Rancho Queimado, como aqueles que vinham da região do Planalto Lageano, acompanhando
as oscilações da indústria madeireira e de setores agropecuários tradicionais, tinham o desafio
de encontrar moradias em condições vulneráveis. A intensificação de processos de
modernização agrícola que promoveram concentração fundiária e insolvência de pequenas
propriedades familiares no interior do Estado promovia deslocamentos populacionais para a
Capital. Esses novos moradores encontravam na cidade diferentes mecanismos que constituíam
uma “espoliação urbana”, entendida como um conjunto de extorsões que submetem os
trabalhadores pobres, para além dos próprios baixos salários, por meio da precariedade de
serviços públicos e a ausência de direitos básicos à moradia, segurança e transporte
(KOWARICK, 1993, p. 62).
Os direitos à cidade: novas utopias
Neste cenário urbano, a contestação a ordem autoritária, ao provincianismo e a luta por
novos direitos ganharam espaço. Um episódio marcante ocorreu no dia da visita oficial do
general-presidente João Figueiredo, no final de novembro de 1979, quando as forças de
segurança foram surpreendidas por uma manifestação organizada pelo movimento estudantil
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universitário. A lei de anistia havia sido decretada, libertando presos políticos, embora
mantendo cativos os acusados de participarem de atos da luta armada. Santa Catarina vivera em
1975 os desdobramentos da ampla ação repressiva contra integrantes do Partido Comunista
Brasileiro que, em sua versão estadual, ganhou o título de Operação Barriga Verde (TORRES,
2014). Circulavam informações sobre as violações, torturas e assassinatos praticados pela
ditadura. A Declaração Universal dos Humanos, que cristalizara “150 anos de lutas por
direitos”, voltava à cena internacional, promovendo uma nova convergência política em torno
do tema (HUNT, 2009, p. 207-210). Tanto ações no âmbito das relações internacionais quanto
movimentos de inconformidade à ditadura apelavam à linguagem dos direitos humanos, que
ganhou o centro do debate público como última barreira possível de resistência no interior de
estruturas autoritárias.
O movimento estudantil retomou e refez o espaço público em defesa das liberdades
democráticas em sintonia com um ambiente internacional em que se projetava a última das
utopias, a da generalização dos direitos humanos. Para o Samuel Moyn (2010), a década de
1970 é marcada pela difusão de uma consciência moral internacional acerca dos direitos
humanos, em meio a crises e desapontamentos em relação a outros idealismos e utopias. Para
sua defesa convergiram tanto as projeções de esperança de diferentes movimentos, mas a
própria realidade política, a qual, no caso do Brasil, era sintetizada pelos esforços de combater
a ditadura e obter sua desmoralização internacional pela denúncia das violações praticadas. Por
outro lado, sabe-se que, paralelamente, uma vaga do que viria a ser conhecido como
neoliberalismo começava a tornar-se referência em várias partes do mundo, o que no caso das
relações internacionais patrocinadas pelos Estados Unidos a partir do governo de Jimmy Carter
significava uma tentativa de associar a defesa dos direitos humanos com a do livre mercado
(MOYN, 2014). Mas, a bandeira dos direitos humanos provaria ser mais ampla do que
estratégias políticas conjunturais. Parte das esquerdas brasileiras começavam a defender a
“democracia como valor universal”, na busca por “primeiro conquistar e depois consolidar um
regime de liberdades fundamentais”, ponto de partida para uma “sociedade socialista fundada
na democracia política” (COUTINHO, 1979).
David Harvey (2007, p. 193-200) aponta que a linguagem dos direitos tem uma história
mais larga e complexa do que sua eventual emergência coincidente com a dominância de
ideólogos do livre mercado no debate político. Cabe atentar às tensões e complexidades do
movimento histórico. O apelo a direitos abstratos e ideais, alienados da vida material, teria o
potencial de afirmar uma lógica política orientada pela difusão de um ideário neoliberal nas
décadas de 1970 e seguintes. Mas, quando diferentes movimentos populares empunham a
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bandeira dos direitos humanos no enfrentamento de questões concretas da vida, especialmente
a busca de acesso a bens básicos da modernidade, tal “hegemonia neoliberal” pode ser
contestada. Ampliar o foco e o alcance dos direitos humanos passou a ser parte das práticas de
diferentes mobilizações desde o último terço do século XX. Em particular, as lutas por justiça
social evidenciaram as profundas desigualdades existentes nas cidades. No Brasil, diferentes
organizações e associações de trabalhadores e trabalhadoras fizeram coincidir a luta por valores
democráticos e universais com aquelas que diziam respeito a seus bairros e suas precariedades.
Em uma cidade de realização e usufruto da utopia urbana das classes médias, a luta por
direitos humanos apontava para horizontes de expectativas alternativos. Nos atos de protesto
contra a visita do general ditador, todos esses elementos entraram em cena. Tanto a luta por
direitos humanos em escala nacional quanto a visível concentração de riquezas em uma cidade
reconfigurada por novos ciclos de expansão capitalista apareciam como expressão subliminar
do direito à cidade, a seus espaços públicos, à ocupação das ruas pela sociedade. Nas semanas
seguintes ao protesto, grandes mobilizações foram organizadas em favor da libertação dos
estudantes que haviam sido presos como resultado da repressão policial. Numa dessas
manifestações, “mais de 7 mil pessoas” enfrentaram “mais de 700 soldados da Polícia Militar”,
em um ato público em favor da “libertação dos cinco estudantes presos”. Com a praça cercada
pela polícia, um “grupo de 1.000 a 1.500 pessoasformou “passeatas por todos os cantos do
centro da cidade” (O Estado, 05 dez. 1979, p. 3).
O período a partir do qual foi intensificado o processo que levaria ao fim do regime
autoritário foi vivido em Florianópolis no ritmo de uma cidade que fora transformada nos anos
da ditadura militar. Em 1974, a crise do regime parecia estar anunciada: “eis o produto que mais
sobe na cidade: o aluguel”. O sonho de moradia nos apartamentos do centro da cidade parecia
distante no “eldorado dos imóveis”: a cidade brasileira com “os aluguéis mais caros” (O Estado,
27 jun. 1974, p. 12). Quatro anos depois, O Estado trouxe a história de uma dona de casa
moradora em um loteamento irregular na área continental que desafiara a polícia e resistira ao
despejo: “sarrafo em punho, dona Vilma defende seu barraco”, bradando pelo “o direito que
considera seu de permanecer morando onde está”. Uma área estadual deveria ser desalojada e
as famílias transferidas para um conjunto habitacional, mas a moradora reclamava dos barracos
oferecidos pelo governo, com uma peça e deficiência de saneamento (O Estado, 01 fev.
1978, p. 15). Nesta época, movimentos populares organizados em larga medida a partir da ação
de movimentos de base da Igreja Católica passaram a atuar nas áreas periféricas, disputando a
territorialidade com políticos e setores conservadores. Ações de educação popular foram
coadunadas com discussões em conselhos de moradores e o atendimento a migrantes,
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elaborando demandas que desafiavam as estruturas de poder locais (PIACENTINI, 1991). Um
“novo olhar” sobre as questões sociais na cidade trouxe a reivindicação por direitos à cidade ao
campo das práticas e ações políticas concretas, mobilizando “uma rede de apoio que envolvia
lideranças políticas, vereadores, universitários, representantes de sindicatos, religiosos,
representantes de outros movimentos sociais” (CANELA, 2016).
Ao mesmo tempo e em contraposição, as fronteiras entre as classes sociais tornavam-se
ainda mais rígidas, na medida em que empreendimentos turísticos para o Norte da Ilha de Santa
Catarina recebiam uma população privilegiada em serviços públicos, tanto em quantidade
quanto em qualidade. Os balneários desta região da cidade receberam afluxos de população de
camadas médias, atraídas por sua “qualidade de vida” e pela representação aprazível que se
construía. O hedonismo e a centralidade de valores que dizem mais respeito à subjetividade,
como o equilíbrio ambiental, a fruição das paisagens naturais e o consumo de produtos
sofisticados, começaram a formar um ambiente cultural e político que apontava para a
priorização de formas de sociabilidade que aproximavam a cidade das práticas dos grandes
centros urbanos brasileiros. Uma dispendiosa utopia urbana, aquela da possibilidade de viver
apartado dos conflitos sociais em espaços elitizados, inspirava as classes médias altas e os ricos.
Este cenário de contrastes tomou formas nítidas desde a década de 1970. Uma matéria
ganhou destaque em O Estado no ano de 1972: “gente vive do lixo na Capital”. No bairro
Itacorubi, a poucos quilômetros do centro, no depósito de lixo da cidade, crianças conviviam
com “os urubus e as moscas”, além de mulheres “em busca de restos de comida e de materiais
inservíveis para garantir seu sustento”. A informação colhida pela reportagem apontava que por
volta de 40 pessoas catavam “o lixo jogado pelos caminhões, lembrando retirantes com seus
rostos marcados pelo cansaço e na esperança de contar com o ferro velho, a lataria, o papel e
outras quinquilharias para a sua sobrevivência, disputando a área com os agourentos urubus”
(O Estado, 15 jun. 1972, p. 1). Foi anunciado ainda que uma comissão pretendia “acabar com
favelas”, retirando famílias dos morros da cidade, com a retirada de “600 pessoas que moram
no morro do Mocotó, na Prainha”, juntamente com mais “100 famílias que moram no Pasto do
Gado”, as quais, em sua maioria, eram “do interior do Estado” e “vieram para a Capital em
busca de trabalho”. Pessoas “pobres e sem profissão definida” construíam “suas malocas nesses
locais criando um grave problema social” (O Estado, 25 jun. 1972, p. 4).
A periferia e os pobres, com cenas cada vez mais fortes de miséria, forçavam sua entrada
nas páginas noticiosas. Era preciso reconhecê-los. O documento oficial que seria base para a
elaboração do Plano Diretor de 1976 anunciou que Florianópolis consumia mais cimento do
que Blumenau, Itajaí e Balneário Camboriú, juntas, preparando-se para sua “metropolização”
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(RIZZO, 1993, p. 66-69) Mas, o projeto alertava que a área continental conurbada com São
José estava sendo “edificada em padrões de favela” e que no Sul da Ilha estava sendo
constituído um “núcleo afavelado” na Costeira do Pirajubaé (Escritório Catarinense De
Desenvolvimento Integrado, 1971, p. 116-118). As imagens sobre os bairros populares e as
populações pobres na cidade agravavam a alteridade condenatória e a estigmatização dos
“lugares malditos” (PESAVENTO, 1999). A ampliação das desigualdades sociais, a
compressão dos rendimentos dos trabalhadores urbanos recém incorporados a este mercado de
trabalho e o autoritarismo acompanhavam as iniciativas das elites dirigentes no sentido de
transformar a cidade em polo para investimentos imobiliários, com a perspectiva de que o
turismo seria o promotor do desenvolvimento econômico.
As divisões da cidade ficavam expostas, com impacto nas estruturas de classe e nas
experiências urbanas. No exercício do poder sobre os meios para controlar o futuro da cidade,
o ambiente autoritário permitia continuidade às formas de dominação existentes, renovadas pela
associação de grupos políticos tradicionais com a nova dinâmica capitalista. Uma figura em
especial ganhou destaque a partir e desde então: o prefeito nomeado pelo regime autoritário,
Esperidião Amin, começou uma ascensão política que o levaria ao governo do estado em 1982.
Tornou-se o pivô das redes político-empresariais (MAY, 1998) que influenciam, por diferentes
meios e com o emprego de diversas entidades sociais, desde as religiosas, assistenciais,
partidárias ou grupos maçônicos, o futuro da cidade.
O fim da ditadura militar brasileira coincidiu com o duplo processo no qual “o prestígio
dos direitos humanos e a importância dos movimentos de direitos humanos” veio acompanhada
com a “destruição, desde a década de 1970, daquilo com que os defensores do bem-estar social
começaram a sonhar a década de 1940.” (MOYN, 2015). Ao passo em que se buscava implantar
uma sociedade de direitos que redundaria em uma constituição orientada em grande medida
pela perspectiva de construção de um Estado social, o neoliberalismo avançou e solapou a
concretização das práticas de cidadania ampla (VISCARDI; PERLATTO, 2018). A defesa dos
direitos humanos ganhou escala internacional, mas foi limitada a um programa mínimo de
liberdades e integridade corporal. Por outro lado, a defesa da ampliação do bem-estar social,
que havia inspirada os formuladores da Declaração Universal dos Direitos Humanos na década
de 1940, dependeria da ação ampliada e concreta de políticas públicas que passaram a estar sob
constantes assaltos de medidas de austeridade fiscal e contenção salarial. Além disso, a partir
da década de 1980, a violência passou a ser uma das preocupações mais evocadas nas cidades
brasileiras. A deterioração da qualidade de vida urbana e o medo das classes médias com a
violência em diferentes cidades, mesmo em Florianópolis, justificaram medidas
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segregacionistas, a atuação ostensiva das políticas contra os pobres e a repressão (ZALUAR,
1998, p. 254-262). Esta tensão marcaria boa parte dos processos sociais que limitaram a recente
democratização brasileira.
Nas cidades brasileiras, tais processos apareceram sob a forma da hegemonia da
propriedade individual escriturada e registrada em cartório sobre todas as demais formas de
relacionamento com o território habitado”, condicionados por processos de expansão da
fronteira da financeirização da terra e da moradia com as remoções e deslocamentos forçados”
(ROLNIK, 2015, p. 13). Numa cidade como Florianópolis, com uma economia fortemente
dependente do setor terciário e da indústria da construção civil, com possibilidades de emprego
restritas, as lutas sociais vinculam-se à estrutura urbana. A desindustrialização da cidade no
após-guerra significou que os investidores privados direcionaram seus capitais para a aquisição
e incorporação de lotes urbanos. Isso constituiu um mercado catalisador de interesses
empresariais, com a perspectiva de transformar a cidade em um balneário a atrair milhares de
turistas durante os verões. A partir da década de 1980, este quadro ampliou-se para disputas em
torno da própria configuração da cidade. Formuladores de políticas públicas e segmentos
empresariais direcionaram seus investimentos imobiliários para a configuração de um espaço
urbano dividido entre balneários muito valorizados e núcleos urbanos restritos, habitados
exclusivamente pelas camadas médias e altas, tanto locais quanto as atraídas pelas imagens
turísticas. A “ilha da magia”, campanha publicitária massiva orientada pelo poder público a
partir de 1989, na segunda gestão de Esperidião Amin como prefeito da cidade, orientaria as
disputas políticas desde então, como vetor de mobilização política de empresários e políticos
conservadores contra os movimentos populares em ascensão ao longo das décadas de 1990 e
2000 (FANTIN, 1997, p. 177).
Em 1976, quando prefeito pela primeira vez, Amin foi o beneficiário político do auge
das reformas ocorridas na cidade. Na época, campanhas publicitárias de grande monta
celebraram o que seria a passagem dos 250 anos da fundação da cidade, a partir da oficialização
da vila de Nossa Senhora do Desterro. O editorial de O Estado afirmava que a população se
rendia “à memória venerável” de seus antepassados e celebrava o “progresso” daqueles dias
presentes e o “extraordinário crescimento do município, observado à passagem desses dois
séculos e meio de sua vida na história política de Santa Catarina”. Seria necessário fortalecer a
cidade e vencer o “desafio do futuro”, o que se impunha aos “homens do presente”, para
transmitir os “valores trazidos aos nossos dias” aos “dias do porvir” (O Estado, 21 mar. 1976,
p. 4). Nos dias e meses seguintes, foram mobilizadas narrativas acerca da formação histórica
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da cidade, a constituição do povo, seu jeito de falar e de viver, tendo como pano de fundo a
memória da colonização açoriana.
Houve então a reativação de aspectos das narrativas memorialísticas e identitárias que
remontavam ao Congresso de História Catarinense de 1948, quando o poder público patrocinou
a construção do que seriam os traços culturais picos da cidade e a açorianidade de seu povo
(FLORES, 1998, p. 113-120). Mas naquele ano de 1976 os apelos à identidade e às adesões
sociais em torno das associações entre a população local, herança histórica e as elites políticas
e empresariais ganharam nova dimensão. Em paralelo, o prefeito Amin dava passos para a
consecução do chamado Setor Oceânico Turístico, um plano de urbanização que envolvia 50
milhões de metros quadrados, envolvendo Lagoa da Conceição, Pântano do Sul e Rio Tavares,
no que seria então o “maior projeto integrado do Sul do Brasil”, condição para o “futuro do
turismo na Ilha” (O Estado, 20 abr. 1976, p. 16). Apegos a uma identidade fixa e seletiva,
despida de contradições e conflitos, uniam-se a planos de reforma urbana com a mobilização
intensa de capitais. Vinte anos depois, em 1996, em um regime democrático, quando a esposa
de Esperidião, Ângela Amin, disputava o segundo turno das eleições municipais contra uma
frente de partidos de esquerda, essa identificação entre um “sotaque político” próprio às forças
conservadoras da cidade e o que seriam os verdadeiros nativos” de Florianópolis foi
amplamente utilizada para a conquista de votos. Tal narrativa foi fator decisivo para vencer os
“estrangeiros”, segmentos da população vinculados aos novos movimentos sociais que estariam
impedindo o progresso ao questionar os grandes projetos imobiliários e turísticos (FANTIN,
2000, p. 179-203).
Nas décadas seguintes, a construção de novos shopping centers e a competição entre as
empresas para a obtenção de alvarás revelaram o alto custo para a cidade dos interesses
envolvidos, com tráfico de influência e denúncias de corrupção de vereadores e autoridades
(Diário Catarinense, 07 mai. 2005, p. 4). Em empreendimentos como Jurerê Internacional
desenvolveram-se pequenas “ilhas” de alta qualidade de vida e consumismo ligadas por vias
expressas, demandando investimentos públicos que tendem a ser fatores determinantes na
valorização privada de imóveis. Ao longo dos vazios urbanos criados por essa estrutura espacial
fragmentada pelo capital, a população pobre forma a nova periferia urbana. Por outro lado,
contingentes de camadas médias que não acompanham os custos para morar em Florianópolis,
frustradas com a escassez de empregos e a compressão salarial, esforçam-se para localizar
alternativas de moradia nos arrabaldes da Ilha de Santa Catarina e em novos loteamentos nos
municípios vizinhos, exigindo do poder público esforços para a instalação de serviços viários e
de transporte coletivo mais eficazes, além de saúde e educação.
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Morar na cidade tornou-se cada vez mais dispendioso não só para os grupos populares,
mas para as próprias camadas médias que apostaram nos projetos urbanos implementados na
cidade. No início deste século, “apenas 20% dos novos empreendimentos” eram destinados às
classes média e baixa. Os prédios de alto padrão ganharam os bairros do entorno do Centro de
Florianópolis, encarecendo os preços dos imóveis em locais como Coqueiros, Estreito, João
Paulo e Trindade. A segregação apresentou seus custos: “20% dos novos empreendimentos são
de altíssimo padrão, 60% de padrão médio alto e apenas 20% destinados às classes menos
favorecidas” (Diário Catarinense, 09 jan. 2005, p. 7). Esta é, a um só tempo, uma informação
e uma representação construída sobre a estrutura de classes de Florianópolis. É a concretização
dos esforços de investidores imobiliários em transformar o espaço urbano conforme o chamado
city marketing, ou seja, a cidade aparece como um produto de mercado para o qual converge a
criação de instrumentos de comunicação voltados para promover a adesão social à imagem
mercadológica construída, modulando “práticas institucionais e discursos que elaboram a
idealização da vida urbana” para os que podem pagar (RIBEIRO; GARCIA, 1996, p. 169).
Ainda que em escala menos dramática, Florianópolis sofreu a inflexão do intenso
processo de transformação urbana ocorrido no Brasil desde a década de 1970. Um novo padrão
de segregação urbana, que acompanha a privatização da segurança, reifica a desigualdade social
como um valor a ser cultivado nas cidades capitalistas modernas, impondo regras que
diferenciam e separam ricos e pobres, “protegendo” os primeiros em seus “enclaves
fortificados” e deixando as ruas para os últimos (CALDEIRA, 2000, p. 231). O fenômeno de
uma “nova pobreza”, criminalizada, segregada e deslocada de redes de amparo social que se
misturavam com as relações políticas tradicionais assusta os moradores das camadas médias de
Florianópolis. De outra parte, o direito à cidade tornou-se uma dura conquista para os moradores
pobres, ao passo em que sucessivas crises econômicas inviabilizavam esperanças movidas pelo
consumo e pelo sonho da mobilidade social. Diferentes divisões sobrepuseram-se a sonhos e
utopias restritas e individuais, expondo as enormes distâncias sociais que separam ricos e
pobres. Neste cenário, o direito à cidade, como prática da última das utopias disponíveis no
início deste século, a ampliação dos direitos humanos, surge como alternativa que contesta a
ordem existente.
No início do século XXI as contradições geradas pelas reformas urbanas das décadas de
1960 e 1970 e o modelo daí surgido, inserido na lógica de um mercado de cidades litorâneas
que exploram sua condição de lugares aprazíveis e de qualidade de vida, entraram em conflito
com as demandas de segmentos da população que pouco usufruem dessa imagem publicitária.
Protestos estudantis demandando melhorias no transporte coletivo deram novo destaque
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nacional à cidade. Encabeçados por movimentos em favor do direito ao passe livre no sistema
de transporte público, em 2004 houve a denúncia dos aumentos abusivos das tarifas de ônibus,
provocando tumultos e fechamento das pontes que ligam Ilha e Continente (AN Capital, p. 4,
03 jul. 2004). A violência policial contra os manifestantes foi intensa, mas os estudantes
conseguiram a adesão ou a solidariedade de parcelas significativas da sociedade. No ano
seguinte, os protestos voltaram a ocorrer, com ainda mais intensidade, gerando uma reação
policial ainda mais violenta. Emissoras de televisão mostraram pelotões de choque a atirar
bombas sobre estudantes. O prédio da Câmara de Vereadores chegou a ser tomado pelos
manifestantes. Ao fim de vários dias de manifestações o Prefeito Municipal adiou o aumento
das tarifas previsto para aquele ano.
Nos anos seguintes, sabe-se que as mobilizações em torno do passe livre ganhariam
corpo no país, chegando ao auge no fenômeno social e político ocorrido em junho de 2013,
quando uma juventude orientada por valores pós-materialistas continuou nas ruas (SINGER,
2013). Para além da conjuntura política e das manipulações que as envolveram, as mobilizações
estudantis ocorridas em Florianópolis no início deste século questionaram os limites de uma
urbanização que tornara o cotidiano nos médios e grandes centros particularmente violento e
conflitivo. A participação cidadã e o exercício do direito à cidade levou às ruas de Florianópolis
as demandas pela concretização de direitos amplos, prometidos tanto pelo arcabouço legal
brasileiro quanto especialmente por utopias que não cabem nos sonhos das classes médias e nos
projetos capitalistas. A última das utopias, a concretização dos direitos humanos por meio da
igualdade e do combate às discriminações estruturais, inspirou ações e experiências individuais
e coletivas das novas multidões que disputaram o direito de projetar o futuro da cidade em
novas bases.
As frustrações das camadas médias com os projetos de ascensão individual somaram-se
à incapacidade dos poderes públicos em democratizar a sociedade e o usufruto dos bens
produzidos no país. Especialmente aqueles bens, práticas e valores que as cidades
contemporâneas prometeram, desde as utopias urbanas (HALL, 2002, p. 3-14) mais marcantes
da modernidade. Vida em comum, liberdade, solidariedade, empregos e residências salubres
podem ser elementos básicos e de pequeno alcance na luta pelos direitos à cidade. Mas, ainda
fazem parte de projeções não realizadas da utopia acalentada pelos direitos humanos em nossa
sociedade.
Fontes
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Recebido em 28/09/2020.
Aceito em 23/10/2020.