Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
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Apresentação
A Ciência da História está interessada em compreender como as sociedades, nas mais
distintas temporalidades, produziram para si e para os outros, diferentes formas de orientação e
sentido no tempo, tanto para ações individuais quanto para as coletivas. Trabalhando com os
indícios documentais e diversas historiografias disponíveis, o historiador consegue propor
análises e reflexões que objetivam compreender, entre tantas possibilidades, os mecanismos de
identificação, regulamentação social, processos conflituosos ou diplomáticos entre diferentes
grupos sociais ou sociedades distintas. Em tempos de interações e conexões entre o local e o
global, as ciências humanas tem se dedicado cada vez mais aos estudos das fronteiras, processos
migratórios e identidades, de modo a discutir como estes fenômenos relacionam-se com a
produção de orientação e sentido no tempo.
O dossiê Fronteiras, Migrações e Identidades nos mundos pré-modernos, proposto
pelos professores Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB/Blumenau) e Renato Viana Boy
(UFFS/Chapecó), abre espaço para questões dessa natureza, contemplando reflexões
interdisciplinares que debatam as complexas relações entre fronteiras, migrações e identidades
nos mundos pré-modernos. Reunimos aqui um grupo de seis artigos de pesquisadores e
pesquisadoras que se dedicam ao estudo de temáticas situadas cronologicamente antes do
período que chamamos de Modernidade, além de uma entrevista com o professor de História
da África da Universidade Federal do Paraná, Otávio Luiz Vieira Pinto.
Dois artigos escolheram abordar a temática das sociedades pré-modernas enfatizando
Roma Antiga. O primeiro deles, As trocas de correspondências entre Tibério César e a
aristocracia senatorial durante seu afastamento para Capri (26 37 d.C.): uma análise dos
crimes de traição nos Anais de Tácito, escrito por Rafael da Costa Campos, teve como objetivo
expor a importância das trocas de correspondências como fundamental ferramenta política e
administrativa do Principado. A análise ficou concentrada no período em que Tibério César se
afastou de Roma e residiu na ilha de Capri (26 37 d.C.). O afastamento do princeps foi um
marco de inflexão política em seu governo, e as trocas de correspondências apresentadas por
Tácito em seus Anais expõem o seu impacto sob a aristocracia mediante a intensificação dos
casos de acusações e condenações pelo crime de traição (maiestas). O segundo artigo, intitulado
Uma República degradada: breve estudo da guerra de Jugurta de Caio Salústio Crispo, de
Alice Maria de Souza, por sua vez, analisa a obra Guerra de Jugurta, de Caio Salústio Crispo,
escrita durante o Segundo Triunvirato. Considerando os elementos exteriores ao texto em si
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tais como contexto, objetivos do autor e gênero interpreta o referido documento não somente
como produto de apropriações do passado, mas, também como produtor de novas
representações, servindo como veículo de transmissão e ressignificação da memória. Vemos,
então, uma problemática envolvendo História e Memória. É o que faz Erick Carvalho de Mello,
mas, agora, abordando a temática do celtismo e da celticidade. Sua reflexão, proposta no artigo
O Mito e a cultura de memória Celtas: Uma convergência de imaginários, parte do campo da
Memória Social, não da Ciência da História, mas, em um constante diálogo interdisciplinar,
aborda o papel das diferentes apropriações do que se entende por “cultura celta” na formação
das identidades nacionais de grupos como irlandeses, escoceses e bretões franceses. O autor
procurou identificar como o mito do celtismo é construído na História recente e como a partir
deste mito uma cultura de memória é formada e nos possibilita ter uma compreensão mais
aprofundada sobre os conflitos históricos que esses grupos enfrentam hoje, sem deixar de
dialogar com a forma como a temática tem sido tratada quando o foco são as populações pré-
modernas, se decidirmos denominá-las de "celtas" ou não.
O artigo Multiculturalidade e a Christiana Civilitas na Britannia de Guildas (s. VI),
escrito a quatro mãos por Helena Schütz Leite e Renan Frighetto, se propõe a discutir sobre as
transformações observadas no século VI na Britannia do século VI não sob o prisma da
decadência e destruição do mundo romano no Ocidente europeu, visão muito presente na
tradição historiográfica sobre o período. Diferente disso, os autores propõem, através do estudo
da obra De Excidio Britanniae, de Gildas, perceber a pluralidade cultural que é possível
observar ali, e a busca por uma identificação que aproximasse dos diferentes reinos da Britannia
na Antiguidade Tardia.
Outro artigo que também lida com a questão das identidades e historiografia é A
fronteira entre cristãos e muçulmanos: uma terra de ninguém?, escrito por rcio Felipe
Almeida. Entretanto, o ponto central das análises do autor está no espaço de fronteira disputado
por populações cristãs e islâmicas no século XIII. Vale ressaltar que a fronteira, neste caso, não
é uma linha divisória entre dois territórios, como se pode pensar à primeira vista. Diferente
disso, neste artigo, Márcio Almeida discute a fronteira como sendo, ela mesma, um território
pretendido pelos dois grupos em questão.
O último artigo deste dossiê é aquele que avança mais próximo do fim do período
chamado de pré-moderno, intitulado A Colonização Oriental e os Processos de Reformulação
Rural em Brandemburgo (séculos XIIXIV). Neste artigo, Álvaro Mendes Ferreira se dedicou
a analisar o processo de transformações no espaço rural do Europa oriental, ocorridas no
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período assinalado, em virtude do processo de consolidação do regime senhorial. Tendo os
processos na Marca de Brandemburgo como estudo de caso, o autor busca compreender como
os vilórios eslavos se enquadravam neste cenário de transformações.
Por fim, apresentamos ainda uma entrevista com o professor Dr. Otávio Luiz Vieira
Pinto, que tem dedicado suas pesquisas ao mundo persa e às trocas culturais entre os grupos da
costa Suaíli, na África, e os grupos árabes e iranianos do Oriente Médio, entre os séculos VI e
XI. Atualmente, Otávio Vieira Pinto é professor de História da África da Universidade Federal
do Paraná, pesquisador do Middle Persian Studies (MPS) e do NEMED (Núcleo de Estudos
Mediterrânicos), além de colaborador do projeto internacional Networks and Neighbours.
Além dos textos que compõem o dossiê, este número traz também dois artigos e duas
resenhas. O artigo de Darlan Damasceno e Gilmar Arruda, intitulado Religiosidade e Natureza:
imigrantes ucranianos e a transformação do meio ambiente (Paraná 1890-1915), aborda como
a religiosidade dos imigrantes ucranianos atuou no processo de ressignificação e transformação
do meio ambiente entre os anos 1890 e 1915, na região centro-sul do Estado do Paraná. As
fontes utilizadas pelos autores, indicam que a religiosidade dos imigrantes foi fundamental no
processo de (re)construção da realidade social nas colônias, e para moldar o modo de vida dos
indivíduos através de esquemas de percepção inscritos em suas ações.
No texto de Cássila Cavaler Pessoa de Mello, De estrangeiro a cidadão: o processo de
naturalização instaurado em 1832 e seus limites, a autora discute o processo de naturalização
instaurado no Império do Brasil a partir da Lei de 23 de outubro de 1823. Aponta os motivos
que estimularam os estrangeiros a buscarem o título de cidadão brasileiro e expõe os trâmites e
as dificuldades enfrentadas por aqueles que optavam por se tornar cidadãos. O texto explora
tanto a perspectiva estatal, quanto a dos indivíduos neste percurso.
Na seção resenha, temos dois instigantes textos. Um novo estudo sobre a vida de Marx,
uma resenha de Daniel de Souza Lemos, trata da obra Karl Marx: uma biografia dialética,
publicada no Brasil em 2019, de autoria de Angelo Segrillo, professor de História
Contemporânea e coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História,
na USP. O texto de Isabel Schapuis Wendling, intitulado Modelando Condutas: uma resenha
da obra sobre os poderes nas escolas católicas masculinas no Brasil, resenha a obra Modelando
Condutas: educação católica em escolas masculinas de Roseli Boschilia, publicada pelo museu
Paranaense em 2018.
Este dossiê e os demais artigos que compõem o número 35 da Fronteiras: Revista
Catarinense de História estão fundamentados na proposta de uma história plural, que dispõe de
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espaço às múltiplas possibilidades de análises históricas de populações, personagens e
acontecimentos em tempos recuados, definidos aqui como pré-modernos até a atualidade mais
recente, focos dos textos que se enquadram fora do nosso dossiê. Afinal, se a História é a
Ciência dos seres humanos no tempo e quem faz História é como o ogro da lenda, que, ao farejar
carne humana, ali sua caça, para lembrarmos uma célebre reflexão do medievalista francês
March Bloch, não é possível nos contentarmos com qualquer narrativa supostamente
historiográfica que deixe de contemplar estas outras dinâmicas espaço-temporais tão
importantes para compreendermos nossa própria historicidade.
Desejamos uma proveitosa leitura!
Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB)
Renato Viana Boy (UFFS)
Organizadores do Dossiê
Samira Peruchi Moretto (UFFS)
Editora