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O que, como e por que censurar: o trabalho de censura da Polícia Federal na década de
1970
What, how and why to censor: the Federal Police censorship work in the 1970s
Susana Cesco
1
Resumo
A censura foi uma ferramenta importante do
projeto político dos governos ditatoriais de
1964 a 1985. Este texto analisa os caminhos
percorridos pela política de controle estatal,
especialmente no que diz respeito às normas e
critérios adotados para proibir e cercear a livre
circulação de ideias. A abordagem recai no
trabalho de censores, autoridades policiais e na
própria reestruturação e atuação da Polícia
Federal nas décadas de 1960 e 1970 que passou
a atuar como órgão responsável pela censura no
país. Para esse estudo tem-se por base dois
documentos elaborados no ano de 1970,
intitulados “Normas Gerais - recomendação
verbal à imprensa falada, escrita e
televisionada” e “Instruções para a Execução da
Censura à Posteriori”, além de documentos
administrativos da Polícia Federal que
direcionaram a atuação dos censores e relataram
seus resultados.
Palavras-chave: Censura; Polícia Federal;
Imprensa.
Abstract
Censorship was an important tool in the
political project of dictatorial governments from
1964 to 1985. This paper analyzes the paths
taken by state control policy, especially with
regard to the rules and criteria adopted to
prohibit and curtail the free circulation of ideas.
The approach lies in the work of censors, police
authorities, and the restructuring and action of
the Federal Police in the 1960s and 1970s,
which began to act as the body responsible for
censorship in the country. This study is based
on two documents prepared in 1970, entitled
“General Rules - verbal recommendation to the
spoken, written and televised press” and
“Instructions for the Execution of Post-
Censorship,” as well as administrative
documents from the Federal Police that directed
the actions of the censors and reported their
results.
Keywords: Censorship; Federal Police; Press.
Introdução
A censura durante a ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985 foi
organizada, institucionalizada e controlada por vários setores do Estado. Mas a ação de censurar
não foi uma especificidade da sociedade brasileira e menos ainda desse período, aconteceu antes
e depois. Segundo Robert Darnton, censura tem uma definição bastante ampla e caracteriza-se
por tipologias que vão desde a censura de sanções até a censura legal ou ilegal. A censura pode
partir do Estado, de instituições privadas, de grupos de colegas, de professores, ou seja, pode
abranger distintas áreas, espaços e sujeitos. Por isso, é preciso considerar que censura não é
sinônimo de coerções de todo tipo - o que para Darnton seria trivializá-la (DARNTON, 2016,
p. 10-11).
1
Doutora em História Social. Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro UNIRIO. E-mail: susana.cesco@unirio.br.
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Partindo dessa abordagem este artigo se concentrará no que Carvalho classifica como dois
campos institucionais distintos da censura no decorrer da ditadura militar brasileira, quais
sejam, a censura moral e a censura política (CARVALHO, 2014, p. 79-80) e, especificamente,
na atuação da Polícia Federal a partir de 1970, ano em que a instituição passa a ser a responsável
formal pela censura no Brasil. Por essa época, segundo Setemy, a censura
resultou do que se pode denominar como uma cultura da vigilância à liberdade de
expressão, inscrita na tradição paternalista da política brasileira, segundo a qual
compete ao Estado, por meio do seu poder de polícia, a missão de controlar a sociedade,
garantir a paz, a segurança, a ordem e a preservação dos modos de vida da coletividade,
em defesa do bem comum (SETEMY, 2018, p.175).
Esse discurso foi difundido desde os momentos iniciais do governo ditatorial que
assumiu o poder no Brasil em 1964. A vigilância sobre o que se lia, ouvia e era visto no país
passou a ser assunto de Estado. Dentro desta perspectiva, veículos de comunicação e espaços
de convivência como televisão, rádio, jornais, revistas, teatros, restaurantes, bares, boates,
enfim, tudo o que poderia difundir “subversão” deveria ser controlado. Era a busca pela
manutenção do poder e pelo controle da circulação de ideias e informações. A este respeito, no
campo da censura moral a preocupação do Estado residia na
decadência moral da sociedade brasileira – que se expressava, por exemplo, no controle
sobre a pornografia e o erotismo exibidos no teatro, nas novelas e no cinema. (...) De
outro lado, a censura política à imprensa tinha por foco as atividades de cunho
jornalístico e a publicação de reportagens que pudessem atingir autoridades ou as
estruturas de sustentação do regime. Daí o veto a notícias que tratassem de assuntos
politicamente sensíveis, tais como o relato de práticas de tortura e desaparecimentos,
bem como do próprio funcionamento da censura à imprensa, cuja existência sempre foi
negada pelas autoridades (CARVALHO, 2014, p. 80).
Partindo do entendimento de que a censura foi uma ferramenta importante do projeto
político dos governos ditatoriais de 1964 a 1985, podemos analisar os caminhos percorridos
pela política de controle estatal, especialmente no que diz respeito às normas e critérios
adotados para proibir e cercear a livre circulação de ideias. Com isso podemos entender o que
era considerado bom, o que era possível de ser visto e ouvido pelos cidadãos considerados bons
e honrados e, ainda, o que era ruim e passível de ser instigado por indícios de más atitudes
perante a sociedade e o governo.
Mas se o tema censura é recorrente na historiografia da ditadura militar, muitos estudos
costumam focar suas análises exclusivamente no material censurado, nas pessoas e nos veículos
de comunicação censurados. A proposta neste artigo é fazer uma análise das regras de censura
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seguidas pela Polícia Federal em suas ações de repressão a partir de 1970, tendo como base
documentos pouco ou ainda não explorados em análises acadêmicas. Dentre esses documentos,
localizados no Departamento de Polícia Federal do Rio de Janeiro (DPF/RJ), foram
identificados “manuais de censura” destinados a orientar policiais e gestores para uma “correta
realização do trabalho”.
Os documentos em questão foram encontrados e acessados durante uma pesquisa
realizada em 2019, na Superintendência da DPF/RJ. No curso da referida pesquisa estes
documentos foram acessados após solicitação e autorização do mencionado órgão, devidamente
fundamentado na Lei 12.527/2011 a conhecida lei de acesso à informação. Neste acervo
entre listas de filmes proibidos e liberados, revistas, jornais e músicas censuradas –, foram
identificados dois documentos com orientações iniciais para a atuação da Polícia Federal. Estes
documentos, sobretudo a partir de outubro de 1970, reuniam parte das orientações oficiais de
censura no país, razão pela qual merecem destaque e serão aqui analisados.
Mesmo existindo outros instrumentos legais relacionados à censura especificamente
a Lei
5.250 de 1967, que regulava a liberdade de manifestação do pensamento e de
informação, conhecida como Lei de Imprensa; e o Decreto-lei 1.077 de 1970, que dispunha
sobre a execução do artigo 153, § 8º, parte final da Constituição da República Federativa do
Brasil, promulgada em 1946, ou do que ainda restava dela após os Atos Institucionais –, os
documentos localizados na DPF/RJ revestem-se de importância especial por serem registros
internos, de circulação restrita e terem sido elaborados como “manuais” que diziam “o que,
como e por que censurar”.
Esses documentos também reforçam a existência de uma normatização para a censura.
A respeito dessa normatização, segundo Maia, a compreensão de que os órgãos de “tudo podia
e não tinha limites para os vetos pode dar a falsa impressão da falta de critérios para seu
exercício”. Entretanto, para esse autor, a lógica do trabalho dos censores começava com uma
lista de temas interditados e com o passar dos anos novos temas foram incorporados, como a
sucessão presidencial. Nas publicações submetidas à censura prévia, os critérios eram outros e
tinham relação direta com a desconfiança do regime militar diante de tais veículos (MAIA,
2002, p. 487-488). De forma objetiva, existiam normas e parâmetros para a censura e o governo
federal tinha ciência e controle sobre a atuação da Polícia Federal nesse campo, tanto na
Superintendência do Rio de Janeiro quanto na das demais unidades federativas.
A Polícia Federal como órgão de censura
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Mesmo considerando medidas incisivas como o fechamento do Congresso, as restrições
eleitorais, a tortura, o sequestro e a morte de opositores, e o aniquilamento da oposição política
exceção formal feita ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), chamado de “oposição
legal”, estas ações, acontecimentos e fatos não foram o suficiente para sedimentar os ditadores
no poder. O MDB, a exemplo, fundado em 24 de março de 1966 dentro do sistema do
bipartidarismo instaurado no país após a edição do Ato Institucional nº 2, publicado em
27/10/1965, persistia na oposição ao governo federal reunindo parlamentares que se opuseram
ao movimento militar de 1964 e que, sobretudo, discordavam dos rumos que a nova ordem
imprimia à condução da política nacional (CPDOC, 2020a).
Dessa forma, controlar as ideias era fundamental. Assim, a própria base civil de
sustentação e de apoio ao governo esperava ações de repressão visíveis e duras. Diante disso, a
censura tinha um duplo efeito: cerceava ideias e opiniões que não comungassem da ideologia
pró-governo, impedindo-as de circular livremente e também agradava uma classe média
tradicional que valorizava a aparência moralista construída e via na censura uma atuação
positiva do governo. Para Setemy, essa perspectiva ficou expressa em alguns acontecimentos
ocorridos após o golpe de 1964, a exemplo das
Marchas da Família, com Deus pela Liberdade”, majoritariamente organizadas e
conduzidas pelo clero e por entidades femininas compostas por mulheres da classe
média, se traduziram em importantes atos de defesa intransigente de rigorosos valores
morais, que estavam sendo colocados em jogo tanto pela suposta “ameaça comunista”,
representada na figura de João Goulart, como pelas transformações que se operavam
nos padrões comportamentais, especialmente no que se referia à sexualidade e à
organização da instituição familiar (SETEMY, 2018, p. 177).
Além das mulheres, outro grupo conservador católico que surgiu nos anos 1960 foi a
Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). A TFP preocupou-se
em desenvolver ações junto à opinião nacional “através de constantes campanhas públicas em
defesa da família monogâmica e indissolúvel e da propriedade privada, bem como do ataque ao
comunismo e ao socialismo, qualificados de “elementos perturbadores da ordem natural das
coisas”. A TFP era uma associação civil de âmbito nacional fundada em 1960 por Plínio Correia
de Oliveira, com o apoio dos bispos dom Antônio de Castro Mayer, de Campos dos Goytacazes
(RJ), e dom Geraldo Proença Sigaud, de Diamantina (MG). A organização tinha por objetivos
“combater a vaga do socialismo e do comunismo e ressaltar, a partir da filosofia de São Tomás
de Aquino e das encíclicas, os valores positivos da ordem natural, particularmente a tradição, a
família e a propriedade” (CPDOC, 2020b). A respeito deste contexto, é importante lembrar que
a cada de 1960 é de mudanças sociais e culturais em boa parte do mundo. Reflexos disso
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eram percebidos no Brasil e, certamente, incomodaram uma parcela da sociedade que via nesses
elementos pontos de contestação que poderiam romper ou abalar lugares sociais até então
confortáveis e consolidados.
Durante a ditadura militar vários órgãos foram criados com o intuito de aparelhar o
Estado no campo da vigilância e controle. Ainda em 1964 surgiu o Serviço Nacional de
Informações (SNI) e, no final da década de 1960, foram estruturados os centros de Informação
do exército (CIE) e da Aeronáutica (CISA). Na Marinha, o Centro de Informações da Marinha
(CENIMAR), já existia, porém, foi rearticulado (AQUINO, 2002, p. 516). Esses órgãos
desempenhavam funções muito bem definidas e não agiam aleatoriamente.
Articulado a esse contexto, inicialmente a lei 5.250, sancionada em 1967, propunha
regular a liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Certamente o primeiro
artigo é emblemático ao definir que “É livre a manifestação do pensamento e a procura, o
recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de
censura, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer” (BRASIL, Art. 1º.
Lei 5.250 de 1967). Na sequência, o parágrafo segundo do próprio Art. 1º, pode ser entendido
como uma contradição:
O disposto neste artigo não se aplica a espetáculos e diversões públicas, que ficarão
sujeitos à censura, na forma da lei, nem na vigência do estado de sítio, quando o
Govêrno poderá exercer a censura sôbre os jornais ou periódicos e emprêsas de
radiodifusão e agências noticiosas nas matérias atinentes aos motivos que o
determinaram, como também em relação aos executores daquela medida (BRASIL,
Art. 1º, Lei 5.250 de 1967).
No artigo seguinte, o Art. 2º, afirma que “é livre a publicação e circulação, no território
nacional, de livros e de jornais e outros periódicos, salvo se clandestinos (art. 11) ou quando
atentem contra a moral e os bons costumes” (BRASIL, Art. 2º. Lei 5.250 de 1967). Essa
institucionalização da censura, como já aventamos, foi uma estratégia de manutenção de poder
e até mesmo uma das bases sociais de sustentação do poder autoritário.
Sobre esse ponto trabalhos importantes analisam a censura no período em questão e dão
uma dimensão clara aos eventos. Merecem menção os trabalhos de Carlos Fico, com destaque
aqui para o artigo "Prezada Censura": cartas ao regime militar onde o autor analisa a censura
de diversões públicas durante o regime militar brasileiro através de documentos administrativos
e das cartas enviadas por pessoas comuns à Divisão de Censura de Diversões Públicas. Esse é
um trabalho que se debruça sobre uma parcela da sociedade que queria a censura. Também o
livro de Beatriz Kushnir, Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à constituição de
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1988, traz uma abordagem que à época foi polêmica, qual seja, a da autocensura ou a
participação de jornalistas na censura. Esses trabalhos são fundamentais para entendermos as
várias faces da censura e os múltiplos personagens e, por isso, esse artigo se propõe a analisar
mais um desses ângulos.
Inicialmente é preciso destacar que nos anos iniciais do regime ditatorial a censura
ficara à cargo do Exército. Segundo depoimento do jornalista Hélio Fernandes, citado por
Aquino, de outubro de 1968 até meados de 1969, oficiais do Exército visitavam, eventualmente,
as redações (AQUINO, 2002, p. 519). Em 1970 a censura passou a ser, formalmente, uma
atribuição da Polícia Federal que encarregou cada Departamento Estadual de realizar a função.
A própria estrutura da Polícia Federal brasileira passou por importantes mudanças nesse
período, com novas atribuições e o fim de restrições oriundas da Constituição de 1946.
Em sua trajetória institucional, ainda em 1944, no governo Getúlio Vargas, foi assinado
o Decreto-Lei no. 6.378, que transformou a antiga Polícia Civil do Distrito Federal em
Departamento Federal de Segurança Pública DFSP, subordinada ao então Ministério da
Justiça e Negócios Interiores. Posteriormente, o Decreto-Lei no. 9.353, de 13 de junho de 1946,
estendia a competência do DFSP para todo o território nacional.
Com a constituição de 1946 as atribuições do DFSP sofreram restrições previstas no
artigo 18 e passam a abarcar somente “superintender os serviços de polícia marítima, aérea e
de fronteiras”. Apenas com o governo militar, em 1964, é que a Polícia Federal amplia
significativamente seu poder e atuação. sediada em Brasília, nova capital Federal, e, segundo
a própria instituição, através de seu site, por inspiração de “outros aparelhos policiais, tais como
os da Inglaterra, Canadá e dos Estados Unidos da América”, foi sancionada a Lei no. 4.483, de
16 de novembro de 1964, que definiu as novas atribuições do então Departamento Federal de
Segurança Pública. Destaca-se aqui o artigo 1º e seu item “f”:
Art 1º Ao Departamento Federal de Segurança Pública (D.F.S.P.), com sede no Distrito
Federal, diretamente subordinado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, dirigido
por um Diretor-Geral, nomeado em comissão e da livre escolha do Presidente da
República, compete, em todo território nacional: f) a censura de diversões públicas,
em especial, a referente a filmes cinematográficos, quando transponham o âmbito
de um Estado (BRASIL, Lei 4.483 de 1964, grifo nosso).
Além das atribuições acima mencionadas, no Art. 5º foi definida uma separação interna
com a criação da “Polícia Federal de Segurança (PFS)” que compreendia a “Divisão de Ordem
Política e Social (DOPS); Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP); Serviço de Polícia
Rodoviária (SPR); Serviço de Diligências Especiais (SDE)” (Lei 4.483 de 16 de novembro de
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1964). A este respeito, Setemy destaca que o SCDP não era um órgão novo e sua atribuição de
censura às diversões blicas surgiu em 1945. Ou seja, a censura às diversões públicas era
antiga, legalizada e praticada por um órgão específico (SETEMY, 2018, p, 181), a ditadura
militar apenas o reestruturou e definiu novas atribuições.
Segundo a tabela abaixo, extraída da Lei 4.483, de 16 de novembro de 1964, dentro do
serviço de Polícia Federal foi criado um grupo ocupacional definido como “Censor Federal”
subdivido nas classes A e B, com previsão de 13 e 7 cargos, respectivamente, além de definir
como qualificação o “curso colegial”, então vigente.
SERVIÇO: POLÍCIA FEDERAL
Grupo Ocupacional - PF-100 - Censura Federal
Nº de
Cargos
Série de Classe ou
Classes
Código
Acesso
Qualificação
7
Censor Federal "B"
PF-101-18-B
Inspetor de Polícia
Federal "A"
Curso
Colegial
13
Censor Federal "A"
PF-101-17-A
"
"
Fonte: Tabela extraída da Lei 4.483 de 16 de novembro de 1964.
Mesmo com a formalização desde 1964 da censura dentro da Polícia Federal, apenas
em outubro de 1970 o órgão assume a função, com regras para a execução direta. De acordo
com relatório da Polícia Federal no Rio de Janeiro, no primeiro semestre de 1971 o
Departamento de Polícia Federal DPF∕RJ contava com 39 funcionários efetivos e 22
colaboradores contratados, alocados especificamente no setor de censura (DPF, RELATÓRIO
ADMINISTRATIVO, 1971).
Além de uma série de instruções sobre como censurar, esses funcionários tinham um
regime de trabalho muito específico uma vez que atuavam junto à imprensa e às diversões
públicas. As orientações registradas como “ordens de serviço” definiam como horário de
trabalho do setor das 8:45 às 19 horas (DPF, ORDEM DE SERVIÇO,1971). Para organizar
essas funções, o General Delegado da Polícia Federal criou uma escala de trabalho para os
funcionários a ele subordinados, inclusive afirmando que esses eram em número insuficiente
diante de tantas tarefas. Os censores que atuavam fora do Departamento deveriam comparecer
entre as 14 e as 16 horas para receber instruções. Os relatórios deveriam ser diários. Ao final,
indicava-se que “fica terminantemente proibida a acumulação de documentos nas mesas e será
obrigatório o encaminhamento ou resolução dos processos no prazo de 48 horas (quarenta e
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oito horas) de acordo com o determinado pelos decretos orientadores da censura nacional
(CHAVES, s.d.).
Como apontado anteriormente, a atribuição de efetuar “a censura de diversões públicas,
em especial a referente a filmes cinematográficos, quando transpunham o âmbito de um Estado”
está na lei 4.483 de 1964, que reconfigurou a própria Polícia Federal. Internamente a censura
de imprensa não era negada ou acobertada, ao contrário, era normatizada como confirma
documento de 1975 do acervo do DPF/RJ, intitulado Normas para a Censura aos meios de
Comunicação Social, classificado como “Confidencial”, que definia a
verificação dos temas que possam ser contrários â moral e aos bons costumes tem ficado
adstrita à censura de filmes, programas de rádios e de TV, músicas e de outras matérias
a serem exibidas ao público, que a interpretação do que é "diversão pública", que
decorre da denominação dos órgãos executores (SCDP e TCDP), tem permitido
considerar que a imprensa em geral (jornais e revistas) estaria isenta dessa verificação.
Entretanto, o Decreto-Lei n9 1077, de 26, de Jan 1970, a Portaria n9 11-B, de 06 Fev
1970, a Instrução n. 9 1-70, de 24 Fev 1970, a Portaria h9 219, de 17 de Mar de 1970,
do DPF, incluem a imprensa escrita nos meios de comunicação social cuja matéria
deve ser examinada, não sob o aspecto da moral e dos bons costumes, mas
também quanto aos temas contrários aos interesses nacionais (ARQUIVO
NACIONAL. Fundo/Coleção NS Divisão de Censura de Diversões Públicas, grifo
nosso).
Manuais de censura”
Se desde o início dos anos 1970, usando novamente o argumento da defesa da moral e
dos bons costumes, o governo sancionou o decreto-lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970, com
um texto que começa com considerações que embasaram o decreto propriamente dito, com
explícitas recomendações relativas aos valores morais, aos bons costumes, de rejeição ao amor
livre e, ainda, da necessidade de atenção destes valores para segurança nacional:
CONSIDERANDO que a Constituição da República, no artigo 153, § 8º dispõe que não
serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos costumes;
CONSIDERANDO que essa norma visa a proteger a instituição da família, preserva-
lhe os valôres éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade;
CONSIDERANDO, todavia, que algumas revistas fazem publicações obscenas e canais
de televisão executam programas contrários à moral e aos bons costumes;
CONSIDERANDO que se tem generalizado a divulgação de livros que ofendem
frontalmente à moral comum;
CONSIDERANDO que tais publicações e exteriorizações estimulam a licença,
insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade Brasileira;
CONSIDERANDO que o emprêgo dêsses meios de comunicação obedece a um plano
subversivo, que põe em risco a segurança nacional.
(BRASIL, Decreto-lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970).
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O texto legal elaborado para evitar ou dirimir os “problemas” acima elencados previa
ainda que:
Art. Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos
bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.
Art. Cabeao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal
verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a
existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior. Parágrafo
único. O Ministro da Justiça fixará, por meio de portaria, o modo e a forma da
verificação prevista neste artigo.
Art. Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o
Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a
apreensão de todos os seus exemplares.
Art. 4º As publicações vindas do estrangeiro e destinadas à distribuição ou venda no
Brasil também ficarão sujeitas, quando de sua entrada no país, à verificação estabelecida
na forma do artigo dêste Decreto-lei. (...) (BRASIL, Decreto-lei 1.077, de 26 de
janeiro de 1970).
Segundo Daniel Aarão Reis Filho, é difícil fazer um inventário de todos os grupos e
organizações durante a ditadura militar a partir de 1964. Essas associações, clandestinas ou não,
procuram meios de divulgar suas opiniões e muitos desses grupos tinham um jornal ou revista
que os representavam e, mesmo sem uma periodicidade regular e sendo alguns até mesmo
efêmeros, foram importantes para a esquerda brasileira do período (REIS FILHO, 2002, p. 444).
Nesse cenário as medidas legais tomadas pelo governo ditatorial e todas as formas de controle
eram justificadas para controlar a circulação de ideias.
Foi nesse contexto que, ainda em 1970, o General Walter Pires de Carvalho e
Albuquerque, então Delegado Regional da Polícia Federal, recebeu um documento, assinado
pelo Ministro da Justiça, intitulado Normas Gerais” (DPF, OFÍCIO, 14/09/1970), cujo
objetivo era o de efetuar “recomendação verbal à imprensa falada, escrita e televisionada”. Esse
é o primeiro dos documentos de circulação interna que definia regras de censura e que será
analisado nesse artigo.
O segundo documento era composto de uma lista de regras classificada como
Instruções para a Execução da Censura à Posteriori”. Esses papéis acompanhavam um
ofício, datado de 14 de setembro de 1970, que fazia referência também às Normas Gerais”
anteriormente citadas, destacando que as mesmas haviam sido distribuídas aos delegados
regionais em reunião no dia 8 de setembro daquele ano. O citado documento, devidamente
explicado aos delegados pelo ministro, servia para nortear os contatos verbais com a imprensa.
O mesmo ofício indicava que no dia 1 de outubro de 1970 o “trabalho” de censurar passaria do
Exército para a Polícia Federal, em definitivo (DPF, OFÍCIO, 14/09/1970).
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Para Fico, o acesso a documentos inéditos produzidos durante a ditadura militar está
provocando uma transformação do conhecimento histórico sobre o período.
São acervos outrora “classificados” adjetivo que, no jargão administrativo e
arquivístico, designa os documentos sigilosos —, produzidos, portanto, com a franqueza
de quem escreve sem o temor de ver seu texto usado de maneira indevida. É certo que
não podemos atribuir a tais papéis o poder de revelar toda a verdade, numa descabida
revivescência do fetiche historicista pelo documento. Porém, é evidente sua
importância, e não apenas dos “documentos secretos”, mas igualmente dos papéis
administrativos rotineiros, que aos poucos também vão sendo revelados (FICO, 2002,
p. 252).
A análise dos documentos aqui referenciados caminha nesse sentido e reforça
abordagens como a de Beatriz Kushnir, ao mencionar que a censura através de telefonemas e
bilhetes direcionados às redações de jornais e revistas era comum e norteou muitas ações
veladas da Polícia Federal (KUSHNIR, 2001). Esses bilhetes, muitas vezes apócrifos, eram
enviados para as redações de jornais. Mesmo não estando calcadas nas leis essas práticas eram
orientadas por “papéis administrativos”, conforme Fico menciona e são aqui evidenciadas pelos
documentos em análise. Essa informação é reforçada por Aquino ao afirmar que “a forma de
controle da veiculação de informação mais comum era o telefonema para as redações de jornais
‘recomendando’ a não divulgação de determinada notícia” (AQUINO, 2002, p. 517). O
documento Normas Gerais regrava esse contato com a imprensa falada, escrita e televisionada.
Existem registros da atuação formal de censura por parte da Polícia Federal no Rio de
Janeiro junto a múltiplos órgãos da imprensa, através da SCDP, a partir de 1970. O então
ministro da justiça Armando Falcão, em despacho datado de 2 de julho de 1975, indica
claramente que determinou ao Departamento de Polícia Federal, no caso do jornal
Movimento”: “apreensão do primeiro número do jornal; Instauração de inquérito policial,
para enquadramento na Lei de Segurança Nacional e estabelecimento de censura prévia”
(MAIA, 2002, p. 471). Assim, a
censura prévia caracterizou-se pela instalação de censores nas redações dos jornais,
encarregados de vetar, na íntegra ou parcialmente, matérias produzidas para serem
publicadas. Em casos de periódicos não-diários, a norma era enviar o material a ser
veiculado para o Departamento de Polícia Federal do Estado do órgão de divulgação
(AQUINO, 2002, p. 518).
O Jornal Movimento teve sua origem em outro periódico chamado Opinião, cuja equipe
original ou parte dela decidiu deixá-lo em virtude de divergências com o empresário Fernando
Gasparian. No livro Jornal Movimento, uma reportagem”, de Carlos Azevedo, Editora
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Manifesto S.A., publicado em 2011, o referido periódico foi descrito como uma experiência
ousada e bem-sucedida de jornal – no qual os patrões eram os próprios jornalistas que o faziam
e seus 500 acionistas: também jornalistas, intelectuais, profissionais especializados, estudantes
e trabalhadores. Ainda segunda a referida publicação, o jornal sofreu censura prévia desde o
seu primeiro número em julho de 1975.
Voltando a discussão deste artigo, ainda em 1970, as instruções da Polícia Federal que
constavam no documento intitulado Normas Gerais, classificadas com um carimbo em tinta
vermelha como “reservadas”, reforçam essa modalidade de censura, e mais, definem normas e
procedimentos a serem seguidos, o que, somado à contratação formal de censores e à criação
de órgãos oficiais sob a nomenclatura de “censura”, enfatizam institucionalização da censura
prévia sob responsabilidade da Polícia Federal a partir de 1970. Por outro lado, esses
documentos também reforçam a ideia de que o governo militar, então no poder, desejava que a
censura fosse velada, oculta e não totalmente exposta ao público. Mesmo sabendo que a censura
existia e contava, muitas vezes, com a defesa de segmentos da sociedade para tal prática, a
ditadura militar construiu e reforçou, repetidamente, o discurso de uma “sociedade livre” e
documentos escritos, registros formais do cerceamento de ideias e opiniões, iriam contra essa
retórica. Por isso os telefonemas e bilhetes, muitas vezes apócrifos, poderiam não ser vistos
como atos oficiais.
A este respeito, tanto Fico (2002) quanto Kushnir (2001), observaram que durante todo
o período de governo militar pós 1964 mas também antes disso e mesmo após o fim do regime
e a redemocratização oficial – brasileiros de várias partes do país escreveram para o presidente
da República, para ministros ou diretamente ao setor de censura, pedindo rigor nas ações
repressivas e na proibição de determinados conteúdos e imagens. Muitas vezes essas
correspondências vinham com abaixo-assinados enfatizando o desejo de grupos da sociedade
pela censura.
Dentro deste contexto, em 1974 o general Antônio Bandeira, que estava à frente da
Polícia Federal, proibiu que as notícias censuradas fossem substituídas de forma inadequada
como quando jornais publicavam receitas de bolos, versos, figuras ou mesmo deixavam espaços
em branco. Isso sugere que os responsáveis pela censura queriam que o grande público não
percebesse que seu jornal ou revista havia sido censurado ou que essa massa que acessava os
jornais percebesse de forma tão clara que algo havia sido proibido de chegar ao seu
conhecimento. As substituições por fotos neutras ou por textos alternativos, inocentes e
aprovados pelos censores, eram a solução ideal para manter a imagem de tranquilidade. Cabe
destacar que as decisões tomadas pela Polícia Federal, especialmente no se refere à censura,
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tinham a ciência de escalões superiores e mesmo do Ministro da Justiça, segundo
correspondência trocada entre essas autoridades (MAIA, 2002, p. 476).
Usando o argumento de evitar prejuízos desnecessários que adviriam com a censura ou
o recolhimento de publicações impressas, a Polícia Federal, através do documento Normas
Gerais, deveria promover “orientações verbais para a imprensa escrita, falada e televisionada”.
Esse documento indicava as expressões que deveriam ser evitadas pela imprensa como “fontes
fidedignas”, “pessoa ou político bem informado”, “fontes autorizadas da presidência” (DPF,
OFÍCIO 206/70), entre outras, contrariando claramente o artigo 7 da lei 5.250 de 1967 que
afirmava que no “o exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação não
é permitido o anonimato. Será, no entanto, assegurado e respeitado o sigilo quanto às fontes ou
origem de informações recebidas ou recolhidas por jornalistas, radio repórteres ou
comentaristas” (Art. 7º. Lei 5.250, 1967).
Segundo o mesmo documento intitulado Normas Gerais, também estava vetada a
publicação de qualquer notícia, comentário, entrevista ou declaração de pessoas que tivessem
sofrido quaisquer sanções dos atos institucionais AI 1, 2 e 5, o que equivale dizer que essas
pessoas não teriam voz para expressar seu ponto de vista, inclusive no que diz respeito às
sanções sofridas. Também estavam proibidas notícias, comentários, entrevistas ou declarações
de entidades estudantis ou de pessoas ligadas a elas com a especificidade das siglas UNE, UME,
FUEB e qualquer outra que tivesse sido dissolvida pelo governo ou que estivessem suspensas.
A mesma proibição se estendia para a divulgação de atividades de estudantes como protestos,
paralisações de atividades escolares, manifestos, conflitos entre eles, com mestres ou
autoridades. Essa grande gama de proibições visava evitar que a população alheia ou fora desses
grupos soubesse do que estava acontecendo ou sendo impedido de acontecer, posto que quem
não sabe não comenta e não difunde notícias. Outro ponto interessante das orientações à
imprensa se refere à
“orientação” de não divulgar notícias, comentários, manifestações ou declarações contra
ato do Governo Federal, relacionado com a cassação de mandato, suspensão de direito
político ou com a decretação de demissão, aposentadoria, disponibilidade, reforma ou
transferência para a reserva de funcionário público civil ou militar, devendo limitar-se
à reprodução dos atos oficiais (DPF, OFÍCIO nº 206/70).
Além dessas proibições chama atenção a “proibição de divulgação de notícia referente
a prisões de natureza política ou à censura, salve se for fornecida por autoridade competente”,
que consta no mesmo documento. Nesse ponto também cabe destacar a proibição da divulgação
de
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qualquer movimento operário, greves ou quaisquer outros atos capazes de provocar a
subversão da ordem pública, inclusive “manchetes” relativas a movimentos subversivos
em países estrangeiros, planos de condutas violentas, guerrilhas, etc., assim como filmes
para a televisão de movimentos dessa natureza (DPF, OFÍCIO nº 206/70).
Somado a isso estavam proibidas as manchetes referentes a assaltos a estabelecimentos
financeiros ou de crédito, ficando essas restritas a pequenas notas internas nos jornais, o mais
resumido possível. A divulgação de manchetes a crimes ou a descrição do modo de
cometimento desses crimes e a divulgação de imagens que pudessem ser consideradas obscenas
ou deprimentes (AQUINO, 2002, p. 515-516).
Mas se muitos jornais, revistas e jornalistas resistiram de diversas formas, podemos
perceber que os arquivos da Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento de
Polícia Federal (DCDP∕DPF) guardam também a memória da “política de boa vizinhança”
adotada por várias empresas de comunicação diante das atividades censórias. Uma relação
amistosa provavelmente estabelecida por interesses comerciais e ideológicos.
Durante todo esse período de controle oficial registra-se a conivência de alguns órgãos
da imprensa com a censura, por necessidade, interesse ou mesmo alinhamento ideológico com
o regime. Bernardo Kucinski analisa essa perspectiva da censura no Brasil, em especial de 1968
a 1978, nominando-a de autocensura. Inicialmente é importante destacar que o regime militar
brasileiro nunca quis assumir-se como uma ditadura. As “eleições” para presidente da
República, encenadas periodicamente, eram um claro exemplo dessa retórica democrática que
acompanhou a história do Brasil de 1964 a 1985. Para Kucinski, a autocensura não recebeu o
mesmo tratamento da historiografia do que foi dado à repressão militar porque, diferente da
censura exógena, visível, ela ficou retida na memória dos que se autocensuraram (KUCINSKI,
2002, p. 541). Mas como ocorreu essa autocensura? Por que foi tão eficaz?
Inicialmente, é preciso observar que existem diferentes formas de atuação censória. Os
órgãos de divulgação diversos estão muito habituados a uma espécie de censura que
costuma não deixar marcas e que é aquela montada a partir dos interesses agrupados no
interior dos diferentes periódicos, sejam eles os do grupo representado pelos
proprietários da empresa, sejam os de seus anunciantes. Pela conjunção desses
interesses, costuma-se definir uma linha editorial que possibilita ou não a veiculação de
determinadas notícias ou de abordagens específicas. Esse tipo de censura (podemos
denomina-la de empresarial) existe em qualquer momento, com maior ou menor
intensidade, dependendo da correlação de forças no interior do órgão de divulgação ou
das circunstâncias vivenciadas em dada situação (AQUINO, 2002, p. 515-516).
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Esse método de ensurdecer, cegar e calar a imprensa ultrapassava os campos político e
social e vetava toda e qualquer notícia que pudesse comprometer a política econômica do
governo.
O segundo documento aqui analisado classificado como Instruções Reservadas foi
elaborado e encaminhado para o Delegado Chefe da Polícia Federal no Rio de Janeiro também
em 14 de setembro de 1970. Iniciando com uma justificativa para a ação repressora do governo
o texto afirma o seguinte:
1- A campanha difamatória contra o Brasil, aumentou nestes ultimos tempos,
principalmente, pelo crescente fracasso das atividades subversivas e que não interessa
aqueles elementos das organizações terroristas, que tramam e trabalham por uma
“liberação do Brasil”. 2- Essa campanha de calúnias e difamação é feita contra o Brasil
pela imprensa estrangeira, jornais e revistas, etc que ultimamente, mediante matéria
paga, escritas por elementos dessas organizações terroristas, procuram desmoralização
do governo brasileiro. 3- A fim de se evitar que essa campanha difamatória seja
difundida ao povo brasileiro, o delegado regional deverá tomar as providências
necessárias para a verificação prévia de tôdas as revistas que entrem no território
nacional. 4- Nenhuma revista que tiver artigo difamando o Brasil, principalmente no
que tange a terrorismo, genocídio e tortura, deverá ser permitida sua distribuição e venda
(DPF, OFÍCIO nº 206/70).
A evidente preocupação com a imagem do governo levou a Polícia Federal a fiscalizar
muitas publicações estrangeiras como o jornal francês Le Monde. Também revistas classificadas
como de conteúdo adulto, de origem estrangeira e que passaram a ter versões nacionais, eram
vigiadas de perto, como a revista Êle Ela. Esse controle estava enquadrado nos dois campos
institucionais da censura da ditadura militar mencionados anteriormente, a censura moral e a
censura política.
Logo depois da entrada em vigor do decreto-lei 1.077/70, a Polícia Federal baixou
portaria proibindo a circulação de algumas publicações periódicas e disciplinando o critério de
venda de outras, sempre com a exigência de que elas viessem embaladas em material opaco,
resistente e hermeticamente fechado (MAIA, 2002, p. 480). Mas todas essas regras e controle
não impediram que muitos artigos considerados transgressores acabassem sendo publicados,
que muitos jornalistas e editores fossem presos e muitas publicações entrassem em uma espécie
de lista de inimigos do governo.
Publicações censuradas
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Para controlar o que se falava do Brasil no exterior, o governo definiu como uma das
atribuições do setor de censura da Polícia Federal a leitura e tradução de artigos de jornais
estrangeiros que mencionassem o Brasil e as ações políticas e repressivas que pudessem
difundir uma imagem “ruim” do país ou mesmo serem lidas por brasileiros e inspirar “atos
subversivos”.
A estrutura de fiscalização e censura era grande e bem montada. Em relatório do setor
de censura da Polícia Federal no Rio de Janeiro referente ao período de janeiro de 1971 até 14
de junho de 1971, são apresentados os seguintes números:
Filmes apreendidos: 2; Intimações entregues: 59; Teatros Fiscalizados: 28; Televisões
fiscalizadas: 4; Boites (sic) fiscalizadas: 51; Restaurantes e Bares fiscalizados: 58;
Churrascarias fiscalizadas: 15; Fiscalização em bancas de jornais: 83; Letras de músicas
liberadas: 300; Letras de músicas vetadas: 25 (DPF, RELATÓRIO SCDP/DPF, 1971).
Essa fiscalização buscava controlar e proibir músicas, espetáculos, programas de TV e
rádio, jornais e revistas que não estivessem de acordo com a posição política e ideológica do
então governo e publicações estrangeiras receberam especial atenção.
Muitas foram as revistas e jornais censurados durante a ditadura militar e muitas foram
as pesquisas na área de história que se debruçaram sobre esse tema. Para este artigo optamos
por analisar a atuação da Polícia Federal junto a duas dessas publicações: no campo da censura
moral a revista Êle Ela e na censura política o Jornal Le Monde. Essas duas publicações que
mereceram atenção da censura servem como um indicativo das preocupações do então governo
e da aplicação das normas e instruções recebidas pela Polícia Federal em 1970. Ambos
passaram a circular no Brasil justamente no final dos anos 1960 e início da década de 1970 e a
análise pontual objetiva apresentar como a Polícia Federal aplicou as Instruções para censurar
esses dois veículos de comunicação imediatamente após o recebimento dessa incumbência.
Nesse caso específico as duas publicações foram acompanhadas pela mesma agente de censura
nos anos aqui analisados.
Inicialmente é importante destacar o perfil dessas publicações. O jornal Le Monde era
um jornal de opinião e não se furtava de comentar sobre o regime ditatorial brasileiro. a
revista Êle Ela era uma publicação de conteúdo adulto que versava sobre sexo, relacionamentos
amorosos e os papéis entendidos como masculino e feminino na sociedade. Mesmo com
universos tão distintos, essas publicações receberam acompanhamento de perto no início da
década de 1970 e refletiram, basicamente, duas coisas: as reações da ditadura militar ao que um
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grande jornal europeu entendia como a política de governo brasileira de então e os padrões
morais da sociedade brasileira.
Muitas notícias e análises do jornal Le Monde renderam reclamações diplomáticas do
Brasil junto ao governo francês e junto aos editores, diretamente. Segundo Paulo César Gomes
(2016), essas reclamações não surtiram efeito uma vez que a França respeitava a liberdade de
imprensa. Já muitas reportagens da revista Êle Ela questionavam a solidez dos padrões morais
da sociedade brasileira ou revelavam, na seção “Fórum” (suplemento da revista que divulgava
cartas com histórias eróticas de leitores), que a moral e os bons costumes defendidos pelo
governo tinham outra face no ambiente privado.
Entre as notícias traduzidas e arquivadas na Polícia Federal do jornal Le Monde destaca-
se uma do dia 20 de agosto de 1971, intitulada “Oposição legal critica a ‘desnacionalização’ da
economia”. Além do assunto apresentado no título, outro tema importante foi mencionado:
tortura. Esse foi um dos artigos traduzidos pelo setor da censura e classificado como notícia que
maculava o Brasil. A respeito dessas reportagens traduzidas para o português foram verificadas
nos arquivos do Jornal Le Monde e têm equivalência de conteúdo nos idiomas francês e
português – consulta realizada em novembro de 2019.
O primeiro parágrafo da referida notícia dava conta do assassinato do Luiz Eduardo
Merlino no dia 15 de julho de 1971, comunicado pela Liga Comunista, seção francesa da IV
Internacional. Merlino é apresentado no jornal como militante revolucionário brasileiro morto
por militares da Operação Bandeirante (OBAN), “centro de repressão contra movimentos
subversivos”. A Liga afirmava que “ele foi selvagemente torturado até a morte”. O mesmo havia
acontecido com o norte americano Stuart Jones. Para confirmar essas informações o jornal
afirma que Pedroso Horta, presidente do MDB, único partido de oposição tolerado pelo regime,
pediu abertura de inquérito sobre os fatos mencionados. O mesmo MDB que havia lançado uma
companha contra a censura algumas semanas antes (Le Monde, nº 8273 de 20 de agosto de 1971)
1
.
Porém, a própria representatividade do MDB também estava em dúvida já que nas
eleições legislativas de 1970 havia conquistado apenas 15% dos votos. Nesse ponto, destaque
importante do Le Monde está no registro de que nessas mesmas eleições, atendendo ao apelo
revolucionário, de 30 a 50% dos votantes de grandes cidades votaram em branco ou nulo,
escrevendo “à baixo a ditadura” nas cédulas eleitorais (Le Monde, 8273 de 20 de agosto de
1971). O Jornal O Estado de São Paulo, citado pelo Le Monde, pedia aos “eleitos”,
maciçamente da Aliança Renovadora Nacional - ARENA, que meditassem sobre essa “grave
advertência” lançada pelos eleitores (Le Monde, nº 8273 de 20 de agosto de 1971).
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Por outro lado, em um curioso jogo político, o MDB lançava a responsabilidade por
isso no governo que, ao suprimir toda a oposição legal e democrática, favorecia a aparição de
um partido de subversão e conspiração. Tal afirmação atacava a ambos, governo e contrários
ao governo, isentando, assim, apenas o “imparcial MDB”.
Foi nesse cenário de participação restrita que o MDB tentava atuar como oposição ao
governo. É exatamente essa restrição que leva o partido a ater-se a um elemento da política
ditatorial como mote de sua oposição: a economia. A política econômica de controle da inflação
do então ministro Delfim Neto estava favorecendo grandemente o capital estrangeiro e foi esse
o ponto de apoio da oposição oficial, o MDB divulgada pelo Le Monde.
Segundo o MDB e mesmo alguns membros da ARENA, a cota de alerta já foi atingida,
senão, há muito tempo ultrapassada. Em certos setores, a economia brasileira foi
“desnacionalizada em três quartas partes. Essa evolução surgia no final de um
inquérito dirigido, em 1968, por uma comissão parlamentar. Naquela época, um
deputado, Rubem Medina, comunicou que os investimentos estrangeiros envolviam
72,61% dos bens de produção, 34,61% dos bens intermediários e 78,32% dos bens de
consumo durável (sic). Mais ou menos dois anos mais tarde, um estudo publicado em
número especial do hebdomadário VISÃO confirmava essa tendência. Enfim,
algumas semanas, o senador Franco Montoro, do MDB de São Paulo, arvorou-se em
defensor dos interesses nacionais, desta vez usando os números dados pelo Banco
Central do Brasil. Por essa informação, os grupos estrangeiros detêm 70,2% dos capitais
investidos na indústria, 58,3%no comércio, 67,8%nos transportes, 89,9 na publicidade
e 69,2 na imprensa (Le Monde, nº 8273 de 20 de agosto de 1971).
Isso poderia sugerir uma preocupação do MDB com a economia do Brasil, mas para o
jornal seria, na verdade, uma preocupação política e o discurso econômico apenas
buscava angariar simpatia da classe média e da pequena burguesia, vítimas da
especulação provocada pela concentração de capital que se acelerou desde 1960. O
partido também tenta seduzir as classes populares, que pagaram caro a luta contra a
inflação (bloqueio de salário, alta de preços e desemprego) apresentada como prêmio
da recuperação econômica (jornal Le Monde, nº 8273 de 20 de agosto de 1971).
Outro deputado do MDB do Rio de Janeiro, Danton Jobim, pedia ao presidente da
República a revogação da lei de censura aos veículos de informação. Porém, o governo
construiu uma narrativa para o período de ditadura militar que o classificava como “fase de
transição que deveria conduzir ao pleno restabelecimento da democracia”, mesmo que essa
suposta fase já durasse vários anos e não existisse perspectiva de encerramento. Nesse cenário
idealizado, o governo militar entendia que a sociedade e a imprensa não poderiam suportar tal
liberdade, não teriam sabedoria para tal.
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Em 8 e 9 de agosto de 1971 o Le Monde noticiou prisões e tortura no Nordeste brasileiro
que mereceram atenção e tradução do setor de censura da Polícia Federal. Tendo por base
personalidades e associações, entre elas a Associação dos Estudantes latino-americanos em
Paris, o jornal cita o caso do analista de laboratório preso com a mulher e os três filhos pequenos
e do temor de que fossem torturados ou maltratados em frente aos pais para que esses passassem
informações. Foram presos outros oposicionistas do governo e, “segundo a Associação dos
Estudantes latino-americanos, todos correm risco de morte, pois o regime totalitário que reina
no Brasil, não hesita em matar seus prisioneiros, antes que a opinião pública tome
conhecimento” (Le Monde, nº 8273 de 20 de agosto de 1971).
Já a revista Êle Ela teve, durante o ano de 1971, uma censora específica designada. Em
relatório apresentado ao Delegado Regional da Polícia Federal no Rio de Janeiro de dia 5 de
julho de 1971, a censora inicia informando que fiscalizou os três últimos números referentes
aos meses de maio, junho e julho. Para situar o delegado no universo da publicação a censora
informa que a revista Êle Ela
foi lançada em maio de 1969, depois da compra dos direitos de reprodução da revista
alemã JASMIM (...) Inicialmente, esta publicação tinha como base editorial todos os
problemas relacionados com a vida do homem e da mulher, dando maior preponderância
ao aspecto sexual. Diversos e posteriores acordos e combinações com as autoridades
federais e estaduais (Juizado de Menores) resultaram numa alteração substancial da
programação: o tema central da revista continua sendo o mesmo (o homem e a mulher
em seus múltiplos relacionamentos), mas o aspecto sexual foi diluído e equilibrado em
outros aspectos: legal, moral, social, profissional, etc (Relatório apresentado pela agente
de censura Marina M. Ferreira em 5 de julho de 1971).
As autoridades brasileiras também exigiram supressão do aspecto erótico contido em
imagens. A censora afirma que a revista prontamente atendeu às exigências, ainda mais depois
da promulgação de uma lei federal e de um decreto sobre o tema, caracterizando o que Kucinski
chama de autocensura.
Ainda de acordo com o relatório a censora indica ter encontrado uma excelente e bem-
intencionada vontade” por parte dos editores da revista de adaptar a linha editorial daquela
publicação às leis e aos regulamentos em vigor. A censora, que frequentou a redação da revista,
ressalta que “lia textos, examinava as fotos, e não houve uma sugestão ou dúvida que eu
levantasse que não fosse imediatamente aceita ou corrigida, mesmo quando acarretava sérios
prejuízos industriais à empresa” (FERREIRA, 1971, p 1).
Os prejuízos apontados pela censora referem-se à necessária substituição de textos ou
imagens, supressão de partes da publicação, mudanças na editoração e na parte gráfica, muitas
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vezes quando a revista já estava pronta para impressão. Em sua avaliação e censora sugeria que
“poderiam ocorrer exageros operacionais no futuro, mas não erros essenciais, pois a linha da
revista e o seu caráter geral é, agora, da mais sadia compostura moral” (FERREIRA, M.M.
Relatório. 5 de julho de 1971, grifo no original). Para justificar sua aprovação, a autocensura e
a censura prévia realizada pela e na revista Êle Ela, a autora do relatório afirma que temas
delicados foram tratados com delicadeza e sensatez, sem grosseira, dando exemplo da
reportagem sobre drogas, publicada no número 26, sobre virgindade no mero 25 e suicídio
no número 27 da revista. Com isso a revista passou a ter um “voto de confiança” e não
necessitava mais de um censor em tempo integral controlando-a.
Por outro lado, a censora registra que identificou a publicação posterior de fotos e textos
considerados “fortes”, vetados na Êle Ela, em outros jornais de grande circulação, levantando
a questão de possíveis falhas no trabalho de outros censores, ou jornais que estivessem burlando
a censura oficial. Para finalizar o relatório Marina M. Ferreira enfatiza
A notória dificuldade de se caracterizar o ponto justo em matéria de tão alto teor
subjetivo. Numa época em que a educação sexual é recomendada pelo Vaticano,
ensinada nas escolas e discutida em todos os veículos de comunicação, uma revista
moderna que se destina aos problemas do homem e da mulher não poderia evitar de
abordá-la. Pelo caráter sócio-econômico de nossa realidade, tais assuntos não podem ser
tratados, ainda e apenas, sob o rigor explicitamente científico, mas através de
depoimentos e entrevistas que analisam o problema de ângulos diferentes, mas elevados,
sempre (FERREIRA, 1971, p. 1).
Aqui cabe destacar que, mesmo seguindo orientações claras e documentadas, a
subjetividade do trabalho dos censores era sentida e registrada por eles como no caso citado
acima. A formação e “moral” pessoal de cada um desses funcionários pesava muito em seus
trabalhos de proibir e vetar o que deveria ser considerado inapropriado, por exemplo.
Além das traduções do jornal Le Monde e do acompanhamento da revista Êle Ela a
censora Marina Ferreira emitiu parecer sobre outras publicações em língua francesa como o
Hebdomadário VOUS ET MOI (nº13 de 6 de março de 1971). O pequeno relatório elaborado
nesse último caso indicava que, mesmo referindo-se a relacionamentos íntimos de marido e
mulher, a publicação usava linguagem discreta, sem ser pornográfica, podendo ser distribuída
em sua língua original (FERREIRA, 1971, p.1).
Em outra ocasião, e servindo aqui como exemplo das regras e normas vigentes aplicadas
pelos censores da Polícia Federal, a mesma censora Marina Ferreira indicava em relatório do
dia 7 de maio de 1971, que, após acompanhar a edição do jornal GIL BRANDÃO, que seria
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publicado no dia 9 de maio, identificou aspectos considerados inadequados e estabeleceu as
seguintes restrições:
Suprimir a parte assinalada no artigo 9-2001 14, sobre travesti; reformular ou suprimir
as partes assinaladas no artigo sobre infidelidade 9-1901 18 9-1903 (suprimir o
tópico A SOLUÇÃO DEFINITIVA até a palavra vivi); 9-1904 (suprimir a parte
assinalada e o tópico INFIDELIDADE totalmente e reformular a CUMPLICIDADE
DISCRETA); suprimir ou reformular o comentário sôbre o filme “Ted, Bob, Carol and
Alice” (assinalado) 9-2101-15 (DPF, RELATÓRIO, 7/5/1971).
O filme citado pela censora retrata uma experiência de casamento aberto em uma sátira
à moral estadunidense dos anos 1960 e foi visto como passível de influenciar de forma negativa
os leitores brasileiros. Esses curtos relatórios sugerem que muitas publicações eram fiscalizadas
eventualmente ou por amostragem, sem um acompanhamento regular.
Nesse universo nebuloso do que, como e porque censurar no início da década de 1970
procurou-se estabelecer um padrão moral oficial que deveria ser seguido pelas famílias e
cidadãos de bem. Esse padrão trazia definidos os “papéis” masculinos e femininos da
sociedade e tudo o que não se enquadrava poderia ser considerado subversão. As revistas não
podiam apresentar imagens com partes íntimas de corpos humanos, homossexualidade era
condenada e o papel submisso da mulher era reforçado, transfigurado em uma crítica aos que
afirmavam que as mulheres não tinham liberdade. Exemplo disso está na reportagem publicada
na própria revista Êle Ela de 1972 sob o título Ser Mulher não é tão Ruimde autoria da
escritora Constance Borgan. O enunciado do texto afirma que
O movimento feminista tem explorado a situação secundária e submissa da mulher na
sociedade. As teóricas da emancipação costumam considerar degradante a posição da
mulher, escravizada pelo homem, pelo lar, pelos filhos, pelos tabus e preconceitos. No
entanto, nem todas as mulheres têm queixas contra o chamado “estado vigente”. Nesse
artigo, a escritora americana, tão conhecida pelos seus artigos em Cosmopolitan,
demonstra que nem tudo está perdido quando se é, apenas, mulher (BORGAN, 1972,
grifo nosso).
A revista Êle Ela se consolidou no Brasil como publicação controlada, direcionada ao
público adulto e com apresentação lacrada em bancas, mas seu conteúdo já estava previamente
censurado pelo governo e pela própria revista. A capa de seu primeiro número, com um
suplemento intitulado “Dicionário de Educação Sexual”, tinha o visto oficial e, depois de um
ano de circulação no Brasil, a edição comemorativa com uma reportagem sobre o perfil dos
leitores também diz muito sobre os padrões morais da sociedade.
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Sob o título Quem Êle Elao periódico aponta que seus leitores são da classe média,
têm nível de instrução que vai do médio ao superior, a metade dos leitores possui carro e a outra
metade pretende adquirir um nos próximos meses. A renda média dos leitores era de
NCr$ 1.109,00 no Rio de Janeiro e NCr$ 1.844,00 em São Paulo (Êle Ela. Ano 2, 14, julho
de 1970). Ou seja, era a classe média urbana, em grande parte enquadrada na família tradicional
brasileira da época e que, em certa medida, não via com tanto estranhamento a intervenção do
governo através da censura. Por isso a adaptação da revista “às normas vigentes” foi “bem-
aceita” por seus editores, segundo a censora que os acompanhou no primeiro semestre de 1971.
O mesmo pode ser dito de seus leitores.
Considerações Finais
A censura no Brasil foi uma forma de controle social e político. Entre 1964 e 1985,
formalmente, a ditadura militar atuou controlando e tutelando a sociedade como se ela não
conseguisse escolher o que deveria ou poderia ler, ouvir ou ver. Porém, objetivamente, o que o
governo pretendia com a censura era não se expor, não deixar que fossem publicizadas suas
falhas, crimes, omissões e incompetência políticas, administrativas e jurídicas.
A censura só tem justificativa para aqueles que temem ser questionados em suas ações
ou falhas e tem lastro entre setores da sociedade que se sentem incapazes de selecionar ou
interpretar autonomamente notícias, obras culturais e fatos políticos de seu tempo. A censura
oficial implementada durante a ditadura militar brasileira de 1964 a 1985 cerceou ideias, proibiu
opiniões, condenou manifestações culturais legítimas sob justificativa de defender a moral de
um grupo que ocupava o poder. Essa imposição de valores, na maioria das vezes, atuou como
cortina de fumaça para práticas criminosas referendadas, acobertadas ou mesmo praticadas pelo
governo.
A Polícia Federal, que deveria ser uma polícia de Estado, passou a atuar como a polícia
do governo. Suas atribuições originais de controle de fronteiras, portos e aeroportos, quando de
sua criação na década de 1940, foram acrescidas durante a ditadura militar - e muito fortemente
da função de controlar bancas de revistas, festivais de música, teatros e o que se falava do
Brasil no exterior. Os documentos analisados nesse artigo são um indicativo dessa atuação da
Polícia Federal e sugerem que muitos outros documentos administrativos, reservados ou de
circulação restrita foram produzidos com o objetivo único de controle ideológico, circulação de
ideias e repressão aos opositores do governo. Como consequência os ditadores buscavam
permanecer no poder indefinidamente e sem questionamentos. A censura praticada via Polícia
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Federal a partir de 1970 pode servir como alerta de que a democracia não é simples, mas
fundamental, necessária, e precisa ser defendida por agentes públicos e sociedade civil.
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Recebido em 22/06/2020.
Aceito em 09/10/2020.
1
Le Monde, nº 8273 de 20 de agosto de 1971. A tradução citada faz parte do acervo: NAD∕SELOG da
Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro e o texto original consultado no arquivo digital do jornal Le
Monde comprova a legitimidade da tradução. Consulta realizada em 24 de novembro de 2019.