Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrões e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01 –
ISSN 2238-9717
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DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11549
Entrevista com o professor Dr. Otávio Luiz Vieira Pinto
Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB)
1
Renato Viana Boy (UFFS)
2
Otávio Luiz Vieira Pinto é professor de História da África da Universidade Federal do Paraná,
pesquisador do Middle Persian Studies (MPS) e do NEMED (Núcleo de Estudos
Mediterrânicos), além de colaborador do projeto internacional Networks and Neighbours.
Durante sua formação, trabalhou, no mestrado, com a obra de Cassiodoro (UFPR) e, no
doutorado, com a de Jordanes (University of Leeds). Atualmente, tem dedicado suas pesquisas
ao mundo persa e às trocas culturais entre os grupos da costa Suaíli, na África, e os grupos
árabes e iranianos do Oriente Médio, entre os séculos VI e XI. Em seus trabalhos mais recentes,
o professor Vieira Pinto tem dado ênfase na expressão ‘Pré-moderno’ para se referir aos
períodos anteriores ao século XV. Assim, apresentamos aqui uma entrevista com um jovem
historiador, cujas trajetória e temática de pesquisa atual dialogam diretamente com a proposta
temática deste dossiê.
Fronteiras: A chamada "Era Digital" já vinha impulsando algumas demandas relacionadas
com a História Pública e as Humanidades Digitais. Temos acompanhado muita produção
historiográfica nas últimas décadas se voltando para temáticas assim. De igual modo, além do
trabalho com digitalização de acervos, tanto textuais como audiovisuais, os historiadores e
historiadoras tem contribuído, cada vez mais, com a produção de páginas na internet, podcasts,
canais em diversas plataformas e assim por diante. As áreas de História Antiga e História
Medieval já participavam intensamente deste processo, talvez até com certo pioneirismo, por
uma questão de necessidade. Depois da Covid-19, parece que o que era incentivado está se
tornando uma tendência. Como você avalia estas questões, suposto pioneirismo de Antiga e
Medieval e ênfase nas digitalidades no mundo pós-pandemia? É um caminho sem volta?
Otávio Luiz Vieira Pinto: Acho que a grande questão que paira acima de tudo é a seguinte:
para que serve a História? Ou melhor, qual é a relevância da História? Pensar nesta “utilidade
social” implica, naturalmente, em avaliar as formas de acesso e de divulgação das produções
1
Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (2012), com estágio de Pós-Doutoramento na
Universidade de Oxford (2017). Atualmente é professor de História Antiga e Medieval da FURB Fundação
Universidade Regional de Blumenau. E-mail: vieiradominique@hotmail.com
2
Doutor em História pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente é professor de História Antiga e
Medieval da UFFS Universidade Federal da Fronteira Sul campus Chapecó. E-mail: renato.boy@uffs.edu.br
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historiográficas, bem como seus variados alcances. Não precisamos estender o debate da
“utilidade”, mas é preciso lembrar que a História, como “estudo do passado”, também é uma
reflexão sobre o presente, e, portanto, acho produtivo e até esperado que a historiografia
seja adequada às formas comunicacionais do presente (e também à suas demandas sociais). No
que tange ao estudo do mundo pré-Moderno, certamente há um pioneirismo na aproximação
com as realidades digitais. Creio que a resposta simples seja por conta das formas de acesso,
em especial aos arquivos de documentação primária. No Brasil, nosso acesso físico aos acervos,
aos manuscritos, aos museus, é virtualmente nulo. Sempre dependemos, por questões logísticas,
do trabalho com ebooks, com edições documentais escaneadas, microfilmes, etc. A internet,
assim, veio para facilitar o trabalho de pesquisa, mas também veio para popularizar o estudo da
pré-Modernidade em etapas iniciais da vida acadêmica, como a graduação. Na impossibilidade
de realizar longas viagens de pesquisa para o exterior, alunas e alunos podem fazer download
de toda uma sorte de materiais, antes restritos. A internet como ferramenta de pesquisa é o
primeiro passo para a internet como divulgação de pesquisa. E aqui as digitalidades são
fundamentais. Já faz algum tempo que historiadoras e historiadores entenderam que a
relevância social da produção historiográfica ganha corpo mais intenso quando disposta online,
em forma de podcast por exemplo: o formato permite que qualquer pessoa, seja da área ou não,
tenha acesso aos resultados de pesquisa. A pandemia forçou pesquisadoras e pesquisadores a
darem um passo além: organizar encontros de maneira remota. Congressos, uma das pedras
basilares da atividade de pesquisa, eram a “última fronteira”, em termos de acesso, para
estudantes e acadêmicos do Sul Global, por exemplo. Participar de congressos em outros
continentes demandava um gasto oneroso demais para profissionais e estudantes. O isolamento
social forçou uma passagem do encontro presencial para o encontro virtual, e essa passagem
tem se mostrado frutífera: não só expande em grandíssima medida as possibilidades de
participação geral, como também altera a lógica de acesso do grande público aos produtos de
pesquisa: se antes os podcasts ou os canais do Youtube eram tidos como formas condensadas
de popularização das ciências, agora o público interessado pode assistir diretamente os
encontros acadêmicos, os seminários e congressos. É difícil medir o impacto imediato dessa
acessibilidade quase irrestrita, mas algo precisa ser dito: a atividade remota precisa ser
incorporada ao trabalho historiográfico de forma séria. É preciso que nós, historiadores e
historiadoras, estejamos abertos para as demandas comunicacionais do nosso presente. Isso
inclui não apenas entender que encontros virtuais talvez sejam, sim, um “caminho sem volta”,
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mas também que produções digitais, como podcasts ou vídeos, são formas tão sérias e válidas
de apresentação dos resultados de pesquisa quanto livros ou artigos.
Fronteiras: Você conhece um pouco Santa Catarina, pois trabalhou na Udesc, a Universidade
do Estado, no Campus de Florianópolis. Como você percebe as áreas de História Antiga e
Medieval no Estado de Santa Catarina? Em sua opinião, o estudo destes arcos cronológicos
específicos em âmbito catarinense se parece com o que você experienciou em outras
oportunidades ao longo de sua trajetória acadêmica, tanto no Brasil quanto na Europa,
sobretudo na Inglaterra? Que avaliação você faz? Há pontos em que precisaríamos nos
aperfeiçoar? Há algo que fazemos bem? Há algo, por exemplo, que a historiografia catarinense
poderia ensinar a Leeds? E qual foi a experiência de lecionar estas temáticas em um
Departamento de História com ênfase em História do Tempo Presente?
Otávio Luiz Vieira Pinto: Eu diria que Santa Catarina é um caso “meteórico”, emblemático
no âmbito da Academia brasileira. Sabemos que, por boa parte do século XX, os estudos da
Antiguidade e do Medievo eram realizados majoritariamente no Sudeste. Ao longo do século
XXI este cenário foi mudando, se expandindo, mas Santa Catarina ainda era um “estado tímido”
neste contexto. Tudo mudou recentemente: hoje, temos pesquisadoras e pesquisadores desta
área na FURB, na UFFS e na UFSC. Os responsáveis por este boom pré-Modernos são jovens
e, em sua totalidade, trazem consigo pesquisas atuais, críticas e pouquíssimo exploradas no
Brasil. Antes um “estado tímido”, hoje as instituições de ensino superior catarinense abrigam
pesquisas sobre Irlanda Antiga, sobre História Global pré-Moderna, sobre o Período Clássico,
sobre o Mundo Romano Oriental, sobre Índia Antiga, sobre Magia e Práticas Religiosas na
Eurásia como um todo... isso não é pouco! Essa efervescência temática tem atraído também
estudantes de graduação e pós-graduação, o que naturalmente dará continuidade à essa
dinâmica de pesquisas inovadoras. E talvez seja justamente este ponto que diferencie Santa
Catarina e alguns outros estados brasileiros dos espaços mais bem estabelecidos, nacional e
internacionalmente: o senso de “novidade”. Um terreno vazio é também um terreno fértil, e este
influxo recente de pesquisadoras e pesquisadores vem permitindo que o estado se construa com
uma identidade própria e, talvez, até mesmo mais plural em termos de investigação histórica.
Isso não quer dizer que os espaços tradicionais de pesquisa possuem deméritos temáticos, mas
é preciso reconhecer que a pouca idade da historiografia pré-Moderna em Santa Catarina cria
sua própria lógica. Na Inglaterra, por exemplo, é comum que os antiquíssimos departamentos
influenciem, seja pelo seu professorado, seja pelo peso da tradição, na escolha de temas de
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pesquisa, mantendo uma certa homogeneidade. A diferença que espaços mais novos trazem é
justamente em seu “Iconoclasmo” e na infinidade de possibilidades científicas. Talvez essa seja
a grande lição catarinense para o Brasil ou para a historiografia eurocentrada: a novidade vem
acompanhada de versatilidade, de vozes críticas, com novas perguntas. Esta lição, inclusive,
não se restringe somente ao estado, mas ao Sul Global como um todo. São dos espaços
“subalternos” ou menos tradicionais que surgem as ideias revigoradas (e revigorantes). Contudo,
o boom pré-Moderno ainda não encontrou seu espaço em todas as instituições de ensino
superior do estado. A UDESC, neste caso, já havia cravado seu nicho específico de História do
Tempo Presente (o “oposto completo” da Antiguidade e do Medievo, portanto) e, talvez com
certa razão, se mantenha fiel a ele. Em minha rápida passagem pela instituição, contudo, percebi
sim um espaço para desenvolvimento: havia curiosidade e interesse não só entre o alunado, mas
também entre algumas professoras e professores. A UDESC, é claro,abrigou pesquisas de
graduação na área de História Antiga e Medieval, mas ainda uma barreira na pós-graduação.
Talvez isso mude no futuro próximo, talvez não... porém, posso dizer que a experiência de
trazer a pré-Modernidade para o campo do Tempo Presente foi muito interessante, em especial
do ponto de visto “egoísta”: aquele foi um espaço que me levou a pensar não apenas alguns dos
pontos que pesquiso, mas também algumas implicações do que faço. Em outras palavras,
circular em um departamento cujo foco é tão distante da minha pesquisa me permitiu criar novas
indagações em relação aos meus métodos de análise, ao meu cabedal conceitual, e até mesmo
às minhas fontes mais usuais.
Fronteiras: Depois que você se tornou professor de História da África na UFPR, você tem
enfatizado a terminologia "Estudos pré-modernos"? Isso estaria relacionado com uma
necessidade de evitar as formas "Antiga" e "Medieval" para História da África? É um diálogo
com as provocações apontadas pelo professor José Rivair Macedo da UFRGS ou tem mais
relação com os diálogos sobre História Global? A ênfase na modernidade como parâmetro de
classificação cronológica não representaria um prejuízo?
Otávio Luiz Vieira Pinto: Minha tentativa de “naturalizar” a terminologia “p-Moderno”
responde tanto à provocação que o professor José Rivair Macedo já fez em fóruns públicos
quanto à necessidade de pensar espaços de forma mais “global”, diversa e inclusiva a partir de
mecanismos de integração. Porém, eu diria que o pilar principal que sustenta meu
posicionamento é, em certa medida, político: é uma tentativa de apontar que as raízes
epistemológicas dos estudos Antigos e Medievais estão cravadas no terreno da Modernidade,
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quando as ciências europeias viram a necessidade de elaborar narrativas universais,
protagonizadas por um avanço linear que vai da Grécia para Roma, de Roma para os reinos
europeus e assim por diante. Obviamente que, hoje, estudiosos da Antiguidade e do Medievo
já criticaram esta postura e, em grande medida, já superaram essa questão. O que não foi
superado, eu diria, é o que chamo de “protagonismo temporal”, em que as divisões pedagógicas
da História ainda respondem à movimentos mais ou menos eurocentrados. O que isso significa?
Significa que os grandes blocos históricos, em especial quando dispostos nos livros didáticos,
ainda funcionam na lógica da narrativa mestra criada na Modernidade. Ainda que, na Academia,
essa postura não seja hegemônica, ela o é nas escolas e na consciência histórica de um público
geral. Falar em “medieval evoca, por exemplo, uma imagem histórica e estética que ainda se
entrelaça com estereótipos e posicionamentos superados. O que isso significa para os espaços
não-europeus? Que imagem é evocada quando se fala em “África Medieval”? Aqui entramos
num segundo problema: o “Orientalismo”. Uma “África Medieval” é um espaço de caravanas
no Saara? De turbantes e comerciantes de escravizados? O “Islã Medieval” é um espaço de
califas? De cimitarras e camelos? Todos estes estereótipos, que podem ser entendidos a partir
dos debates sobre Orientalismo de Edward Said, ainda são firmes, fixos tanto na Academia
quanto fora dela. Assim, defendo que o termo “pré-Moderno”, além de trazer um campo “não
semeado” por narrativas ultrapassadas, também permite pensar mecanismos de integração e de
protagonismo histórico sem incorrer, imediatamente, à uma narrativa mestra, com “centros
históricos” claramente estabelecidos. O “pré-Moderno” abre espaço para uma diversidade de
focos, de vozes, de realidades... e o faz sem, necessariamente, usar a Europa como eixo de
classificação cronológica. Como? Entendendo “Modernidade” não como um período, mas
como um sistema de pensamento categorizante que surge com as visões historiográficas após
os séculos XV e XVI. Ou seja, o “pré-Moderno” aqui não indica um “pré-Queda de
Constantinopla”, mas um “pré-Formação do Pensamento Histórico Eurocentrado”. Assim, este
“pré-Moderno” que defendo funciona como uma anti-divisão, na verdade; como um chamado
para que tenhamos em mente as implicações das raízes profundas de nosso pensamento
histórico (implicações muitas vezes deletérias e epistemicidas). Obviamente, não considero que
falar de História Antiga e Medieval seja essencialmente um problema, mas defendo que
passemos por uma problematização historiográfica quando olharmos para espaços não-
europeus: a África de Mansa Musa, por exemplo, ou o Iraque de Hārūn Ar-Rašīd. Em outras
palavras: para melhor estabelecer uma perspectiva histórica mais ampla, mais “global”, mais
inclusiva e mais diversa, o “p-Moderno” funciona como bom termo Guarda-Chuva e um
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divisor adequado, até porque nos força a seguinte indagação: “que mundo era este que precedeu
a ascensão de uma visão de mundo supremacista, como esta que vigora tantos séculos no
Ocidente?”. Vivemos um momento em que se busca “decolonizar” o conhecimento tradicional,
então acredito que essa “decolonização” possa passar, também, pela nossa terminologia
cronológica. Por fim, gostaria de reiterar que o “pré-Moderno” não exclui outras divisões:
podemos falar de um mundo “pré-Moderno” que inclui uma Grécia Clássica, uma Pérsia pré-
Islâmica, um Medievo Ocidental, uma Antiguidade Greco-Latina. O “pré-Moderno” é mais um
manifesto de inclusão do que uma crítica direta aos que decidem, de forma muito legítima, é
claro, trabalhar em cima de divisões cronológicas que, em suas visões, definem melhor seus
métodos de pesquisa.
Fronteiras: Atualmente, testemunhamos uma presença constante de referências à
temporalidades pré-modernas em diversas mídias, como séries, games, filmes, entre outros. O
crescente interesse dos jovens nestas mídias, que trazem múltiplas representações da
antiguidade ou do medievo, estaria se refletindo também no interesse dos estudantes de
graduação em História por estas temporalidades para suas pesquisas? Em outras palavras, o
interesse crescente no entretenimento que tem a História Antiga ou a História Medieval como
pretensos cenários tem contribuído para o crescimento destas enquanto áreas de estudo? Ou, ao
contrário, estaria reforçando estereótipos contra os quais os historiadores vêm trabalhando há
muitos anos?
Otávio Luiz Vieira Pinto: Ambas indagações, acredito, são verdadeiras. Mídias de
entretenimento costumam trabalhar com atalhos cognitivos, isto é, com imagens prontas que
evoquem, imediatamente, um período específico. Como comentei acima, essa evocação quase
sempre passa por estereótipos cristalizados em uma consciência histórica. É assim que uma
série de fantasia como Game of Thrones é vista como medieval: trabalhando com atalhos
estereotipados a partir de “trevas”, “sujeira”, “violência”. Contudo, ao mesmo tempo em que
temos essa realidade, temos também muita gente estudantes, em especial preocupada com
os valores historiográficos e pedagógicas destas representações. Isso fomenta novas pesquisas
e acende interesses na investigação histórica. Contudo, eu diria que a grande contribuição de
área vem com uma virada na lógica documental: essas mídias diversas se tornam fontes de
pesquisa. Elas se tornam um condutor de averiguação, e isso opera uma alteração também na
lógica temporal: a História Antiga e Medieval se torna mais íntima, mais próxima de uma
produção comunicacional contemporânea. Estudar a pré-Modernidade como ambientação de
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filmes, séries e jogos borra as divisões temporais, e isso tem gerado resultados interessantes
que, se levados à sério, nos permitem até questionar as “fronteiras” cronológicas de nossas
disciplinas. Estamos falando de “Usos do Passado”? Sim, mas ao contrário do campo clássico
dos “Usos do Passado”, que é a política estatal e hegemonia cultural do imperialismo europeu,
este novo espaço de “Usos do Passado” trabalha com uma consciência histórica diferente, mais
corrente, mais “natural” no sentido de sua implicação cotidiana. Assim, talvez estudar o
entretenimento não só sirva para aproximar estudantes da documentação pré-Moderna, mas
também para diminuir o abismo que eventualmente existe entre quem trabalha com “Usos do
Passado” e quem trabalha com História Antiga e Medieval pura e dura.
Fronteiras: Para além das temporalidades p-modernas, você tem dedicado seus estudos ao
mundo oriental, em especial ao persa. Sendo ainda um campo pouco pesquisado por
historiadores brasileiros, quais as potencialidades e os maiores desafios para o desenvolvimento
de pesquisas neste campo?
Otávio Luiz Vieira Pinto: De fato, desde o fim do meu doutorado (que foi centrado em
documentação romana), venho me dedicando aos espaços asiáticos e, mais recentemente, às
conexões entre a Ásia Ocidental (o “Oriente Médio” e a Costa Oriental da África). Meu atual
projeto de pesquisa, inclusive, tem como ponto de partida os espaços africanos. Dito isso, ainda
lido com documentação persa, em especial pré-islâmica. A “Iranologia”, como é descrita fora
do Brasil, é um campo de pesquisa muito carente por aqui, sendo o Middle Persian Studies, da
UnB (grupo ao qual sou vinculado), talvez o único espaço institucional que tem se dedicado às
fontes persas. O Middle Persian Studies já formou uma porção de alunas e alunos de graduação,
bem como de mestrado e doutorado, graças aos esforços do professor Vicente Dobroruka.
Como um espaço nascente, certamente ele oferece uma enorme potencialidade de pesquisa, que
vai desde o estudo da Antiguidade Aquemênida à aurora do Islã, passando pelos textos
muçulmanos da Ásia Central e dos persianatos, sociedades influenciadas pela cultura persa que
se espalham entre turcos, mongóis e indianos a partir do século XI. Não faltam temas de
investigação, e seria uma contribuição inestimável para a historiografia feita no Brasil se mais
gente se dedicasse à esse campo. Contudo, ele coloca uma grande dificuldade: a língua. O
idioma das fontes é, sem dúvida, o maior desafio para o desenvolvimento de pesquisas na área
de Iranologia. Mesmo que tenhamos boas traduções disponíveis em inglês, eventualmente é
necessário que se conheça um pouco do persa médio, do persa novo e do árabe para manusear
as fontes. Para quem se interessa pela época sassânida (séculos III VII), como eu, há muita
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coisa escrita em persa médio, desde documentação escrita até inscrições epigráficas. O persa
dio é um idioma difícil, com uma escrita ainda mais complexa que, por sua vez, demanda
alguma noção de uma língua antiquíssima chamada avéstico. Não há maneiras simples de
estudar estes idiomas no Brasil, e isso torna a pesquisa muito mais complicada. É preciso,
portanto, conhecer o inglês para se ter acesso à gramáticas, dicionários e manuais de persa
médio, persa novo, etc. Se existe a possibilidade da pesquisadora ou do pesquisador contornar
estes desafios, os resultados serão ricos e originais. Tenho alguns artigos e capítulos de livro
ainda no prelo que trazem traduções de documentação em persa médio junto do texto original,
então espero que, de início, estes textos possam servir de apoio para quem tenha interesse em
começar a pesquisa a Pérsia p-Islâmica.
Fronteiras: Muitos historiadores defendem que o olhar de um pesquisador não europeu para
temáticas históricas pré-modernas lança sobre estes objetos uma abordagem distante dos
nacionalismos e das questões de pertencimentos a identidades tipicamente europeias. Desta
forma, os resultados das pesquisas sobre antiguidade ou o medievo, feitas por historiadores não
europeus, acabariam apontando para novas óticas de análises, mesmo sobre temas há muito
estudados na Europa, justamente por conta deste distanciamento geográfico. Entretanto, como
você avalia essa questão quando o recorte geográfico dos estudos se expande para o oriente e,
no seu caso específico, o oriente persa? Como pode ser observado o distanciamento
experimentado por um pesquisador brasileiro e um europeu, quando o objeto de estudos está
também fora da Europa?
Otávio Luiz Vieira Pinto: Esta questão se liga diretamente com o comentário que fiz acima
sobre a “pré-Modernidade”. Isso porque estudar um espaço fora da Europa implica, mais cedo
ou mais tarde, no trabalho com uma historiografia que é, ao fim e ao cabo, europeia. Os estudos
orientais nascem, afinal, na França, na Inglaterra e na Alemanha. O que isso nos mostra é que
não basta apenas estarmos fora dos espaços europeus, mas temos que pensar também para além
da historiografia europeia. Não pertencer geograficamente não significa que nossa
historiografia é automaticamente menos nacionalista que aquela produzida na Europa! Entendo
que brasileiras e brasileiros que pesquisam a Antiguidade e o Medievo comumente enfrentam
acusações de que seus trabalhos “não possuem relevância para o Brasil”, e assim é reconfortante
pensar que, meramente por sermos latino americanos, nossas vozes possuem uma qualidade
crítica, menos nacionalista, menos implicada na contemporaneidade dos assuntos europeus.
Contudo, essa voz fica silenciada quando nos aportamos completamente em trabalhos
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eurocentrados, em paradigmas europeus, em ideias europeias... é preciso dar um passo além. É
preciso olhar para o trabalho de colegas brasileiros e entender essa produção como legítima, é
preciso buscar metodologias críticas e decolonizantes, é preciso revisitar temas clássicos e
ideias bem estabelecidas. Sermos cidadãos do Sul Global certamente nos dá essa potencialidade,
mas precisamos efetivamente colocá-la em prática. É por isso que, se nossas ferramentas são
muito tradicionais, pouca diferença faz se estamos olhando a França de Hugo Capeto ou o Japão
de Toyotomi Hideyoshi. No fim, nosso condutor de análise será eurocentrado. Portanto, eu
diria: o distanciamento geográfico precisa vir ao lado de um distanciamento historiográfico.
Isso é muito evidente quando falamos de estudos sobre Ásia ou África, porque nossas
ferramentas de análise comumente vêm recheadas de eurocentrismo, de orientalismos e de
estereótipos. No campo acadêmico, é preciso pensar não apenas no recorte geográfico do
pesquisador, mas também no seu recorte epistemológico. Por isso, quando falo “europeu” ou
“eurocentrados”, não estou falando de pessoas, mas de moldes epistemológicos comprometidos
com projetos de dominação e de hegemonia. Portanto, em minha opinião, a pertença geográfica
não é o suficiente. É preciso saber qual é a “filiação historiográfica” de cada sujeito. Só assim
podemos saber que valores seu olhar traz sobre determinados espaços ou tempos históricos.
Acredito que é dessa forma que o distanciamento da pesquisadora e do pesquisador, no caso de
disparidades geográficas, pode ser observado.
Recebido em 20/05/2020.
Aceito em 30/06/2020.