Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
7
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
As trocas de correspondências entre Tibério César e a aristocracia senatorial durante
seu afastamento para Capri (26 37 d.C.): uma análise dos crimes de traição nos Anais
de Tácito
The correspondences exchanges between Tiberius Caesar and senatorial aristocracy
during his withdrawal to Capri (26 37 AD): an analysis of treason crimes in Tacitus’
Annals
Rafael da Costa Campos
1
Resumo
Este artigo tem como objetivo expor a
importância das trocas de correspondências
como fundamental ferramenta política e
administrativa do Principado. Para tanto,
concentraremos nossa análise no Principado de
Tibério César Augusto e no período em que se
afastou de Roma e residiu na ilha de Capri (26
37 d.C.). O seu afastamento foi um marco de
inflexão política em seu governo, e as trocas de
correspondências apresentadas por Tácito em
seus Anais expõem o seu impacto sob a
aristocracia mediante a intensificação dos casos
de acusações e condenações pelo crime de
traição (maiestas).
Palavras-chave: Tibério César Augusto;
maiestas; Tácito.
Abstract
This paper intends to show the importance of
correspondences exchanges as a prominent
political and administrative tool of Roman
Principate. This way, we concentrate our
analysis on the Principate of Tiberius Caesar
Augustus and the period of his departure from
Rome to Capri (26 - 37 AD). His withdrawal
was a political inflexion point in his reign, and
the exchange of correspondences showed in
Tacitus' Annals exposes its impact over roman
aristocracy throughout the growing of charges
and condemnations for treason crimes
(maiestas).
Keywords: Tiberius Caesar Augustus;
maiestas; Tacitus.
As trocas de correspondências concernentes a assuntos de estado são bem anteriores ao
período imperial romano. Por exemplo, durante o período helenístico, era bastante frequente a
circulação de correspondências entre monarcas, súditos e subordinados. Essa prática se
perpetuou no período republicano, com a posterior incorporação por parte de Roma de uma
extensa rede de circulação continental que gradualmente se consolidou ao longo do período de
expansão imperialista republicano devido à constante troca de requisições entre indivíduos de
localidades provinciais com os seus governadores, e destes com magistrados na cidade de
Roma, auxiliada por mensageiros escravizados e libertos (os tabellarii) para a circulação de
informações.
A partir do Principado, o Imperador passou a ser o centro das comunicações e o
atendimento de diferentes demandas administrativas e jurídicas se tornou uma de suas
1
Professor Adjunto Universidade Federal do Pampa. E-mail: rafaelcampos@unipampa.edu.br
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
8
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
principais funções como soberano. A comunicação administrativa e política entre o Imperador
romano e seus governados configurou-se como uma das principais características do processo
de integração mediterrânica que caracterizou o período imperial. Embora não seja a nossa
intenção trazer um debate de fôlego sobre o Imperialismo Romano, algumas considerações são
importantes para refletirmos sobre o processo de integração mediterrânica e o papel de Roma e
de seu Imperador nesse processo. Deste modo, a passagem da República para o Principado pode
ser sintetizada na consolidação de um processo expansionista resultante do entrecruzamento de
ações militares, de hegemonia informal e de influência política: entre Caio Mário e Augusto,
as ambições pessoais superaram as amarras aristocráticas tradicionais e asseguraram o
alargamento do imperium romanum para Oriente e Ocidente além da costa do Mar
Mediterrâneo. Ao mesmo tempo, essa expansão contou com intermitentes freios reguladores
em virtude de questões como a segurança do Princeps, a procura por fronteiras adequadas e as
revoltas internas. É principalmente sob esse contexto que a adaptação cultural perante a
dominação romana conceituada, não sem controvérsias, como “Romanização” – encontrou o
seu ponto de inflexão (BURTON, 2019, p. 74).
A literatura do Principado exaltava as virtudes de um soberano que soubesse se
comunicar com os seus governados. O Imperador Romano era considerado, assim como os
demais cidadãos da aristocracia senatorial a qual pertencia, pelas suas habilidades retóricas e
pela sua eloquência. Esperava-se que não somente fosse hábil ao discursar publicamente, mas
que também demonstrasse acurácia e zelo ao se corresponder com o restante do Império. Para
Fergus Millar, esses princípios nos ajudam a reconhecer uma dinâmica de “petição e resposta”,
de “ouvir e ser ouvido” que, desde Augusto, tornou-se um padrão de interação política e
administrativa imperial (MILLAR, 1992, p. 537-549). Nesse sentido, analisaremos as trocas de
correspondências durante o período em que Tibério César se afastou de Roma para a ilha de
Capri, com ênfase nas que destacam os crimes de traição. A comunicação escrita desempenhou
um papel central para a administração política, militar, e para a manutenção do poder. Junto de
outras formas de representação e símbolos de legitimidade como palácios, monumentos,
imagens e cerimônias, as correspondências eram os instrumentos de governo (EICH, 2012, p.
87-88).
Existiam grandes limitações diante da vastidão territorial e diversidade regional, como
o pequeno aparato fiscal e administrativo, as longas distâncias e os obstáculos de deslocamento.
As trocas de correspondências demoravam semanas ou meses para serem encaminhadas, e
mesmo com a existência de um “sistema de correios” (cursus publicus), baseado no
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
9
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
recrutamento de oficiais, escravizados, libertos e soldados, não havia muitas garantias de que
as mensagens privadas chegariam ao seu destino. Todavia, mesmo diante de todas as limitações
e da transitoriedade do próprio poder entre os Imperadores, estes se posicionaram como cerne
de uma vasta rede de comunicações, pela qual comandavam seus subordinados, recebiam
informações sobre o exército, receitas e outros assuntos. Sem o uso das correspondências, a
administração imperial teria sido impossível, ainda que não possamos definir a existência de
um padrão de “correspondências de estado”, embora os soberanos se apoiassem em um sistema
de administração e diplomacia baseado em princípios funcionais da corte imperial
(CORCORAN, 2014, p. 173; EICH, 2012, p. 87-92).
Dada a variedade de requisições provenientes de diversos pontos do Império, é bastante
difícil estabelecer um padrão exclusivo para estas correspondências. Do mesmo modo, suas
denominações e características variaram ou misturaram-se ao longo dos séculos do período
imperial. Além disso, nem sempre conseguimos estabelecer definições precisas sobre elas no
material histórico disponível, seja pela epigrafia, pelos textos literários ou códigos jurídicos.
Nestas condições, podemos apresentar algumas especificações sobre os gêneros de
correspondências trocadas entre o Imperador, seus funcionários e os demais intermediários e
cidadãos no Império, mais especificamente entre correspondências oficiais/públicas
(numeradas de 1 a 4) e oficiais e/ou individuais (5 e 6):
1. Edictum; πρόστγμα (prόstgma), διάταγμα (diátagma): os éditos eram
proclamações feitas por Imperadores ou governadores provinciais. Tinham o
caráter de lei, nem sempre possuíam um destinatário específico, mas eram
encaminhados para ampla circulação entre a população. Continham no final do
documento a frase “O Imperador disse” (verbo em Latim dicit, dicunt; em Grego
λεγει [legei] ou λεγουσι [legousi];
2. Mandata; έντσλαί (entslaí): os mandatos eram incumbências oficiais destinadas
aos governadores de províncias e pro-cônsules, mas também para os prefeitos
da cidade de Roma (praefectus urbi), com instruções ou demandas específicas
ao exercício do cargo;
3. Adnotatio, παρασημείωσις (parasēmeíōsis): similar ao memorando, é um
documento de difícil precisão, e que surge a partir do século III d.C. Era um
documento de resposta entregue por um oficial a determinado indivíduo ou
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
10
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
comunidade e conferia determinada garantia previamente requisitada ao
Imperador;
4. Diplomata: era uma carta de recomendação fornecida pelo Imperador a um
oficial, e que garantia a ele o direito de exigir transporte e alojamento durante
sua viagem;
5. Epistula, littera; έπιστολή (épistolé), γράμματα (grámmata): epístolas ou cartas
que continham uma frase de saudação e despedida formais ao destinatário. Além
disso, ambas podiam ser subdivididas em:
I. Quando escritas pelo Imperador, eram cartas legislativas de abrangência
imperial destinadas a oficiais ou suboficiais, por vezes acompanhadas
de éditos. Tornaram-se frequentes a partir do século III d.C.;
II. Respostas diretas a consultas ou requisições (consultationes) feitas por
oficiais ao Imperador, e que continham sua ciência pela presença do
verbo “subscrevo” (subscriptio) no final do texto, ou de variações como
“rescrito” (rescripto) ou “reconheci” (recognovi);
III. (codicillis): o codicilo era uma manifestação expressa do Imperador de
indicação de um determinado cidadão para um cargo;
IV. Correspondências enviadas em resposta a petições de indivíduos de
elevado status social (mas não enquanto detentores de cargos públicos)
ou mais comumente embaixadas e comunidades
1
.
6. Rescriptum, subscriptio, άντιγραφή (ántigraphé), (ύπογραφή) (úpographé): os
rescritos caracterizavam-se por não conter a formalidade de uma carta ou
epístola, pelas solicitações bastante pontuais de seu remetente, e pelo fato de que
o mesmo documento era assinado e devolvido pelo Imperador ao interessado.
Em determinados os tipos de correspondências imperiais, é possível observarmos tanto
semelhanças quanto imprecisões. Durante o período do Principado um manuscrito, carta, peça
literária, ou panfleto poderia ser denominado libelo (libellus), no entanto, assim como
“rescrito” (rescriptum), poderia referir-se também a uma petição, requisição ou solicitação
entregue por um oficial ao Imperador, ou encaminhada ao Imperador por qualquer indivíduo,
cidade ou comunidade do Império. Mais ainda, por vezes ambos os termos são substituídos ou
confundem-se com “carta” (littera) ou “epístola” (epistula), mas sem perder o sentido de
correspondência ou de oficialidade e vice-versa. Sob esse exemplo, qualquer análise que busque
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
11
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
uma distinção mais precisa entre os diversos tipos de documentação recairá em limitações de
diferenciação interna, especialmente durante a primeira metade do período imperial.
Igualmente, as fontes literárias não se atêm em oferecer descrições pormenorizadas
sobre a natureza, o trato ou o aparato burocrático que envolvia o cotidiano de produção e
circulação de correspondências. Igualmente, o conteúdo de algumas delas ou a maneira como
o Imperador lidava ou reagia a determinados picos é bastante lacunar, condicionados ao
interesse das autoridades literárias e às premissas da escrita da história entre os antigos, bastante
diferentes dos paradigmas historiográficos modernos. Deste modo, o que se reflete como
inferência indireta aos documentos como as correspondências imperiais se deve ao fato de
que os historiadores da Antiguidade nunca consideraram como tarefa uma organização
sistemática de documentação, e tampouco era simples o acesso a documentos nos moldes como
compreendemos a pesquisa contemporânea em arquivo (HEDRICK, 2006, p. 103-104).
Assim, somos pautados por deduções. Provavelmente o Imperador tomava
conhecimento e recebia diariamente uma grande e variada quantidade de correspondências de
diversas localidades. Não sabemos dizer se havia uma triagem prévia desses documentos,
conquanto a tradição aristocrática republicana das saudações matinais (salutationes) tenha se
mantido e, com esse hábito, também o atendimento a solicitações escritas entregues pelos
cidadãos aos funcionários ligados ao palácio. Se não sabemos determinar a quantidade de
funcionários que exerciam funções de secretariado junto ao Imperador, podemos pressupor sua
variabilidade, em razão das constantes viagens e deslocamentos da corte imperial dentro da
península itálica e nas províncias.
Inicialmente, servidores como ab epistulis, a studiis e a bibliothecis eram libertos ou
escravizados imperiais. a partir do século II d.C., esses cargos passaram a ser conferidos
como honras também a membros da ordem equestre, muitos com reputação pelo conhecimento
literário, como Suetônio, por exemplo. Contudo, não temos a dimensão exata ou a diferenciação
desses cargos entre si, embora possamos pressupor que tais funções se relacionassem mais com
as necessidades de manejo, despacho e arquivamento da documentação do que com o auxílio
ao Princeps para a composição de suas comunicações
2
.
Por outro lado, é provável, dado o volume de demandas que diariamente chegavam ao
soberano, que esse ditasse o conteúdo dos textos, ou mesmo desse apenas breves orientações
de resposta a depender da importância do assunto ou prestígio do solicitante. Embora saibamos
que a partir do século III d.C. o Imperador já contasse com o apoio de funcionários como
proximus ab epistulis, adiutor ab epistulis ou magister epistularum, é desconhecido o grau de
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
12
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
sigilo, influência ou participação desses funcionários ou dos amigos e conselheiros mesmo
que informalmente do Princeps na audição e resposta das correspondências. Mais ainda, a
despeito da existência de arquivos imperiais, inicialmente denominados nas evidências como
tabularium (tabulário/repositório) sanctuarium (santuário), commentarii ([séc. II d.C.] em
referência aos memorandos e notas que eram arquivados no local) e memoria ([séc. III d.C.]
igualmente em associação direta a memorabilia, conjunto de fatos ou registros dignos de
memória), não sabemos onde ou em quantos lugares ficavam, como os funcionários acessavam
os documentos ou mesmo em que medida esses arquivos se perpetuavam entre os Imperadores.
De todo modo, é improvável que correspondências fossem enviadas em seu nome sem o seu
conhecimento ou assinatura de próprio punho ou selo.
Nos Anais de Tácito, as inferências às trocas de correspondências estão relacionadas a
diversos temas: éditos de reprimenda contra a plebe urbana
3
; instruções sobre o funeral de Lívia
Augusta
4
; denúncias sobre o comportamento de Agripina Sênior e seus filhos
5
; proposição
senatorial de escolta do Imperador
6
; controvérsia em relação à guarda dos livros sibilinos
7
;
reprimenda aos senadores pela baixa iniciativa em assumir o governo das províncias
8
; e em
maior quantidade acusações de críticas ao Imperador, conspiração e traição à majestade
imperial
9
. Em todos esses trechos, os termos utilizados para descrever as correspondências
estão condensados pelos substantivos edictum
10
, littera
11
, epistula
12
e codicilo
13
.
Uma vez que nos dedicaremos aos trechos que versam sobre crimes de traição, outro
trecho foi incluído pela sua relação direta com o tema e contém um verbo que, considerado no
contexto dos capítulos na obra, pressupõe a comunicação escrita entre o Princeps, aristocracia
senatorial e/ou Senado. Com relação a tais crimes, precisamos em princípio compreender como
se desenvolveu o conceito de maiestas (majestade, soberania), como se desenvolveu a lei de
crime de traição (lex maiestatis) durante o período republicano, como esta lei se adaptou ao
estabelecimento do Principado a partir de Augusto e Tibério César, e qual foi o papel político
dos acusadores e delatores nesse contexto. Entre a República e o Principado, existiram três
diferentes sistemas de cortes judiciais e diferentes procedimentos de punição durante o período
que abarca boa parte da República e o Principado: a despeito da periodização, os três sistemas
ocorreram em sucessão e muitas vezes se sobrepondo uns aos outros.
A primeira fase durou ameados do século II a.C. e consistiu no julgamento pelo
magistrado e pelo povo (iudicium populi). Nesta fase, o caráter da pena capital ou afiançável
ficava a critério do tribuno da plebe e era votado pelos membros da assembleia popular. Até
meados do século I a.C. houve também outra fase, a do julgamento por um júri (iudicium
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
13
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
publicum), caracterizada pela existência de diferentes tribunais presididos por um magistrado
acompanhado de cinquenta jurados, com penas fixas (poena legis) e estatutos distintos.
Finalmente, com o início do Principado de Augusto surgiu a cogito extraordinaria ou
cognitio extra ordinem (sessão jurídica presidida por um magistrado imperial) que, em
concomitância aos sistemas anteriores, criou jurisdições criminais e fez com que o Senado
também passasse a atuar como corte judicial. O Princeps também passou a julgar casos dentro
do próprio ambiente da corte imperial ou delegar julgamentos para seus subordinados, como os
prefeitos urbanos, membros da guarda pretoriana ou governadores provinciais. Nesta terceira
fase, a principal característica é a ampliação do caráter discricionário do Imperador e do
Senado: ambos adicionaram novas categorias de atos ilícitos a leis existentes e novas penas
aplicadas de acordo com a autoridade sentenciadora majoritariamente o soberano. A despeito
do discurso augustano de respeito e reforço dos costumes e tradições republicanas, houve a
expansão das práticas acusatórias e punitivas e, diante da enorme demanda imperial, o emprego
da razoabilidade perante os casos passou a depender dos critérios de cada Princeps (BAUMAN,
1996, p. 5-6; 50-51).
Naturalmente, o desenvolvimento conceitual do crime de traição, e de forma análoga a
ação dos delatores, acompanhou as fases de evolução da tradição jurídica romana, com
transformações significativas ao final do governo de Augusto. A expressão lex maiestatis
advém da palavra maiestas (literalmente “majestade”), cujo amplo sentido remete ao
surgimento do sistema político e jurídico republicano. Por sua vez, tal palavra latina é derivada
de maior, e remeteu inicialmente à superioridade dos deuses (maiores) sobre os homens
(minores), sentido que logo foi adaptado ao relacionamento de superioridade dos romanos sobre
outros povos. Internamente, respeitar a majestade do povo romano (maiestas populi Romani)
se tornou compromisso primordial dos magistrados, embora esses também detivessem
maiestas, prestígio/influência (auctoritas) em virtude dos seus cargos e, por essa razão, se
sobrepunham ao cidadão comum (BAUMAN, 1967, p. 1-15).
Até o final do século II a.C., o crime de traição da soberania do povo romano era
imputado àquele que agisse como seu inimigo (perduellis), e consequentemente diminuísse sua
majestade (maiestatis minutae), o que inicialmente possuía forte conotação militar:
incompetência de um general e a derrota de suas legiões, rendição ou associação com o inimigo,
por exemplo. Por volta de 103 a.C., a Lex Apuleia do tribuno da plebe Lúcio Apuleio Saturnino
fundiu traição militar e maiestas, em um contexto de reformas promovidas pela facção política
dos populares e com o intuito de restringir os poderes de magistrados e governadores,
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
14
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
responsabilizando-os por quaisquer danos ao povo romano, acrescida da criação de uma corte
específica de justiça (publica quaestio). Todavia, tanto essa lei quanto sua posterior versão
criada por Lúcio Cornélio Sula (Lex Cornelia de Maiestatis de 80 a.C.) são opacas na tipificação
de atentados contra a maiestas do povo romano, embora esta última tenha absorvido as
infrações preexistentes e também proibido que governadores provinciais fugissem,
ultrapassassem as fronteiras com exércitos ou se relacionassem com reinos-clientes sem
autorização do Senado. Por último, a modificação de Júlio César (Lex Iulia de Maiestatis de 44
a.C.), deduzida de Ulpiano
14
, adicionou novos contornos políticos ao crime de traição, cuja
ambivalência e elasticidade foram legadas ao Principado de Augusto (HARRIS, 2007, p. 72-
77).
Antes de prosseguir com as transformações na caracterização do crime de traição entre
o Principado de Augusto e Tibério, é necessário destacar que em paralelo ocorreram
modificações na caracterização e atuação dos delatores, figuras importantíssimas para a
compreensão do impacto político que a evolução da lei trouxe para a aristocracia romana. O
termo delator veio das expressões nome deferre e delatio nominis, que transmitem a ideia de
“informar ou denunciar alguém”, e remete também à fase inicial dos julgamentos por extorsão
perante o tribunal do júri (questiones) republicano. Contudo, mais do que delator, nas
evidências literárias termos como quadruplator ou index eram mais comuns, e mesmo durante
o Principado delatores ou accusatores eram praticamente sinônimos pejorativos daqueles que
denunciavam, informavam, delatavam, acusavam ou mesmo agiam como testemunha e
encarregado formal de um processo dessa natureza.
Tácito, por exemplo, muitas vezes usa termos de natureza criminal para se referir aos
delatores e acusadores: condemnator (alcoviteiro), criminator (incriminador) ou calumniator
(caluniador). É interessante notar que se atribui à atuação do delator uma aparência
“semiprofissionalizada”
15
, em virtude de sua eloquência agressiva e pragmática, embora como
facetas de sua força destrutiva e desumanizadora. A sua caracterização expõe a complexidade
de valores sociais, políticos e ideológicos com os quais seus leitores contemporâneos
compuseram estes personagens, uma associação direta com a ideia de abusos legais contra a
aristocracia romana e a “tirania” daqueles que permitem ou se beneficiam em última instância
de tais abusos, como o Imperador. Em contrapartida, os delatores atuaram para a manutenção
da soberania mediante o reforço das leis que serviam à proteção do Princeps, em sua maior
parte homens novos, escravizados, libertos, ou inclusive mulheres, ou mesmo indivíduos
relegados ao anonimato. Isso não significa que os demais senadores não fossem caracterizados
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
15
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
pejorativamente quando os processos criminais desvelavam os jogos políticos nos quais estes
eram os principais interessados (RIVIÈRE, 2002, p. 21; 37-99; RUTLEDGE, 2001, p. 9-15).
Compreendidos em linhas gerais o desenvolvimento das cortes de justiça, o
desenvolvimento da Lex Maiestatis e a caracterização dos delatores, e considerando que estes
três vetores se entrecruzam, podemos analisar em maiores detalhes os aspectos que
caracterizaram a transição de Augusto para Tibério e o governo deste último a partir de então.
Assim, algumas intervenções de Augusto serão decisivas para o enlace entre vetores que
comporão o exercício da justiça e a aplicação dos crimes para o restante do Principado.
O primeiro destaque sobre o funcionamento das cortes de justiça a partir do governo de
Augusto consistiu na transferência de questões outrora pertencentes ao direito privado para o
ambiente do direito público, e envolveu o caso de conspiração de Fânio pio e Varrão Murena
entre 23 e 22 a.C., embora as fontes não mencionem a aplicação da Lex Maiestatis e sim que
Augusto justificou a iniciativa como utilitas publica
16
.
O segundo destaque é dado para o ano 2 a.C. quando Júlia Augusta, filha do Imperador,
foi julgada por adultério (Lex Iulia de Adulteriis Coercendis de 18 a.C.) com importantes
membros da aristocracia (Tácito, Anais, 3.24.3). Tradicionalmente questões desta natureza
eram resolvidas em foro doméstico, mas Augusto que no mesmo ano tornara-se pater patriae
era agora a suprema autoridade religiosa e tutor da população romana; uma violação moral
dentro da principal residência romana adquiriu contornos políticos que desembocaram em um
tratamento público e muito mais severo do assunto. Mais ainda, entre os amantes de Júlia
Augusta estava Julo Antônio, filho de Marco Antônio seu grande opositor político
republicano que foi condenado pela Lex Maiestatis. Deste modo, o crime de adultério com a
filha do Imperador tornou-se crime de traição e recebeu pena capital, embora Antônio tenha
tido a liberdade de escolher sua morte (liberus mortis arbitrium)
17
. Este padrão de transferência
de questões privadas para as cortes públicas ocorreu novamente em 8 d.C.: curiosamente, sua
neta Júlia Menor também foi condenada nos mesmos moldes, enquanto que seu amante Silânio
recebeu apenas a renúncia formal da amizade do Imperador (renuntiatio amicitiae) o que,
embora não tenha cerceado seus direitos civis, representou sua morte social e política.
Por último, um caso importante exemplificou a inflexão na aplicação da Lex Maiestatis
e a influência do poder discricionário de Augusto sobre a ação jurídica do Senado. Entre 6 e 8
d.C., panfletos difamatórios contra importantes homens e mulheres da aristocracia senatorial
(inlustris) foram espalhados pelas ruas de Roma durante a noite, embora as principais críticas
fossem direcionadas ao Princeps e sua esposa Lívia Drusila. Para lidar com a situação, o
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
16
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
Imperador rompe com a tradição jurídica republicana ao propor que, dada a gravidade da ofensa
e a dificuldade de se encontrar o suspeito, a confissão de escravizados extraída sob tortura
contra seus mestres fosse válida. Assim, o orador Cássio Severo foi acusado e condenado pelo
crime de traição. Contudo, não recebeu pena capital: foi exilado (relegatio) para Creta, de onde
continuou sua prática difamatória até ser novamente julgado e condenado na plenitude dos
moldes republicanos em 24 d.C.: Severo foi banido de Roma (aquae et ignio interdito); teve
seus bens confiscados e foi exilado em uma ilha inóspita (deportatio in insulam). Mais ainda,
a primeira condenação de Cássio Severo expõe a leniência de Augusto neste caso, o que
reforçará para bem e para o mal do condenado a importância do poder discricionário do
Princeps (BAUMAN, 1996, p. 52-53).
Assim, as transformações jurídicas ocorridas durante o governo de Augusto atenuaram
os limites de interferência do Princeps sobre o exercício da justiça e a distância entre a maiestas
do Imperador e a do povo romano. Desde então, o Senado passou a atuar juridicamente em
meio à flexibilidade do direito romano e à criatividade crescente dos delatores. Tolerância ou
repressão tornaram-se critérios relacionados diretamente a cada novo Imperador, na medida em
que esse poderia ou não se valer de tal flexibilidade para justificar medidas consideradas
necessárias à sua própria proteção contra dissidentes no exército, na aristocracia ou entre seus
próprios amigos e parentes (BAUMAN, 1974, p. 15-18, 225-227; HARRIS, 2007, p.83-85).
A despeito do testemunho de Tácito (Anais, 1.72.4), que questiona a impressão de
civilidade e paridade (civilitas) para com os senadores pelo fato de que este Princeps reiterou
o cumprimento da aplicação da Lex maiestatis, Tibério permitiu grande liberdade de atuação
do Senado sobre os casos criminais e foi cauteloso quando havia a tendência de seus pares em
infligir penas capitais sobre os acusados, aspecto característico da primeira parte de seu
governo, antes de seu afastamento para a ilha de Capri em 26 d.C.
18
. Para Richard Bauman
(1996, p. 58-62), até este período não grandes evidências de abusos nos casos de crime de
traição.
Contudo, a situação se alterou quando Lúcio Aélio Sejano, prefeito da guarda
pretoriana, passou a ser o principal intermediário político de Tibério em Roma e fez da Lex
Maiestatis um sofisticado instrumento de punição. Sejano passou a valer-se da substituição da
deportação de condenados pela sentença à morte, refinamento da ação dos delatores e da
extração de evidências pelo medo, engano, força ou fraude como medidas auxiliares contra seus
opositores ou rivais políticos, todas estas empregadas pelos acusadores que desejavam
demonstrar apoio a ele ou a Tibério. Neste sentido, a renúncia formal à amizade do Imperador
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
17
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
(amicitiae renuntiatio), utilizada inicialmente por este Princeps como um artifício mitigador e
um exemplo de sua moderação (moderatio) frente ao constante crescimento de denúncias e
pedidos de punição, passou a ser uma espécie de carta branca para que os casos avançassem
rumo à condenação de um acusado, restando a ele a proscrição ou o suicídio.
Passemos então à análise das correspondências trocadas entre o Princeps, o Senado e os
membros da aristocracia durante o período em que Tibério esteve afastado na ilha de Capri. O
primeiro caso de acusação e condenação por crime de traição que contou com o envolvimento
de Tibério após o seu afastamento foi o do equestre Títio Sabino, entre o final de 27 d.C. e o
início do ano seguinte, e a narrativa estabelece Sejano como elo político dessas primeiras
iniciativas.
Tácito afirma (Anais, 4.68.1) que a prisão de Sabino, anunciada quatro anos antes, foi
motivada por sua amizade com Germânico César
19
e, após o falecimento do enteado de Tibério
e primeiro na linha sucessória, agravada pela manutenção de sua amizade com a viúva Agripina
e seus filhos. O estratagema para criar uma acusação foi empreendido pelos ex-pretores Latínio
Latiário, Pórcio Catão, Petílio Rufo e M. Ópsio, cuja ascensão ao consulado, segundo Tácito
(Anais, 4.68.2), seria possível mediante influência de Sejano. Latínio Latiário teria
conquistado a confiança de Sabino, que durante uma conversa em sua residência com os
demais escondidos no sótão lamentou o destino de Agripina, tecera críticas à arrogância e
ambição de Sejano e ao Imperador (Tácito, Anais, 4.68.3-4).
Consequentemente, Tácito afirma que (Anais, 4.69.3.3-5) “logo em seguida a acusação
fora acelerada, e em uma carta enviada para Tibério foram narrados os detalhes da farsa e sua
própria desgraça” (Properata inde accusatio, missisque ad Caesarem litteris ordinem fraudis
suumque ipsi dedecus narrauere). Igualmente, o autor complementa (Tácito, Anais, 4.70.1.9-
11) que logo depois de sua condenação uma nova correspondência chegou ao Senado:
Tibério, tendo feito as solenes preces para o ano que se iniciava durante as calendas de
Janeiro, voltou-se contra Sabino, tendo alegado em correspondência que alguns de seus
libertos haviam sido corrompidos e que ele havia sido o alvo, e não era obscuro que ele
demandasse vingança (Caesar sollemnia incipientis anni kalendis Ianuariis epistula
precatus uertit in Sabinum, corruptos quosdam libertorum et petitum se arguens,
ultionem que haud obscure poscebat).
Após a execução de Títio Sabino, Tibério agradecera aos senadores pela punição, tendo
acrescentado que sua própria vida estaria em perigo e que pressentia emboscadas de seus
inimigos embora sem citar nomes , o que para Tácito (Anais, 4.70.4) eram indiretas para
Agripina e seu filho Nero.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
18
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
Além de ter sido o primeiro caso de traição após o afastamento do Princeps da cidade
de Roma, a condenação de Títio Sabino exemplifica o desenvolvimento do mecanismo de
incriminação intensificado por injúrias ao Imperador paramentado por Sejano. De acordo com
Bauman (1974, p. 113, 121-122), uma das principais características do “Sejanismo” foi o
emprego da associação entre difamação e maiestas como instrumento repressivo, cuja notória
evolução se pelo fato de que, na conjuntura de ausência de Tibério, era possível inclusive
“criar fatos” e consequentemente valer-se do precedente augustano de acesso legal à confissão
de escravizados mediante tortura, ação que certamente tinha como finalidade apenas reiterar
uma já forjada acusação
20
.
Por outro lado, Steven Rutledge (2001, p. 145-146) afirma que, em oposição à sua
anterior moderatio demonstrada em outros casos, a severidade de Tibério contra Sabino pode
ser um indício de uma conspiração em andamento; os delatores teriam informações mais graves
do que as relatadas na literatura, conquanto jamais possamos saber do envolvimento de
Agripina. Isto não significa dizer que estas práticas desapareceram com a eliminação de Sejano,
tampouco que foram estimuladas apenas pelos aristocratas que eventualmente se vincularam a
ele. Outro aspecto importante diz respeito à deterioração da capacidade de relacionamento entre
Tibério e o Senado e à continuidade das condenações como seu efeito.
Tácito nos fornece um exemplo dessa situação. Em 32 a.C., durante uma assembleia
senatorial, o senador Togônio Galo tomou a palavra e clamou ao Princeps que selecionasse em
sorteio vinte senadores para que o acompanhassem armados com adagas sempre que ele
desejasse ir à cúria senatorial. Togônio Galo evidentemente acreditara na carta em que
[Tibério] havia demandado para si o auxílio de um dos cônsules, de modo que pudesse seguir
protegido de Capri até Roma” (Crediderat nimirum epistulae subsidio sibi alterum ex
consulibus poscentis, ut tutus a Capreis urbem peteret) (Tácito, Anais, 6.2.3.25-27). O
Imperador agradeceu a proposta, mas a recusou. Em contrapartida, a lio Gálio, senador que
sugerira que após o término do serviço militar fosse concedido aos guardas pretorianos a
prerrogativa de se sentarem entre as primeiras quatorze fileiras do anfiteatro (uma honraria), a
reação do Princeps foi bem diferente. Tibério questionara o seu interesse sobre os soldados e
enfatizou que palavras e recompensas cabiam apenas ao Imperador. Sem maiores detalhes (não
podemos afirmar que esse senador foi condenado por traição), Gálio foi banido do Senado,
isolado na ilha de Lesbos e, por último, mantido preso na residência dos magistrados (Tácito,
Anais, 6.3-6)
21
.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
19
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
Ainda sobre a mesma correspondência, Tácito afirma (Anais, 6.3.4.18-21) que “para o
deleite dos senadores na mesma carta Tibério desmoralizou Sextílio Paconiano, malfeitor
audaz, tendo perscrutado os segredos de todos, e a quem Sejano escolheu como apoio para que
preparasse um ardil a Caio César” (Isdem litteris Caesar Sexti<li>um Paconianum praetorium
perculit magno patrum gaudio, audacem maleficum, omnium secreta rimantem delectumque
ab Seiano cuius ope dolus C. Caesari pararetur). Pelo que nos indica a descrição deste autor,
Sextílio Paconiano devia agir como delator, pois quando seus desígnios vieram à tona e
provavelmente passou ao expurgo dos demais aristocratas que se vincularam de alguma
maneira a Sejano passou a ser acusador (accusator) do mencionado Latínio Latiário
(Tácito, Anais, 6.4.1.23-26).
Do mesmo modo, o sucesso dos acusadores parecia depender não somente da gravidade
da acusação, mas também da relação do acusado com o Princeps, cuja sorte parecia pender
entre a preservação ou a renúncia da amizade por parte do Imperador. Em 32 d.C. o senador
Cota Messalino foi acusado de zombar da virilidade de Gaio César (o futuro Imperador
Calígula) e criticar a recusa de Tibério em conceder a deificação a Lívia Drusila após seu
falecimento quatro anos antes. Após um embate com os cônsules M. Lépido e L. Arrúntio,
Messalino teria dito que embora eles contassem com a proteção do Senado, seu “pequeno
Tibério(Tiberiolus meus) intercederia por ele (Tácito, Anais, 6.1.5.18). De fato, Messalino foi
acusado, e Tácito afirma (Anais, 6.1.5.2.20-24) que
não muito depois uma carta seria enviada em que, de maneira defensiva, teria
recapitulado o princípio da amizade entre ele e Cota e o celebrado pelos serviços
prestados, e conclamou que não fosse considerado crime palavras perversamente
distorcidas nem o candor de estórias de banquetes (Nec multo post litterae adferuntur
quibus in modum defensionis, repetito inter se atque Cottam amicitiae principio
crebrisque eius | officiis commemoratis, ne uerba praue detorta neu conuiualium
fabularum simplicitas in crimen duceretur postulauit).
A complacência não era a mesma do período em que o Princeps vivera em Roma.
Ainda durante o ano de 32 d.C., Tácito afirma (Anais, 6.9.2.5) que uma carta de Tibério foi
direcionada ao ex-pretor Sexto Vistílio (secutae dehinc Tiberii litterae in Sex. Vistilium
praetorium). Amigo do falecido Druso, irmão do Princeps, Vistílio fazia parte do círculo
imperial, e supostamente também teria elaborado críticas sobre a conduta sexual de Gaio César.
Não sabemos se a carta foi endereçada individualmente ao aristocrata ou se foi lida
publicamente durante uma sessão senatorial. À parte deste detalhe, pelas críticas ao jovem
Calígula o aristocrata “teria sido considerado culpado e afastado do Princeps (conuictu
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
20
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
principis prohibitus), e a despeito de ter enviado um pedido escrito (codicilo) de perdão sem
sucesso, cometeu suicídio (Tácito, Anais, 6.9.2.5-10).
Paralelamente, a associação com Sejano também serviu de pressuposto para a
continuidade das acusações por crime de traição e, assim como em relação à renúncia formal
da amizade imperial, a sorte de um acusado dependia de suas relações com o Princeps. Em 34
d.C., Lentulo Getúlico, foi acusado pelo ex-edil Abúdio Ruso de ter prometido a mão de sua
filha para um dos filhos do falecido prefeito da guarda pretoriana. Por desfrutar de grande
reputação enquanto militar, Tácito afirma (Anais, 6.30.3.14) que “por isso persistira a notícia
de que [Getúlico] teria ousado enviar uma carta para o Imperador: sua afinidade com Sejano
não teria se iniciado de sua própria vontade mas por conselho de Tibério” (Unde fama constans
ausum mittere ad Caesarem litteras: adfinitatem sibi cum Seiano haud sponte sed consilio
Tiberii coeptam). Este argumento teria feito com que Getúlico fosse poupado do destino de
outros aristocratas e que Abídio Ruso fosse banido de Roma.
Contudo, em 35 d.C. Tácito afirma (Anais, 6.38.1) que as condenações de acusados por
associação a Sejano ainda eram tratadas como acontecimentos recentes, e o medo de ser
acossado por acusadores levara Fulcínio Trio a criticar Névio Sutório Macro, sucessor de
Sejano, em seu testamento. O caso deste senador é interessante pela reação de Tibério César.
No testamento, Trio teria defenestrado Macro e os libertos imperiais do Princeps, uma mente
debilitada pela velhice e contínua ausência devida ao exílio (ipsi fluxam senio mentem et
continuo abscessu uelut exilium) (Tácito, Anais, 6.38.2.12). Provavelmente ao pretor ou cônsul
responsável pela presidência da corte, Tibério ordenou que o que estava sendo ocultado pelos
herdeiros fosse lido em voz alta (Quae ab heredibus occultata recitari Tiberius iussit) (Tácito,
Anais, 6.38.3.14).
Não temos a presença de termo correlato à “correspondência”, mas a presença do verbo
“ordenar” (iussere) no contexto e a importância do caso para o conjunto do desenvolvimento
dos crimes de traição nos últimos anos de seu governo nos impuseram a necessidade do devido
destaque. Assim, podemos observar uma relação na imputação do crime de traição e a defesa
da liberdade de expressão em documentos testamentários, uma garantia consuetudinária
também foi posta à prova pelos delatores não sabemos quem durante a ocasião. Para Richard
Bauman (1974, p. 129), a explicação para a atitude de Tibério foi a prefiguração de um
procedimento que seria adotado pouco depois por Calígula, ou seja: invalidar testamentos por
conter calúnias ao Imperador, o que resultaria na possibilidade de confisco dos bens do
testamentário, o que não parece ter ocorrido neste caso em específico.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
21
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
Em síntese, podemos observar a consolidação da associação entre a renúncia formal da
amizade imperial e os crimes de traição, mesmo após a morte de Sejano. Este expediente
continuou a ser utilizado pela aristocracia romana na ação dos delatores, aparentemente
incentivada em moldes semelhantes por Macro, o prefeito da guarda pretoriana que serviu ao
Princeps até o fim de sua vida. Além disso, o suicídio tornou-se um elemento bastante presente
nos relatos sobre os crimes de traição presentes nas correspondências entre Tibério, o Senado
e a aristocracia de Roma; o caso de Sexto Vistílio foi o primeiro exemplo nesse contexto.
Entretanto, diante do que Yolande Grisé definiu (1982, p. 55) como tentativa de
apresentar uma “crônica necrológica interminável”, os exemplos em Tácito não são tão
abundantes e tampouco existe uma descrição mais detalhada de boa parte dos casos; diante do
fato de que não existem registros sobre o suicídio entre outros grupos sociais, esta teria sido
uma prática excepcional diante de circunstâncias excepcionais. Assim, no escopo de nossa
investigação, o suicídio existiu enquanto uma conduta de evasão relacionada a duas situações:
condenações criminais ou o alívio de situações de penúria física. Igualmente, pode ser analisado
sob dois vieses: como um resultado das pressões sociais, sobretudo no caso das acusações por
traição e/ou renúncia da amizade imperial; e como subterfúgio perante as implicações jurídicas
atreladas a estes crimes. Naturalmente, não como fazer uma distinção precisa entre ambos
os vieses na sociedade romana.
Em 34 d.C., uma acusação de má-administração da província da Moésia fez com que o
senador Pompônio Labeo e sua esposa Paxéia cometessem suicídio. Tácito não nos oferece
muitos detalhes sobre este caso, que poderia se enquadrar no caso de repetundae, crime de
extorsão ou infrações pecuniárias diversas no exercício do cargo de governador de uma
província. Sobre o fato, em carta endereçada ao Senado (Caesar missis ad senatum litteris)
Tibério teria se limitado a explicar que a renúncia formal da amizade e a proibição de frequentar
a residência era um costume antigo, embora a culpa de ambos não justificasse o suicídio de
Paxéia, que legalmente não seria afetada (Tácito, Anais, 6.29.2.18). De todo modo, a morte de
Pompônio Labeo pode ser relacionada ao suicídio do senador Gneio Pison em 20 d.C., no caso
relacionado ao provável envenenamento de Germânico César. A diferença está no fato de que,
com relação a Pison, Tibério não renunciou formalmente à amizade deste senador antes da
conclusão do julgamento, mas doze anos depois tornou-se um padrão a dupla associação de
crime de traição com renúncia da amizade e evidente prejuízo prévio para as chances de defesa
do acusado (BAUMAN, 1974, p. 125-126).
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
22
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
Em 35 d.C. os senadores Trebelêno Rufo e Sextílio Paconiano encontraram seu fim, um
pelo suicídio e outro estrangulado na prisão, por versos nos quais teriam criticado o Imperador.
Nesse ínterim, Tácito afirma que (Anais, 6.39.2.23-26)
estes [anúncios] Tibério não recebia apartado além-mar como outrora, e nem por
mensageiros distantes, mas próximo à Cidade, onde no mesmo dia ou com o intervalo
de uma noite respondia as cartas dos cônsules, como se estivesse a auspiciar o sangue
derramado em suas residências ou pelas mãos dos carrascos (Haec Tiberius non mari,
ut olim, diuisus neque per longinquos nuntios accipiebat, sed urbem iuxta, eodem ut die
uel noctis interiectu litteris consulum rescriberet, quasi aspiciens undantem per domos
sanguinem aut manus carnificum).
Em relação a Sextílio Paconiano, conforme caso observado acima, a sua provável
execução foi adiada em virtude de ter se tornado delator contra Latiário em 32 d.C., embora
não saibamos dizer se houve algum tipo de comutação de sentença ou se tratou apenas de impor
definitivamente o fim a um inimigo da ordem pública (BAUMAN, 1974, p. 129-130).
Por fim, as duas últimas menções a correspondências imperiais mantêm a tônica dos
suicídios e acusações de aristocratas. No primeiro caso, durante o ano de 36 d.C. Servílio Galba,
irmão mais velho do futuro Imperador Galba, se imolou por ter sido excluído por uma ominosa
carta de Tibério da atribuição de controle de uma província (Galba tristibus Caesaris litteris
provinciam sortiri prohibitus) (Tácito, Anais, 6.40.2.10). Já em 37 d.C., durante o último ano
de vida do Imperador, Albucila, viúva de Sátrio Segundo, foi acusada por ter proferido injúrias
sobre Tibério (Albucilla [...] defertur impietas in principem) e de cometer adultério com
Domício Aenobarbo, Víbio Marso e L. Arrúntio. A despeito da falta de informações sobre o
seu desfecho, destaca-se o fato de que o relato das confissões extraídas por Névio Sutório
Macro, mediante a tortura dos escravizados pertencentes aos aristocratas, contou com a suspeita
de manipulação por parte do sucessor de Sejano no posto de prefeito da guarda pretoriana.
Tácito afirma (Anais, 6.47.3.13) que isso decorreu do fato de que não houve carta do Imperador
(imperatoris litterae) contra os acusados. Do mesmo modo como fora desafeto político de
Sejano, Arrúntio também se tornara desafeto de Macro, e, ao passo que Víbio Marso e Domício
Aenobarbo não cometeram suicídio, tanto Arrúntio quanto sua esposa Albucila tentaram evitar
a condenação, o primeiro tendo argumentado que, mesmo que escapasse da condenação durante
o governo de Tibério, certamente não sobreviveria durante o governo de Gaio César; Albucila
não tivera sucesso com a tentativa de suicídio, tendo sido aprisionada e executada sob ordens
do Senado.
A análise exposta sobre as referências às trocas de correspondências em Tácito e a sua
ênfase nos casos de crimes de traição nos permite tecer algumas conclusões. No que diz respeito
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
23
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
aos seus pares aristocráticos em Roma, com o passar dos anos Tibério tornou-se menos
interessado em virtude de seu consciente isolamento. De modo semelhante, junto à sua corte
em Capri, o Princeps se tornou menos sensível às perseguições políticas oriundas da ação dos
acusadores e menos interessado na observância das leis, algo que se tornou útil nas mãos de
agentes políticos que desfrutaram de inéditas posições de poder, como os equestres Sejano e
Macro. Com a morte do primeiro, alguns dos senadores e equestres que buscaram o apoio do
falecido prefeito do pretório pereceram junto de sua memória; outros que por sorte ou falta
de oportunidade de favorecimento permaneceram fiéis a Tibério ou às margens da disputa
política, viram em Macro e na iminente ascensão de Gaio César novas possibilidades de
posicionamento, na medida em que o velho Imperador declinava física e politicamente
(LEVICK, 1999, p. 171-172; RUTLEDGE, 2001, p. 102).
Entretanto, não podemos crer que Tibério foi ostracizado durante seu governo. Os
exemplos extraídos de Tácito tendem a proporcionar a impressão de que seu afastamento
significou um exílio, principalmente em virtude de sua manifestação literária mais impactante:
a percepção da ausência do Imperador do centro de poder tradicionalmente estabelecido, e a
desinformação e a desorientação política como sendo suas principais consequências. Todavia,
de acordo com Sarah Cohen (2002, p. 287-299), mais do que um exilium, o “afastamento”
(secessus) de Tibério deve ser considerado em sua literalidade: uma escolha consciente e prática
comum da aristocracia, não obstante a peculiaridade de seu não-retorno para Roma. Tácito usa
a ideia de isolamento para amplificar os efeitos da ausência do Princeps sob o sistema de
governo, e assim a conotação furtiva de seu afastamento desvela-se na aparência de um exílio.
Mais importante: o afastamento de Tibério para Capri é percebido como um fato que desnudou
a pretensa colegialidade entre o Imperador e o Senado. Desta maneira, sem o Princeps em Roma
para ordená-los a serem livres, os senadores são incapazes de serem livres, o que destrói a ilusão
de que o povo romano é mantido pelo governo do soberano para e com o Senado, revelando-se
inevitavelmente a natureza do Principado. Ambivalência e ambiguidade são termos que
emergem da análise política decorrente da ausência consciente de Tibério; a despeito da
presença de novos agentes políticos, causadores de ressentimento na aristocracia e advindos da
ordem equestre, o Princeps manteve o controle efetivo do poder, mas o efeito de sua ausência
em Roma imprimiu a noção de que o Imperador tomou para si a referência de patria (i.e. o
poder pátrio e a tutela de seu povo) e fundou para si uma Roma alternativa, tornando a capital
imperial refém pelo menos para a aristocracia do poder absoluto de seu soberano.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
24
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
Pudemos observar que Tibério não abdicou de ser o governante; as trocas de
correspondências entre o Princeps, o Senado e membros da aristocracia, para não mencionar o
recebimento de representantes de embaixadas, promulgação de decretos e éditos demonstram
que a burocracia imperial se adaptou às escolhas de vida do Imperador. Em verdade, podemos
dizer o afastamento de Tibério para Capri foi um ponto de inflexão na história de seu governo
e um experimento político de repercussão indelével dentro da história política do Principado:
foi a primeira demonstração concreta à sociedade romana de que o Império reside na pessoa e
no local onde está o Imperador.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Richard A. The Crimen Maiestatis in the Roman Republic and Augustan
Principate. Johannesburg: Witwaterstrand University Press, 1967.
BAUMAN, Richard A. Impietas in Principem A study of treason against the Roman Emperor
with special reference to the first century A.D. München: C.H. Beck’sche
Verlagsbuchhandlung, 1974.
BAUMAN, Richard A. Crime and Punishment in Ancient Rome. London: Routledge, 1996.
BURTON, Paul J. “Roman Imperialism”. Brill Ancient History, Vol. 2/2, 2019, p. 1-114.
COHEN, Sarah Thea. Exile in the Political Language of the Early Principate. Tese. Chicago:
University of Chicago, 2002.
CORCORAN, Simon. “State Correspondence in the Roman Empire Imperial Communication
from Augustus to Justinian”. In: RADNER, Karen. State Correspondence in the Ancient World:
From New Kingdom Egypt to the Roman Empire. Oxford: Oxford University Press, 2014.
DION CÁSSIO. Roman History: The reign of Augustus (Books 50-56). Tradução de Ian Scott-
Kilvert, com introdução de John Carter. London: Penguin Classics, 1987. DION CÁSSIO.
Roman History 56-70. LOEB Classical Library. Traduzido por Earnest Cary. Vol. 7. London:
Cambridge University Press, 1924.
ECK, Werner. The Age of Augustus. London: Routledge, 2007.
EICH, Peter. “Centre and Periphery: administrative communication in Roman imperial times”.
In: BENOIST, Stephanie (org). Rome, a City and Its Empire in Perspective: The Impact of the
Roman World Through Fergus Millar’s Research Rome, une Cite Imperiale en Jeu l’Impact
du Monde Romain selon Fergus Millar. BRILL, 2012.
GRISÉ, Yolande. Le suicide dans la Rome Antique. Paris: Les Belles Letres, 1982.
HARRIS, Jill. Law and Crime in the Roman World. Cambridge: Cambridge University Press,
2007.
HEDRICK. Charles W. Ancient History: Monuments and Documents. Oxford: Blackwell
Publishing, 2006.
LEVICK, Barbara. Tiberius the Politician. London: Routledge, 1999.
MILLAR, Fergus. The Emperor in the Roman World. London: Duckworth, 1992.
RIVIÈRE, Yann. Les delaterus sous L’Empire Romain. Rome: École Française de Rome, 2002.
RUTLEDGE, Steven H. Imperial inquisitions: prosecutors and informants from Tiberius to
Domitian. London: Routledge, 2001.
SUETÔNIO. Lives of the Caesars. LOEB Classical Library. Traduzido por C.J. Rolfe. Vol. 1
e 2. London: Cambridge University Press, 1928.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
25
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
TÁCITO. The Annals. Trad. A.J. Woodman. Cambridge: Hackett Publishing, 2004.
WOODMAN, A.J. The Annals of Tacitus Book 4. Cambridge: Cambridge University Press,
2018.
WOODMAN, A.J. The Annals of Tacitus Books 5 and 6. Cambridge: Cambridge University
Press, 2018.
Recebido em 01/04/2020.
Aceito em 03/05/2020.
1
Embora similares em resultado aos rescritos privados abaixo, cartas para cidades eram consideradas parte
integrante das correspondências oficiais. Mais ainda, o fato de que cidadãos de prestígio se correspondiam com o
Imperador dentro ou fora de suas atribuições é um indicador da tênue linha entre o público e privado que caracteriza
o funcionamento político do Império.
2
Diferentemente do ab epistulis Graecis, dedicado ao auxílio na composição técnica em grego de documentos
oficiais para as regiões orientais do Império Romano, a despeito do fato de que os Imperadores, bem como boa
parte da aristocracia senatorial romana, conhecia a língua e a cultura grega.
3
Tácito, Anais, 4.67.1.11; 5.1.5.
4
Ibid. 5.2.1.20; 5.2.2.23
5
Ibid. 5.4.2.26.
6
Ibid. 6.2.3.25.
7
Ibid. 6.12.1.25;
8
Ibid. 6.27.3.7;
9
Ibid. 4.69.3.3; 4.70.1.9; 4.70.4.23; 6.3.4.18; 6.5.2.20; 6.7.3.17; 6.30.3.14; 6.39.2.26; 6.40.2.10; 6.47.3.13;
10
Ibid. 4.67.1.11; 5.1.5;
11
Ibid. 4.69.3.3; 4.70.4.23; 5.2.1.20; 5.3.1.5; 5.4.2.26; 6.3.4.18; 6.5.2.20; 6.6.1.25; 6.9.2.3; 6.12.1.25; 6.27.3.7;
6.29.2.18; 6.30.3.14; 6.39.2.26; 6.40.2.10; 6.47.3.13.
12
Ibid. 4.70.1.9; 5.2.2.23; 6.2.3.25;
13
Ibid. 6.9.2.8.
14
Em Ulpiano (Digesto, 48.4.1) o crime (crimen maiestatis) se refere a uma ação cometida contra o povo romano
e sua segurança: a dimensão militar do crime de traição é acompanhada de contravenções contra a ordem pública,
sedições, ocupação de prédios públicos ou ameaça a magistrados. As punições eram variáveis: interdição de água
e fogo (não receber o condenado em casa); banimento da península itálica; confiscação ou mesmo condenação à
morte.
15
Assim como durante a República, a eloquência do aristocrata continua sendo um elemento de importância para
o jogo político e, naturalmente, para as autoridades literárias como Tácito. Em contraposição à nostalgia
republicana e à eloquência característica de um contexto de aparente maior liberdade de expressão, o delator
durante o Principado é um orador especializado na acusação à guisa de obter recompensas (praemia) previstas
por lei ou não em contrapartida de sua exposição, especialmente se a eliminação do acusado é algo desejado pelo
soberano, tornando-o quase invencível; os riscos de algum revés como ser acusado de calúnia, tergiversação ou
prevaricação (calumnia, tergiversatio, praevaricatio) são possíveis somente se não uma forte convergência
entre ambos.
16
Cf. Dion Cássio, História Romana, 54.3.2-8; Suetônio, Vida de Tibério, 8.1. As mortes de Primo e Murena
compõem um debate clássico sobre a existência de oposição política durante o Principado de Augusto. Em 23 a.C.,
Marco Primo, procônsul da Macedônia, retornou para Roma sob a acusação de ter iniciado espontaneamente uma
guerra contra os Odrísios, tribo aliada dos romanos e, consequentemente, transposto os limites de seu poder de
governador provincial. De sua parte, Primo alegou que agiu de acordo com as instruções de Augusto e de Marcelo,
depoimento que criou um duplo mal-estar no Senado: além de Augusto ter intervindo politicamente sob uma
província senatorial, suas ordens não foram informadas aos membros da instituição. Outro agravante foi o fato de
que o defensor de Primo era Varro Licínio Murena, cônsul do presente ano e genro de Mecenas; e, se em princípio
o Princeps se recusou a testemunhar no julgamento, posteriormente apareceu subitamente no Senado para
confirmar que não havia proferido ordem alguma e que Primo agira pelo bem do Estado. O que tornou este evento
mais controverso foi o fato de que, logo após a condenação de Marco Primo, Augusto descobriu uma tentativa de
conspiração protagonizada por este último e o senador Fânio Cépio, conhecido pelo idealismo republicano. Não
houve tempo para grandes averiguações: Cépio e Murena exilaram-se antes do julgamento e consequentemente
foram assassinados. De todo modo, o julgamento continuou e, com a defesa de Tibério, ambos foram condenados.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
26
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11426
Para análise da conspiração, Cf. ECK, Werner. The Age of Augustus. London: Routledge, 2007, pp. 151; LEVICK,
Barbara. Tiberius the Politician. London: Routledge, 1999, pp. 10-11.
17
Para uma leitura ampliada a respeito desta intersecção entre maiestas e o crime de adultério a partir do governo
de Augusto, cf. AZEVEDO, Sarah F. L. O adultério, a política imperial e as relações de gênero em Roma. Tese
de Doutorado, FFLCH, USP, 2017, 190p.
18
O caso de conspiração senatorial de Gneio Pison em 20 d.C. é um exemplo, em que é possível constatar que o
Princeps evitou a renúncia da amizade antes do término do julgamento justamente por ter consciência dos impactos
sobre o veredito do acusado (Tácito, Anais, 3.12). Outro caso importante foi a acusação de Clutório Prisco em 21
d.C., pelo elogio fúnebre a Druso Cláudio, filho de Tibério, cuja pena capital baseada na tradição das XII Tábuas
(malum carmen) foi interrompida pelo Princeps (Tácito, Anais, 3.4951.1; Dion Cássio, História Romana,
57.20.3-4). Exemplos semelhantes são observáveis no caso de C. Silânio (22 d.C.), C. Sílio (24 d.C.), Cremútio
Cordo, Votieno Montano e Aquília (25 d.C.), e no ano de 26 d.C. com o caso de adultério de Claúdia Pulcra,
sobrinha-neta de Augusto.
19
Em 24 d.C. De acordo com Tácito (Anais, 4.18.1-3), mediante intenções implícitas de Sejano, os senadores Gaio
Sílio e Títio Sabino foram acusados de traição, tendo sido acrescido a Sílio o fato de que, enquanto comandante
de um poderoso exército durante sete anos, e após ter ganhado uma insígnia triunfal como vitorioso na guerra
contra as hordas de Sacrovir, se disseminou o temor de que a soberania de Tibério não teria sobrevivido se as
legiões sob o comando de Sílio tivessem seguido o mesmo exemplo de amotinação das tropas na Germânia e na
Panônia. Aos impulsos revolucionários que poderiam emergir do comando das tropas por Sílio somou-se o
pretenso ressentimento do Princeps por Sósia Gala, esposa de Sílio e amiga de Agripina; por conseguinte, a decisão
tomada pelo Senado foi a de indiciar ambos, embora Sabino tenha visto o adiamento de sua acusação. Contudo,
Sílio foi condenado sob a lei de traição, embora o pretexto tenha sido o de extorsão, o que culminou com o seu
suicídio antes da formalização da pena (Tácito, Anais, 4.19.1-4). Em seguida, Tácito complementa (Anais, 4.20.1)
que mesmo assim os bens de Sílio foram assolados: o dinheiro confiscado não retornou para os contribuintes nas
províncias, embora as quantias previamente conferidas a ele mediante benefício de Augusto fossem retiradas de
sua propriedade, com uma calculada especificação da parte que seria demandada para o fisco. É sobre este caso
que temos uma passagem célebre sobre os estudos de crimes de traição a respeito da relação existente entre os
crimes de traição e a prática da confiscação como estratégia para abastecimento do fisco imperial. Assim, Tácito
afirma (Anais, 4.20.2) que teria sido a primeira vez que Tibério interessou-se pelo dinheiro alheio.sia Gala foi
conduzida ao exílio e, de acordo com a proposição do senador Asínio Galo, demandou-se que metade de seus bens
fosse confiscada e a outra metade deixada para os filhos, condição negada pelo senador nio Lépido, que
assegurou a concessão de apenas um quarto dos bens para os acusadores, e o restante para os filhos.
20
Em suas narrativas, Tácito e Dion Cássio conferiram protagonismo a Sejano no suporte da ação dos delatores,
principalmente pelo usufruto de sua posição como braço-direito do Princeps e, por consequência, controle sobre
o fluxo de informações e correspondências que se relacionavam ao Imperador. Todavia, de todos os delatores que
se vincularam a Sejano na expectativa de ascensão, apenas Pórcio Catão foi bem-sucedido, tornando-se cônsul em
38 d.C. Não temos informações sobre êxito dos demais e inclusive Latiário sofreu condenação em 31 d.C.
21
Em alusão a Lex Roscia Theatralis de 67 a.C., proposta pelo então tribuno Róscio Oton, que conferia aos
membros da ordem equestre que haviam recebido o cavalo público maior distinção entre esse grupo social o
direito de se sentarem em quatorze das melhores fileiras do anfiteatro romano.