Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
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DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11418
Uma república degradada: breve estudo da Guerra de Jugurta de Caio Salústio Crispo
A degraded republic: brief study of the Jugurthine War of Gaius Sallustius Crispus
Alice Maria de Souza
1
Resumo
Caio Salústio Crispo foi um homem novo que
atuou politicamente no final do governo
republicano e testemunhou profundas
mudanças na política romana. Em suas obras,
percebemos a sua atitude crítica em relação à
essas mudanças e seu discurso moralizante que
evidencia os aspectos que contribuíram para a
degradação moral característica de seu tempo.
O presente trabalho tem como objeto uma de
suas obras, a Guerra de Jugurta, em que
buscamos analisar os elementos que refletem a
sua teoria sobre a prevalência dos vícios sobre
as virtudes ao final da República romana. Para
tanto consideramos, também, os elementos
exteriores ao texto em si tais como contexto,
objetivos do autor e gênero e interpretamos
esse documento não somente como produto de
apropriações do passado, mas, também como
produtor de novas representações dele, servindo
como veículo de transmissão e ressignificação
da memória.
Palavras-chave: Salústio; República;
Memória.
Abstract
Caio Salústio Crispo was a young man who
acted politically at the end of the republican
government and witnessed profound changes in
Roman politics. In his works, we perceive his
critical attitude towards these changes and his
moralizing discourse that highlights the aspects
that contributed to the moral degradation
characteristic of his time. The present work has
as object one of his works, the Jugurta War, in
which we seek to analyze the elements that
reflect his theory on the prevalence of vices over
virtues at the end of the Roman Republic. For
this purpose, we also consider elements outside
the text itself - such as context, author's
objectives and genre - and interpret this
document not only as a product of
appropriations from the past, but also as a
producer of new representations of it, serving as
a vehicle transmission and reframing of
memory.
Keywords: Sallustius; Republic; Memory.
É uma característica dos romanos a grande preocupação em registrar o passado. Muitos
dedicaram-se a essa tarefa após o fim de sua carreira pública, impelidos por diferentes
motivações e buscando alcançar diversos objetivos. Propomo-nos, neste momento, a analisar a
forma como Caio Salústio Crispo enxergava a sociedade de seu tempo e como sua teoria a
respeito dos valores morais que sustentavam a República romana reflete-se na sua narrativa
acerca da guerra contra o rei númida Jugurta. Salústio considera o fim das Guerras Púnicas
como fator prejudicial para a moral romana. Segundo ele, a ausência do medo do inimigo, levou
os romanos à degradação moral, principalmente por sucumbirem aos vícios como a ambição e
a luxuosidade, movidos pelo desejo do acúmulo de riquezas e honras, homens cediam ao
suborno e contraíam dívidas para exercitarem a ostentação.
1
Doutora em História. Professora da rede estadual de ensino de Goiás. Email: antigaalice@yahoo.com.br
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Para alcançarmos nosso objetivo é necessário, primeiramente, considerar importantes
elementos que influenciaram a produção deste relato sobre o passado. Como característica geral
da escrita histórica antiga, percebemos que a construção de uma memória que respondesse às
necessidades do presente e a busca pela criação de laços identitários com aqueles que os
rodeavam consistiu em uma influência comum sobre a seleção do conteúdo a ser narrado e
sobre o posicionamento dos autores antigos frente ao passado. O modelo seguido por esse ao
escrever e seus objetivos pessoais também são elementos determinantes no processo de
interpretação e transmissão do passado que, assim, passa a possuir diversas versões e/ou
explicações, resultantes do constante exercício de apropriações e reconstruções. Somente após
a análise desses elementos que nos auxiliam na compreensão do documento textual objeto deste
artigo, estaremos preparados para analisar o texto salustiano como produto de seu contexto e
de sua visão a respeito do presente e do passado romanos.
Ao nos propormos analisar os registros históricos, é importante compreender que o texto
é um tipo de representação do passado, um veículo de transmissão da memória que influencia
e é influenciado por elementos exteriores a ele relacionados ao contexto em que é produzido,
tais como o imaginário relativo ao passado e ao presente, o grupo em que o autor está inserido
e os objetivos deste ao escrever. Conceitos como esses perpassam a estreita relação que
estabelecida entre memória e história, a qual não podemos perder de vista e sobre a qual uma
reflexão é sempre válida.
O conceito de “memória” relaciona-se fortemente com o de “identidade” e ambos são
perceptíveis em muitas formas de representação cultural, inclusive em narrativas históricas. A
partir das formulações de Marcel Mauss e Émilie Durkheim, o conceito de “representação” foi
incorporado pelos historiadores e figura como central dentro da História Cultural. Dotado de
grande polissemia, esse conceito abarca desde a noção de representação simbólica e sua acepção
dentro da filosofia política (PITKIN, 1967), até a complexa relação entre o sujeito e o mundo
em que vive; ou seja, a representação coletiva.
Carlo Ginzburg (2001, p. 85), através do exemplo dos bonecos de cera utilizados nos
funerais dos soberanos franceses e ingleses, demonstra a ambiguidade da relação entre presença
e ausência existente entre a representação e a coisa representada: fazendo às vezes da realidade
representada, evoca a ausência, enquanto sugere a sua presença, ao torná-la a realidade
representada visível.
No campo da Psicologia Social, existe a noção de “representações sociais”, cujas
matérias primas são as representações mentais, que devem ser examinadas no nível individual
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(CARDOSO, 2000, p. 25). Esse conceito surgiu a partir da noção de representação coletiva,
com a qual Émile Durkheim pretendia explicar fenômenos que tivessem por objetivo o coletivo,
como a religião, por exemplo. Para o sociólogo francês, a vida social seria a condição de todo
o pensamento e o terreno para a constituição da individualidade.
As representações sociais, devido à dinamicidade de suas estruturas, são apreendidas no
contexto das comunicações sociais sendo, por isso, mais flexíveis e permeáveis e, assim,
divergem das representações coletivas de Durkheim (SPINK, 1993, p. 06). Serge Moscovici
(1990) considera que a relação entre a sociedade e suas representações é complexa. Para ele, as
representações sociais não derivam de uma única sociedade, como para Durkheim, mas sim das
várias sociedades existentes no interior de uma sociedade maior, não extrapolada pelas suas
representações.
Nessa perspectiva, as representações são importantes para a vida social, como matrizes
geradoras de conduta e práticas sociais dotadas de capacidade integradora, coesiva e explicativa
do real. Isso porque os indivíduos e grupos utilizam as representações para darem sentido ao
mundo e à sua realidade (PESAVENTO, 2012). Partindo dessa perspectiva, a História Cultural
objetiva “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 17). Ela busca
entender a realidade do passado através de suas representações, isto é, acessando formas
discursivas e imagéticas pelas quais os homens do passado expressavam o seu mundo: suas
representações culturais.
Nessa tarefa, é necessário considerar a noção de apropriação de Roger Chartier (1990),
posto que alcançamos o passado através de diferentes materiais, tais como documentos escritos
e material arqueológico, produzidos e lidos em diferentes épocas e contextos, por diferentes
grupos com objetivos distintos. Ponderar como esse material foi transformado, ressignificado e
disponibilizado ao longo do tempo produzindo uma série de interpretações, mediações e
apropriações é importante para compreendermos a produção destas diversas representações
do passado.
É nessa perspectiva que este trabalho foi desenvolvido. A análise da obra de Salústio
considerou o seu contexto, posição social e objetivos, tornando possível perceber sua peculiar
interpretação acerca dos momentos finais do governo republicano. Assim, ao analisarmos o
contexto político romano abordado pela Guerra de Jugurta, devemos considerá-lo como “a
República de Salústio”, posto que cada época produziu a sua versão, não existindo a mais
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correta ou a mais verossímil, porquanto não acessamos o passado “real”, mas as suas
representações.
Consideramos, ainda, para o melhor entendimento da representação em questão, outros
elementos importantes no seu processo de produção: o tratamento da memória e a sua relação
com a construção de laços identitários pelo autor, no contexto de sua produção.
É patente a influência que as representações exercem tanto na construção das
identidades sociais, como na reconstrução da memória ao longo do tempo. Por isso, o
tratamento do passado, ao mesmo tempo em que se adéqua aos interesses do grupo social
dominante, é um importante auxiliar na construção de laços identitários no interior dos grupos
sociais. É certo que o estudo das identidades individuais e coletivas, como identidades
interdependentes, tem rendido frutos na análise das sociedades contemporâneas, podendo
também abrir um interessante campo de análise na História Antiga. As identidades são criadas
e recriadas ao longo do tempo e respondem às necessidades dos sujeitos que as constroem. Elas
são relacionais: parte-se da alteridade do que não se é para definir aquilo que se gostaria de
ser; e podem ser fundadas na fantasia, na projeção e na idealização, ou seja, podem ser
construídas não a partir do que a pessoa é, mas, do que ela gostaria de ser e de como ela gostaria
de ser vista pela comunidade. A construção das identidades é simbólica, social e se relaciona
com outros dois conceitos que a subsidiam: cultura e representação (GONÇALVES; ROCHA,
2006, p.12).
Fontes de significado e experiência de um povo, as identidades são forjadas com
referência a um tempo e lugar específicos, constituindo um discurso sobre a realidade que, por
intermédio da linguagem enunciada, divide e classifica (SILVA, 2004, p. 21). A redescoberta
do passado é parte do processo de sua construção (WOODWARD, 2000, p.12), que ocorre em
contextos marcados por relações de poder (CASTELLS, 1999, p. 24) e caracteriza-se por
apresentar traços simbólicos e sociais.
A fixação das identidades depende dessa projeção que determinado grupo faz do
seu mundo, daí a interdependência dos conceitos de “representação” e “identidade” (SILVA,
2004, p. 15). É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à
nossa experiência e àquilo que somos. A construção de representações, compreendida como um
processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas (WOODWARD, 2000, p. 17).
Cada sociedade cria suas representações do mundo, em que as estratégias determinantes das
posições dos grupos sociais e suas relações na trama da sociedade podem ser percebidas. Assim,
os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais podem falar,
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ao serem apropriados, formados e transformados pelos diversos segmentos sociais
(WOODWARD, 2000, p. 17).
Esta dinâmica de definição e manutenção de identidades determina e é determinada
pelas relações de poder existentes nas sociedades. Tais relações podem ser ordenadas (ou
desordenadas) por diversos fatores, tais como a relação entre memória e história, por exemplo.
Estas são formas de recordação do passado que podem sugerir a comparação e o
questionamento da ordem estabelecida. Assim, nesse processo de formação das identidades,
sempre mediado por relações de poder, o controle e a manipulação da memória aparecem como
fatores importantes.
A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual
como coletiva, e um fator importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma
pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p. 204). A memória,
atualmente, é uma das grandes questões sociais, um elemento essencial da identidade e, em sua
vertente coletiva, é também um instrumento de poder (LE GOFF, 1994A, p. 475-477) que
determina esquecimentos e manipula lembranças em nome de sua permanência, nos mais
variados âmbitos sociais e políticos.
No que concerne à relação entre memória e história, Maurice Halbwachs (1990, p. 80-
89) destaca as deficiências da história em comparação com a amplitude da memória coletiva:
para ele, a história é a história nacional, que elege grandes personalidades e suas vidas, datas
comemorativas e feitos da nação como matéria de sua produção; ela é desencarnada pois, na
intenção de abarcar a memória de toda a nação, acaba elegendo fatos que, ou não participam da
memória de todos os grupos, ou que compõem as lembranças de alguns desses grupos. O autor
conclui, então, que a história é mais limitada que a memória, é seletiva e, apesar de ter na
memória sua matéria prima, não pode ser considerada como um tipo de memória, mas como
um quadro de acontecimentos.
A memória, entretanto, enquanto produção individual e coletiva que parte do presente
para o passado, influenciada pela subjetividade daquele que lembra e por questões relativas às
construções identitárias e relações de poder dentro da sociedade, também caracteriza-se pela
seletividade (GOWING, 2005, p. 02). Divulgando símbolos sociais, resultantes de relações de
poder e laços identitários, em monumentos e documentos, o que é recordado produz uma
memória social sobre um passado comum, conectando o passado e o presente (HOPE, 2003).
As lembranças sustentadas pela memória, assim, compõem imagens do passado que são
manipuladas e ressignificadas pelo trabalho da escrita (RICOEUR, 2007).
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Considerando que a história não se define apenas como defendia Halbwachs,
percebemos que ela contribui, juntamente com a memória, para a representação do passado ao
se relacionar com aquilo que é lembrado. Para Paul Ricoeur (2002), a história, pelo caráter
crítico de sua narrativa, possui a capacidade de confrontar testemunhos e alimentar certa
ambição de verdade em relação ao seu discurso, sem a ilusão de estabelecer o que realmente
aconteceu. A memória, por outro lado, comporta a ideia de fidelidade da lembrança, sendo a
guardiã do passado, pois, é através dela que o acessamos. Memória e história relacionam-se no
processo de produção de conhecimento sobre o passado, na medida em que o método crítico
desta ilumina e seleciona os testemunhos transmitidos por aquela.
Para o tratamento dos documentos textuais romanos, esse debate sobre as diferenças e
fronteiras entre memória e história torna-se um tanto mais complexo. Temos acesso a este
contexto por intermédio das obras de autores antigos, produzidas com a dupla natureza histórica
e memorialística. O objetivo desses romanos, ao escreverem era, na maioria das vezes,
transmitir a tradição e não deixar que o mos maiorum fosse esquecido. Existiram também obras
que objetivaram a legitimação de um governo ou de mudanças, sempre muito perigosas na ótica
romana. Nesse sentido, podemos perceber que a memória implícita nas obras antigas vincula-
se às necessidades específicas de sua época e da ordem então vigente.
É importante considerar também que os autores dos escritos antigos que nos chegaram
são, em sua maioria, membros das altas camadas da sociedade. Sua escrita reflete, portanto, os
valores de sua esfera social e o tema de sua obra é o passado das grandes ordens romanas; além
disso, o cidadão era sempre associado à sua camada social, não sendo visto ou apresentado
isolado dela. Quando falamos em memória no mundo antigo, assim, nos referimos
majoritariamente àquela produzida e transmitida pelos membros das altas camadas da sociedade
de cujos valores ela está carregada. Esse fato não impede que esta memória caracterize-se pela
heterogeneidade, pois, no interior destas altas camadas encontramos diversos grupos com
características e objetivos diferentes, o que influencia na produção e transmissão de diferentes
memórias, ao longo do tempo.
Devemos ainda nos lembrar que a memória, além de herdada, é em parte seletiva e sofre
flutuações em função do momento em que é articulada. As preocupações pessoais e políticas
do momento constituem um elemento de estruturação da memória e mostram que ela é um
fenômeno construído. Quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que existe
uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade
(POLLAK, 1992, p. 203-204). Na Antiguidade, a herança mnemônica era transmitida muitas
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vezes pelas obras históricas que, assim, eram responsáveis pela reconstrução do passado a fim
de produzir laços identitários, de acordo com os objetivos do autor dentro de seu contexto e dos
valores defendidos por ele.
Assim, consideramos a obra Guerra de Jugurta, como uma representação do passado
republicano produzida em um contexto específico e influenciada pela estreita relação entre a
construção de identidades e pelo processo de ressignificação da memória relativa ao século I
a.C. Nela, Salústio não apenas narra o desenvolvimento da guerra contra o rei númida, mas
também demonstra sua teoria sobre a ausência do medo do inimigo e a degradação da moral
romana. Nosso intento, neste artigo, é analisar como tal teoria pode ser verificada em alguns
momentos do texto salustiano.
Distante da Ditadura sulana apenas alguns anos, Salústio escreveu, dentre suas três
obras, a Guerra de Jugurta, um relato da guerra entre romanos e o rei usurpador, Jugurta. Caio
Salústio Crispo nasceu em Amiterno, na Sabínia, em 86 a.C., ano do último Consulado de
Mário. Pertencente a uma família da aristocracia provincial (FUNARI, 2002, p. 19), atuou
militar e politicamente durante o Primeiro Triunvirato e a Ditadura de Júlio César, sendo
fortemente identificado como apoiador da política cesariana.
A historiografia informa sobre sua carreira pública a partir de seu Tribunato da Plebe,
aos 34 anos, em 52 a.C. É válido questionar, todavia, sobre sua carreira anterior a esta
magistratura, visto que desde a juventude, Salústio desejava a carreira pública: “Mas no meu
caso, como um jovem, eu fui atraído, como muitos outros, para a política”
1
(SALÚSTIO.
Conjuração de Catilina, 03). Considerando o contexto em que viveu e sua participação na
guerra civil ao lado de César, podemos supor que, antes de ser eleito Tribuno da Plebe, Salústio
prestou serviço militar (EARL, 1966, p. 306-307). Acredita-se que o autor não estava em Roma
durante a Conjuração de Catilina, devido à ausência de referências, em sua obra sobre o
ocorrido, que o indiquem como testemunha ocular dos fatos e porque, aos 23 anos de idade, o
autor provavelmente estava no exterior em serviço militar sob as ordens de Pompeu, com quem
era rentável ter conexões, naquele momento (EARL, 1966, p. 307-309).
Em 50 a.C., Salústio foi expulso do Senado sob a acusação de adultério com a esposa
de Milão, Fausta Cornélia, filha de Sula (FUNARI, 2002, p. 19-20). Ápio Cláudio, Censor e
partidário de Pompeu, buscava atingir a César, a quem Salústio apoiava (FUNARI, 2002, p.
20). Atuando como Questor, cargo para o qual foi indicado por César como forma de
reintroduzi-lo no Senado (BATSTONE, 2010, p. xi-xvii), Salústio lutou contra tropas
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pompeianas na Ilíria em 49 a.C. (FUNARI, 2002, p. 20) e negociou com tropas amotinadas na
Campânia, em 47 a.C., sem grande êxito nas missões.
Como Pretor, em 46 a.C., Salústio foi designado por César como Governador da
província da África Nova (Numídia). Quando retornou a Roma, em 45 a.C., enfrentou uma
acusação de extorsão devido à riqueza que acumulara, da qual escapou pela intervenção de Júlio
César. Com a fortuna adquirida, Salústio adquiriu uma vilae de César em Tivoli
(HARTSWOCK, 2004, p. 09), além de propriedades em Roma, conhecidas como horti
Sallustiam (FUNARI, 2002, p. 20). Quando César morreu, em 44 a.C., Salústio retirou-se da
vida pública para se dedicar à escrita da história, aos 42 anos. É comum interpretarmos o
afastamento de Salústio da vida pública como uma escolha voluntária. Entretanto, ela parece
ter sido resultado deste processo por corrupção do qual César o salvou. Salústio, assim,
abandonou a política, tanto porque a Pretura era o ápice político de um homem novo, quanto
porque, depois do processo que enfrentou, não havia possibilidade de maiores conquistas.
Talvez por isso, ele pareça desejar justificar seus erros políticos de maneiras diferentes nos
prefácios das suas monografias (ALLEN JR, 1954, 08):
Na política, eu fui impedido por muitos obstáculos. No lugar da vergonha,
autocontenção e virtudes, prosperava a arrogância, a corrupção e a ganância. Minha
mente, não acostumada com estes maus caminhos, os rejeitou. Mas eu era jovem e não
sabia como resistir. Envolvido em tal corrupção, eu também fui apreendido pela
ambição. Eu rejeitei o caráter perverso de outros, mas, no entanto, fui incomodado pelo
mesmo desejo de honra e fui vítima da mesma reputação e ataques individuais que os
outros (SALÚSTIO. Conjuração de Catilina, 03).
2
Salústio, em sua primeira obra, justifica os erros que provocaram críticas à sua pessoa
pela juventude, indicando certa vergonha. Em sua segunda monografia, entretanto, ele afirma
ter decidido abandonar a vida pública pela degradação moral dos novos Senadores. Assim, pela
piora do perfil dos colegas, o crime que lhe envergonhava perdeu a importância, e seu
afastamento da vida pública ocorreu pela decisão de se dedicar a algo mais glorioso, a escrita
da história:
Ainda mais creio que, por ter decidido afastar-me da vida pública, alguns darão a pecha
de ociosidade ao trabalho tão importante e útil ao qual me dedico. Certamente o farão
aqueles que consideram sua maior tarefa curvar-se diante da plebe e obter suas boas
graças através do patrocínio de banquetes. Se estes examinassem com maior cuidado a
época em que obtive magistraturas e quais homens não puderam obtê-las e, depois que
espécie de gente chegou ao Senado, sem dúvida concluiriam que minhas opiniões
mudaram mais por mérito que por falta de iniciativa e que há de vir mais benefício de
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meu ócio que das atividades dos outros para República (SALÚSTIO. Guerra de
Jugurta, IV).
3
Inserido em um período de grandes modificações na história romana, Salústio viveu
entre o fim da República dos nobiles, caracterizada por um governo baseado no equilíbrio entre
competição e consenso, e o surgimento da tendência à concentração do poder e ascensão de
líderes individuais, iniciado com a República de Sula, que culminou no estabelecimento do
Principado (FLOWER, 2010). O autor presenciou, assim, as modificações no funcionamento
do governo e no comportamento dos envolvidos nesta tarefa. Suas obras refletem a sua crítica
em relação às mudanças, ao contraporem as virtudes dos antepassados aos vícios de seu tempo,
configurando um discurso moralizante que busca demonstrar os aspectos que contribuíram para
a degradação moral característica de seu tempo. Ao analisarmos a sua obra Guerra de Jugurta,
podemos identificar elementos que refletem este discurso moralizante de forma bastante
interessante, pois, a narrativa demonstra não apenas a degradação moral dos romanos, mas
também, como esta contamina os númidas envolvidos no conflito.
Salústio registrou a história de seu tempo, transmitindo seu posicionamento e crítica
sobre a política contemporânea. Ele escreveu um relato monográfico sobre a conjuração de
Catilina e outro sobre a guerra contra Jugurta, que nos chegaram completos. Morreu em 35 a.C.,
antes de concluir suas Histórias, obra cujo conteúdo abarcava os anos 78 a.C. a 67 a.C., em que
o autor relatava os fatos ocorridos entre a guerra contra Jugurta e a conspiração de Catilina.
Essa obra inacabada nos chegou em 500 fragmentos, quatro discursos e duas cartas.
(BATSTONE, 2010, p. vii-viii). Cabe ressaltar, aqui, que podemos considerar as de Salústio
não como monográficas, mas como um corpus dotado de unidade pela cronologia dos períodos
que ele abarca (ALLEN JR, 1966).
A Guerra de Jugurta cobre da ascensão de Massinissa até o Triunfo de Mário, Histórias
corresponde aos anos pós-Sula 78-67 a.C. e a Conjuração de Catilina narra os acontecimentos
dos anos seguintes. Salústio não escreveu sobre os anos 104-78 a.C. por uma escolha
consciente, baseada no fato de que este período foi tratado por outros escritores, como Lúcio
Cornélio Sisena (ALLEN JR, 1966, p. 104): “Não voltarei a falar sobre Sula e Lúcio Sisena,
que descreveu seus feitos com maior amplitude e correção dentre todos que disso se ocuparam,
parece-me ter sido pouco imparcial” (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta, XCV).
4
Assim, Salústio
realizou aquilo que se propôs fazer: escreveu sobre fatos memoráveis selecionados de uma
época específica em três obras que formam uma sequência, constituindo uma inovação na
historiografia romana.
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Se o objetivo do autor era lidar com porções da história de um período, podemos
considerar que a Guerra de Jugurta e a Conjuração de Catilina estão conectadas pelo propósito
geral da obra. Assim, o termo “monografia”, segundo Allen Jr (1966, p. 269), figura como
inadequado para definir a natureza dos escritos, posto que se refira a um trabalho que versa
sobre um objeto único, isolado e de maneira abrangente. Há, todavia, um consenso
historiográfico sobre caracterizar desta maneira os escritos salustianos, considerados como uma
inovação na escrita histórica romana até então baseada nos anais por possibilitar a narrativa
estruturada em início, meio e fim de um evento ou época específicos. Tal estrutura parece,
também, ter sido uma escolha do autor por servir bem ao propósito político de sua obra. Devido
a sua estrutura reduzida, abordando temas isolados, a monografia permitiu a Salústio elaborar
retratos e construir digressões que o auxiliaram na apresentação de sua visão crítica sobre a
política romana e a forma como ela era acometida por sérios desvios morais (SILVA, 2014 p.
23).
Logo no início de sua primeira obra, De coniuratione Catilinae
5
, publicada entre 44 e
40 a.C., época turbulenta em que se estabelecia o Segundo Triunvirato (MACKAY, 1962,
p.181), o autor, após uma reflexão sobre a função da história dentro do propósito da vida
humana, justifica sua decisão de escrever um relato histórico. Para ele, essa deveria ser uma
fonte útil de exemplos de virtudes e sucessos para aqueles que buscam fama e glória, sendo, ao
mesmo tempo, um meio de ganhar glória (SALÚSTIO. Conjuração de Catilina, 01-03).
Afirmando seu distanciamento da política e não desejando a indolência ou as ocupações servis,
Salústio afirma seu objetivo de escrever um relato seletivo sobre o povo romano:
Quando minha mente encontrou paz, depois de muitas misérias e perigos, eu decidi
passar o que restava de minha vida distante do mundo público. Mas não era meu plano
perder os benefícios do lazer em ociosidade e indolência, ou passar meu tempo
envolvido em ocupações servis da agricultura e da caça. Eu decidi retornar ao estudo do
qual minha ambição me desviou no início: escrever a história do povo romano,
selecionando as partes que parecem dignas de memória. Eu fui mais encorajado a fazer
isto porque minha mente estava livre de esperanças políticas, medos e partidarismos
(SALÚSTIO. Conjuração de Catilina, 04).
6
Apesar de Salústio não mais participar da vida política diretamente, seus princípios
políticos refletiam em sua escrita. Sua renúncia às ambições políticas, bem como a afirmação
de liberdade partidária podem ser consideradas como uma declaração de neutralidade ou de um
partidarismo não político. Isso não significaria, contudo, o desligamento total da vida política,
algo impossível naquele contexto (ALLEN JR, 1954, p. 9-10).
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Para Salústio, a literatura seria o campo ideal para o cultivo da melhor parte do homem,
o espírito: “dentre as outras atividades exercidas pelo espírito, em primeiro lugar é útil relatar
os acontecimentos do passado” (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta, IV).
7
Afinal, a política estava
corrompida por vícios, dos quais a literatura permanecia livre:
As magistraturas e os comandos, bem como qualquer participação na vida política,
parecem-me nestes tempos nada desejáveis, porque nem o cargo é dado pela virtude,
nem aqueles que adquiriram o poder legal pela fraude estão seguros ou são por isso mais
respeitáveis” (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta, III).
8
Essa interpretação da escolha pelo ofício das letras é congruente e válida, mas também
podemos explicar a opção de Salústio de uma maneira simples e que não desabona as demais.
Justificando a sua opção pela escrita da história, Salústio demonstra certa indiferença pela
agricultura, atividade a que os aristocratas se dedicavam. Isso se explica pelas suas origens: o
autor era um “homem novo” que não desejava uma aposentadoria aristocrática e procurava
fazer algo útil e glorioso (BATSTONE, 2010, p. xi-xxxi). Ao optar pelo ofício histórico,
Salústio poderia estar buscando a glória que sua carreira política e militar não lhe rendeu, além
de garantir a perenidade de sua memória, objetivo melhor alcançado, segundo ele (SALÚSTIO.
Conjuração de Catilina, 01), através dos recursos interiores do que com a força física.
A preocupação com o declínio moral da República Romana está presente em toda a sua
obra e justifica muitos posicionamentos do autor. O processo de degradação moral romano é
apresentado, nas obras de Salústio, como uma série instável e irregular de crises que
introduziram novos vícios em Roma, destacando-se dois principais momentos. O primeiro
destes, refletindo uma ideia recorrente no seu tempo, seria a destruição de Cartago em 146 a.C..
Com o fim das Guerras Púnicas e a submissão do inimigo, extinguiu-se o metus hostili, ou mais
especificamente, metus punicus, que compelia os romanos à rigidez moral, abrindo, assim,
espaço para a auaritia e a ambitio (SHAW, 1975, p.187):
O costume dos partidos e facções, e daí de todas as más atitudes, surgira pouco antes
em Roma do ócio e da abundância, gênero de vida mais estimado pelos romanos. Pois
antes da destruição de Cartago, o povo e o Senado romanos administravam a República
entre si com placidez e moderação. A glória e o poder não eram causas de disputas entre
os concidadãos. A ameaça inimiga mantinha a cidade bem dirigida. Mas quando esta
ameaça desapareceu da memória, a lascívia e a ostentação, consequências da
tranquilidade, vieram à plena luz (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta. XLI).
9
A importância do metus hostilis como base da coesão interna e interesse comum era
constantemente reconhecido em Roma. Cipião Nasica, por exemplo, o utilizou como
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justificativa para sua oposição à destruição de Cartago. A historiografia moderna, entretanto,
aponta a profissionalização do exército, a partir de Mário, e a atuação dos Tribunos da Plebe
como fatores centrais para o declínio da República romana (BATSTONE, 2010, p. viii).
Salústio assim explica esta transição:
Então, primeiro a ganância por dinheiro cresceu, depois, a ganância por poder. Estas
coisas foram a raiz, por assim dizer, de todos os males. A avareza minou a confiança, a
bondade e outras nobres qualidades, e em seus lugares ensinou o orgulho e crueldade,
ensinou homens a negligenciarem os deuses e a colocarem preço em tudo. A ambição
forçou muitos homens a tornarem-se mentirosos, a esconderem uma coisa em seu
coração e terem outra coisa pronta na ponta de suas línguas, a valorizarem a amizade e
a inimizade de acordo com a conveniência, não pela sua essência, e a sustentarem uma
cara boa, em vez de um bom coração (SALÚSTIO. Conjuração de Catilina. 10).
10
Mais do que a avareza, para Salústio, a ambição foi a responsável pela mudança da alma
dos homens, pois tanto os bons quanto os indignos desejavam para si glória, honra e poder, e
aqueles que não possuíam habilidades honráveis utilizavam da traição e da fraude para
satisfazer sua ambição (SALÚSTIO. Conjuração de Catilina, 11). Então, começou um período
de facciosismo e luxuosidade que transformou o governo da República no pior e mais
depravado (SALÚSTIO. Conjuração de Catilina, 05), oportunizando a perseguição das
rivalidades internas como forma de satisfazer o vício da natureza humana, sempre inquieta e
indomável, disputando por liberdade, glória ou dominação (SALUSTIO. Histórias, I. 7). Esta
divisão esquemática do processo de declínio moral, como apresentado nas obras de Salústio,
foi proposta por D. C. Earl (1961) e compõe-se de três estágios: o aparecimento da ambitio logo
após a destruição de Cartago, o crescimento e domínio da auaritia a partir da atuação dos irmãos
Gracos e o surgimento da luxuria com o governo de Sula. Entretanto, Duane F. Conley (1981)
defende a existência de apenas dois estágios deste processo de declínio, em que a auaritia e a
luxuria constituem uma síndrome após o domínio de Sula.
A auaritia e a ambitio explicam, na obra de Salústio, o curso da política entre a
destruição de Cartago e a Ditadura de Sula, quando se introduziu um novo vício na sociedade
romana, algo mais perigoso e corruptível: a luxuria. Esta representa dois diferentes tipos de
ganância relacionados à riqueza material e ao poder político e explica as motivações de grupos,
como o que apoiou Catilina, por exemplo. Ela representaria a extravagância que levou os
homens a gastarem além dos limites de seus meios e, assim, contraírem muitas dívidas: um
político endividado ficava propenso a cometer atos políticos perigosos (SHAW, 1975, p. 188).
Brent D. Shaw (1975, p.193) demonstra como, na obra de Salústio, a relação entre a luxúria e
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a degradação moral se estabeleceu, sendo o caso de Catilina o exemplo mais claro disso. Para
o autor, o acúmulo de dívidas por parte dos veteranos de Sula os impeliu a apoiarem a
conjuração de Catilina que pretendia perdoar as dívidas de seus partidários quando tomasse o
poder. Além disso, para o autor, a decisão do próprio Catilina em empreender a tentativa de
golpe baseava-se na sua urgência por meios para saldar suas dívidas. Entretanto, Salústio
explica de maneira diversa o endividamento de César: devido à sua liberalitas no serviço
público. Assim, para Salústio, César se endividou legitimamente pelo exercício de uma das
mais importantes virtudes.
Esta visão de Salústio sobre a situação política durante os últimos anos do governo
republicano, em Roma, perpassa toda a sua obra. Neste momento, nosso objeto de análise,
visando demonstrar como olhar do autor se refletiu na interpretação do passado, é a sua obra
Guerra de Jugurta. Escrita em latim, compreendendo 114 capítulos, constituindo a segunda
obra histórica do autor, ela narra a guerra empreendida pelos romanos contra Jugurta ocorrida
entre 111 e 106 a.C. Esse conflito com o rei númida não se destaca nos documentos textuais,
exceto na Guerra de Jugurta, em que toda a história da guerra é narrada. No âmbito
historiográfico, a situação é semelhante, pois, mesmo presente em diversas publicações, o relato
sobre a guerra é, na maior parte delas, meramente descritivo. A Numídia era um reino aliado
de Roma desde que seu regente, Masinissa, ajudou Cipião a derrotar Aníbal na Segunda Guerra
Púnica. Seu filho, Micipsa, morreu em 118 a.C., deixando em testamento que o governo deveria
ser compartilhado pelos três filhos: Aderbal, Hiempsal e Jugurta, filho ilegítimo de seu irmão
(KEAVENEY, 2005, p. 11) e adotado pelo rei em testamento (SALÚSTIO, Guerra de Jugurta,
IX), descrito por Salústio de maneira positiva, tendo suas qualidades exaltadas pelo autor
(SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, VI).
Logo após a morte de Micipsa, houve um desentendimento crescente entre os herdeiros,
que culminou na morte de Hiempsal por soldados de Jugurta (SALÚSTIO, Guerra de Jugurta,
XI-XII). Logo os númidas dividiram seu apoio, ficando a elite do exército ao lado de Jugurta,
que se apoderou de algumas cidades pela força e de outras, por sua livre vontade. Aderbal, o
herdeiro mais velho, depois de perder uma batalha contra seu irmão adotivo, fugiu para Roma
(SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, XIII), em 116 a.C.
O Senado Romano intermediou um acordo que dividiu a Numídia em duas partes,
cabendo o oriente para Jugurta e o ocidente para Aderbal. De acordo com Salústio (Guerra de
Jugurta, XIV-XVI), o posicionamento romano diante desta contenda foi fortemente
influenciado pela memória sobre a ajuda que os antepassados dos reis conflituosos ofereceram
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para Roma durante as Guerras Púnicas. Nessa operação, coube a Jugurta o território com
melhores terras e mais habitadas e, para Aderbal, a outra metade. Desrespeitando o acordo e
acreditando ter garantido o apoio romano, Jugurta investiu contra Aderbal. A partir de então
Roma se envolveu no conflito armado contra o usurpador do poder númida. Muitas incursões
foram lideradas por diferentes Cônsules e o conflito foi resolvido apenas quando o Cônsul Caio
Mário, contando com o auxílio de seu Questor, Sula realizou a captura de Jugurta.
Salústio assim justifica a escrita do seu relato sobre a Guerra Jugurtina:
Em primeiro lugar por tratar-se de uma guerra importante, atroz e de vitórias alternadas,
e depois porque pela primeira vez foi afrontada a soberba da nobreza. Esta luta, onde se
confundiram todas as coisas divinas e humanas, atingiu tal aberração que só a guerra e
a devastação da Itália viriam colocar um termo à discórdia civil (SALÚSTIO. Guerra
de Jugurta, V).
11
Podemos perceber, através do excerto, que Salústio considera esse momento da história
romana como importante tanto por ser a primeira oportunidade em que a nobreza foi afrontada,
provavelmente pela eleição de um equestre para o Consulado, quanto porque a degradação
moral parece chegar ao ápice, sendo suspensa apenas pelo conflito que se seguiu, a Guerra
Social. Seu tom moralista, que dirige a narrativa para a transformação da uirtus da maioria de
suas personagens, como Jugurta e Escauro, em ambitio, e sua posição política tendenciosa para
a causa popular são elementos que devem ser considerados durante a leitura da obra (FUNARI,
2002, p. 24).
A concisão (brevitas) e o arcaísmo contribuem para o estilo afetado da obra, que é
valiosa pela dramaticidade de seus discursos e pelos retratos bem elaborados (FUNARI, 2002,
p. 25). Outra característica importante da obra salustiana é a presença de proêmios de caráter
geral, utilizados para introduzir algum tema em sua narrativa. Eles abordam dados abstratos de
teor filosófico, em que o autor demonstra os benefícios da vida virtuosa, indicando a função
reflexiva da história (LEVENE, 2007).
A narrativa não se caracteriza pela linearidade, sendo interrompida por três interessantes
digressões. Trata-se de um recurso literário empregado amiúde desde Heródoto com diferentes
finalidades como dispositivos estruturais para dividir o texto em diferentes sessões; para
denotar a passagem do tempo ou para dar mais leveza a uma narrativa predominantemente
militar, como em Tucídides, por exemplo (WIEDEMANN, 1993, p. 48). A primeira dessas
apresenta as regiões e os povos africanos (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta. XVII-XIX): “O
desenrolar da narração aconselha expor em poucas palavras a localização da África e dizer
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brevemente algo sobre os povos com os quais tivemos relações de guerra e amizade”
(SALÚSTIO. Guerra de Jugurta. XVII).
12
A segunda, explica o surgimento das facções pela
ausência do metus hostili, encerrando-se com uma indicação de que a concisão da narrativa era
uma escolha do autor, que não desejava fugir ao tema de sua monografia (SALÚSTIO. Guerra
de Jugurta. XLI-XLII): “Mas das questões partidárias e de todos os costumes estatais torna-se
necessário narrar caso a caso e em toda a sua extensão. Para tanto falta-nos tempo e não
material. Por isso retorno à minha narrativa” (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta. XLII).
13
Na
última digressão da obra (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta. LXXVIII-LXXIX), o autor descreve
a geografia e localização de Leptis e relembra a conduta de dois cartagineses, caracterizada
como “honesta e admirável”,
14
quando do estabelecimento dos limites de sua cidade como
Cirene.
Os historiadores antigos reivindicavam, ou criavam, a autoridade e a veracidade para
seus relatos de diferentes maneiras. As estratégias, para tanto, incluíam a imitação de
predecessores eminentes, modificações explícitas de procedimentos defeituosos e a
apresentação de suas próprias personalidades e de seus predecessores (por exemplo, experiência
política e militar ou falta dela). A imitação pode ser percebida de diferentes formas, como
verbal, temática, pela organização da obra ou pela atitude do autor diante do passado
(MARINCOLA, 2004). Podemos inferir que Salústio buscou afirmar a autoridade de sua obra
através da imitação do estilo de Tucídides e suas digressões, mas também encontramos
semelhanças com a narrativa herodoteana. Analisar as referências dos modelos na obra de
Salústio não é o objetivo deste momento, mas, identificar as semelhanças entre elas é necessário
para a melhor compreensão da narrativa deste romano.
Salústio, provavelmente buscou imitar Tucídides deliberadamente devido à semelhança
de suas propostas, isto é, ambos narram episódios dignos de memória dos quais também foram
testemunhas. As semelhanças entre ambas as narrativas apresentam-se em muitos aspectos,
como nos discursos, retratos e digressões (SILVEIRA, 2007, p. 73-74). A História da Guerra
do Peloponeso apresenta três digressões com temas semelhantes aos de Salústio: descrição
geográfica e etnográfica da Sicília (TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso 6. 1-6);
perturbações políticas na Hélade (TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso 3. 82-85) e
a última, sobre os pisistrátidas, Harmódios e Aristógiton (TUCÍDIDES. História da Guerra do
Peloponeso 6. 54-59). As digressões de Salústio apresentam temáticas parecidas: etnografia do
norte da África, discórdia civil entre os romanos, lenda dos Filênios (WIEDEMANN, 1993, p.
48-49).
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Desde Quintiliano, Tucídides é considerado a influência mais evidente na obra de
Salústio, desde sua visão sombria ou pessimista, até a estrutura de certas passagens, em suas
monografias, parecem imitar passagens do autor grego. Alguns aspectos na narrativa, contudo,
indicam que Salústio também incorporou elementos da escrita de Heródoto. Assim como nas
Histórias, notamos a presença constante do narrador em primeira pessoa: “Em meio à demora,
Aulo, deixado como acima dissemos como comandante, tinha esperanças de terminar a guerra
[...]” (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta. XXXVII)
15
e “Assim, o Cônsul havia examinado tudo,
e creio que foi protegido pelos deuses” [...] (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta. XC).
16
Indicações
de sua pesquisa histórica e a expressão de incertezas, assim como no relato grego, também
podem ser percebidas na Guerra de Jugurta (GRETHLEIN, 2006, p. 299-300). Essas
indicações de dúvidas possuem três funções na estrutura textual: deixar claro que podem haver
outras versões dos fatos (GRETHLEIN, 2006, p. 305-306) como quando o narrador demonstra
dúvida sobre as intenções de Boco (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta. LXXXVIII) função
retórica e de engajamento do leitor.
O uso retórico das expressões de incerteza tem a função de destacar outras partes da
narrativa (GRETHLEIN, 2006, p. 308-309). Um exemplo disso é a reação de Metelo ao saber
do massacre em Vaga, do qual apenas Turpílio escapou ileso: “Metelo, após saber o que
ocorrera em Vaga, retirou-se por algum tempo, abatido”
17
(SALÚSTIO. Guerra de Jugurta.
LXVIII). Seu abatimento diante do ocorrido é realçado pelo recurso da incerteza apresentado
no capítulo anterior: “Pouco sabemos se isso se deveu à misericórdia do inimigo, a algum
acordo ou se por alguma causalidade. Parece, contudo, desonroso e detestável que em tão
grande desgraça tenha obtido uma vida torpe e não uma memória íntegra” (SALÚSTIO. Guerra
de Jugurta. LXVII).
18
Para Salústio, a incerteza sobre as circunstâncias históricas em que
Turpílio sobreviveu não justificam seu comportamento indecente, de modo que é possível se
afirmar que o recurso retórico, nesse contexto, funciona para destacar o julgamento moral do
autor.
Apresentar diferentes avaliações ou possibilidades em um momento da narrativa daria
ao leitor condições de ativa participação na construção do texto. Diante da dupla análise de uma
situação ou do caráter de uma personagem, o leitor poderia sentir-se como uma testemunha
ocular daquilo que está sendo narrado, pela visão mais ampla que esta estrutura narrativa
oferece. Essa é a terceira função das indicações de incertezas que aparecem no texto salustiano
e que o aproximam da escrita herodoteana (GRETHLEIN, 2006, p. 310-111). A alusão às
possíveis motivações para a incursão de Aulo contra as tropas de Jugurta é um exemplo disto:
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“[...] não querendo enganar o rei e aumentar-lhe o medo, ou porque estivesse cego pelo desejo
de apossar-se dos tesouros da cidade, apressou-se em conduzir os manteletes” [...] (SALÚSTIO.
Guerra de Jugurta. XXXVII).
19
Apresentando semelhanças estruturais e temáticas com modelos precedentes, a obra de
Salústio buscou afirmar sua autoridade enquanto relato histórico. Permeada pela interpretação
salustiana do passado, a Guerra de Jugurta apresenta elementos que refletem sua teoria a
respeito da deterioração moral romana. O modo como a aristocracia tratou a guerra, as muitas
ocasiões que foram resolvidas através de suborno, são exemplos disso. A mudança do caráter
de alguns envolvidos também reflete, de acordo com a narrativa salustiana, a prevalência dos
vícios sobre as virtudes. Neste artigo, buscamos apontar e analisar esses elementos para
compreendermos como a visão do autor sobre o presente influenciou sua interpretação sobre o
passado.
Um bom exemplo dessa mudança de atitude é a figura de Jugurta. A adoção deste
sobrinho bastardo por Micipsa se deu quando o plano de criar condições para a sua morte
transformou-se em uma ocasião para Jugurta reafirmar suas virtudes e aumentar seu valor,
segundo Salústio. O rei, que se aproximava da velhice enquanto seus filhos ainda eram
pequenos, passou a temer que o sobrinho usurpasse o poder e matá-lo poderia desencadear uma
revolta ou guerra civil, por ser querido pelo povo (SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, VI). A
solução encontrada foi enviá-lo à frente do exército númida que apoiaria os romanos na guerra
contra a Numância, esperando que o sobrinho fosse morto em combate (SALÚSTIO, Guerra
de Jugurta, VII).
Em pouco tempo, todavia, ele atingiu a glória pela sua obediência, dedicação,
generosidade e habilidade de raciocínio, e tornou-se querido para os romanos (SALÚSTIO,
Guerra de Jugurta, VII). Retornando à sua terra, após a destruição do inimigo, Jugurta levou
uma carta endereçada ao rei em que o general romano não poupava elogios à sua conduta e
reconhecia sua dignidade. Diante dessa missiva, o rei optou por torná-lo herdeiro por testamento
com os mesmos direitos que seus filhos, como tentativa de ganhar sua lealdade através de
favores (SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, IX).
Micipsa, no fim de sua vida, proferiu um discurso publicamente, dirigindo-se ao filho
adotivo, exortando sua atuação junto aos romanos, cuja grande amizade Jugurta teria
conquistado por suas virtudes e a vitória conseguida por sua glória (SALÚSTIO. Guerra de
Jugurta, IX). Sabemos que os discursos são um expediente característico da obra salustiana
para inserir na narrativa as análises em que a voz do autor ecoa nas palavras do orador. Esse
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momento reforça, na narrativa, a imagem positiva de Jugurta que Salústio descrevera
anteriormente. Tendo em mente o plano moralista da obra, cujo objetivo é demonstrar a
degradação político-social pela corrupção dos indivíduos, percebemos que esta imagem de
Jugurta é o contraponto para a análise de sua atuação posterior, durante a guerra pelo controle
total da Numídia. Segundo Willian Batstone (2010, p. xxviii), ao longo do conflito, Jugurta se
corrompeu pelo desejo de poder e, posteriormente, foi infectado pela corrupção em Roma, onde
tudo estava à venda, inclusive os interesses partidários e o bem comum.
Esta conclusão sobre a moral romana está presente na narrativa salustiana, no momento
seguinte ao assassinato de um dos herdeiros do poder. Segundo Salústio, embaixadores númidas
foram enviados à Roma, justificaram o assassinato de Hiempsal pela sua crueldade e acusaram
Aderbal por ter iniciado espontaneamente uma guerra. Parte dos Senadores foi convencida pelo
discurso, parte pelo suborno oferecido anteriormente ao debate e, assim, designou-se dez
embaixadores para dividirem o reino entre os dois herdeiros. O sucesso obtido pelo recurso ao
suborno surpreendeu Jugurta, que constatou ser verdadeiro aquilo que seus amigos numantinos
afirmavam: “tudo em Roma se vendia
20
(SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, XX; XXVIII).
Diante desta conclusão, aquele virtuoso herdeiro númida corrompeu-se e passou a utilizar o
expediente do suborno como arma na guerra pelo poder
21
. Assim, Jugurta, de jovem forte,
destemido e disciplinado, passou, de acordo com Salústio, a governante ambicioso e corrupto
pelo contato com a aristocracia romana.
Como mencionado, o conflito entre Roma e Jugurta se arrastou ao longo dos mandatos
de vários Cônsules, sendo resolvido pelo Cônsul Mário, durante seus primeiros mandatos. A
sua primeira eleição revela, também, a visão de Salústio a respeito da decadência moral por que
passava a política romana. Em sua narrativa, percebemos como o comportamento de Metelo é
apresentado para exemplificar a degradação que atingia a aristocracia.
Mário, que era Legado de Metelo, candidatou-se ao Consulado e teve seu pedido de
dispensa para retornar a Roma afim de participar das eleições negado por Metoelo. O Cônsul
ainda o aconselhou que “não fosse pleitear algo tão absurdo e que não colocasse seu desejo
acima de sua condição” (SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, LXIV).
22
Salústio justifica a postura
de Metelo pelo seu espírito de desdém e de soberba, vícios comuns à nobreza (SALÚSTIO,
Guerra de Jugurta, LXIV), que então atingiam Mário pela ausência de ascendência antiga,
ofuscando, na ótica de Metelo, todos os seus títulos e virtudes (SALÚSTIO, Guerra de Jugurta,
LXIII).
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O posicionamento do Cônsul, membro de uma família patrícia, exemplifica bem a
importância que estes homens de ascendência nobre davam para a tradição familiar na
participação na vida pública. Além disso, este fato também ilustra a oposição que os membros
de famílias equestres (o caso de rio) ou plebeias sofriam dentro da política romana. Isso
contribuiu para a explicação, de certa forma simplista, da disputa de poder ocorrida no fim do
período republicano como o enfrentamento das forças aristocráticas com aqueles que não
descendiam de famílias nobres. Outra possível análise deste fato deriva das relações de
clientelismo que caracterizavam a dinâmica política romana. Mário, assim como todo equestre
descendente de uma família provincial, necessitava do apoio de um patrono para o bom
andamento de sua carreira pública. Como patrono de Mário, Metelo estava ciente de que a
eleição de seu cliente causaria um considerável enfraquecimento à sua reputação, ou força
política, posto que estaria privado dos préstimos de Mário e de sua família (SHOTTER, 1994,
p. 30-31).
A negativa do Cônsul e sua justificativa serviram para aumentar o desejo de Mário em
alcançar o cargo pretendido e despertou sua ira em relação a Metelo (SALÚSTIO, Guerra de
Jugurta, LXIV). Mário passou a denegrir a imagem do Cônsul junto a seus soldados e impeli-
los a escreverem a seus conhecidos de Roma solicitando que o comando da guerra fosse
entregue a ele, que afirmava que, se isso ocorresse, venceria Jugurta rapidamente (SALÚSTIO,
Guerra de Jugurta, LXV).
O Cônsul, percebendo que Mário estava ali a contragosto, enviou-o de volta para Roma,
onde foi muito bem recebido pela plebe, informada de suas qualidades pelas cartas
anteriormente enviadas. Com o apoio do povo, Mário foi eleito Cônsul e designado, pela
maioria, para continuar a guerra contra Jugurta (SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, LXXIII).
Após os preparativos necessários e o alistamento de novos soldados, o Cônsul partiu para a
África e recebeu o comando das tropas do Legado P. Rutílio, “pois Metelo evitara o encontro
pessoal com Mário: não queria ser obrigado a ver o que, por ouvir, não pudera tolerar”
(SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, LXXXVI).
23
Para Plutarco (Vida de Mário, 10), esta atitude
de Metelo deveu-se à inveja, pois considerava ter findado a guerra, faltando apenas capturar
Jugurta, e Mário, cumprindo esta última tarefa, triunfaria em seu lugar.
Metelo, devido ao fim de sua magistratura foi obrigado a entregar o comando da guerra
para o novo Cônsul. Este foi o primeiro a experimentar a reeleição para o cargo que ocupou por
sei anos consecutivos sendo reeleito diversas vezes mesmo estando fora de Roma o que
pode ser visto como uma indicação da degradação dos costumes políticos romanos.
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Considerando, porém, que o governo republicano sempre fora marcado por modificações,
muitas delas necessárias para a manutenção do governo, podemos interpretar este fato como
mais uma dessas adaptações políticas. Afinal, a substituição do Cônsul responsável pela
condução de uma guerra poderia ser danosa para o andamento do conflito, que geralmente
extrapolava a vigência da magistratura.
Escrevendo suas obras monográficas no conturbado contexto político do fim da
República romana, Caio Salústio Crispo utilizou-se dos temas por ele selecionados para
expressar sua crítica à política de seu tempo. Em um discurso moralista em que imita modelos
precedentes como Tucídides e Heródoto, o autor demonstra como a ausência do metus hostili
abriu espaço para a auratia e a ambitio, configurando a degradação da moral romana. Ao longo
da narrativa dos fatos relativos à guerra contra o rei númida, percebemos como as personagens
exemplificam tal decadência moral. Nosso objetivo, neste momento, foi analisar algumas
dessas personagens, especificamente Jugurta e Metelo, e a maneira como elas deixam de ser
virtuosas e sucumbem aos vícios que, naquele momento segundo Salústio, governavam Roma.
Assim, percebemos como, ao longo da narrativa, a visão pessimista de Salústio a respeito dos
rumos que a política romana tomava influenciou na sua interpretação do passado. Como uma
obra histórica, a Guerra de Jugurta formata-se como produto de seu tempo e produtora de
memória, posto que nos oferece uma leitura peculiar sobre os eventos ocorridos anteriormente.
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Recebido em 07/04/2020.
Aceito em 20/05/2020.
1
Sed ego adulescentulus initio, sicuti plerique, studio ad rem publicam latus sum [...]”. Todas as traduções foram
feitas pela autora
2
“Sed ego adulescentulus initio, sicuti plerique, studio ad rem publicam latus sum, ibique mihi multa advorsa
fuere. nam pro pudore, pro abstinentia, pro virtute audacia largitio avaritia vigebant. quae tametsi animus
aspernabatur insolens malarum artium, tamen inter tanta vitia inbecilla aetas ambitione conrupta tenebatur; ac me,
quom ab relicuorum malis moribus dissentirem, nihilo minus honoris cupido eadem quae ceteros fama atque
invidia vexabat.”
3
“atque ego credo fore qui, quia decrevi procul a re publica aetatem agere, tanto tamque utili labori meo nomen
inertiae inponant, certe quibus maxuma industria videtur salutare plebem et conviviis gratiam quaerere. qui si
reputaverint, et quibus ego temporibus magistratus adeptus sum [et] quales viri idem adsequi nequiverint et postea
quae genera hominum in senatum pervenerint, profecto existumabunt me magis merito quam ignavia iudicium
animi mei mutavisse maiusque commodum ex otio meo quam ex aliorum negotiis rei publicae venturum.”
4
“neque enim alio loco de Sullae rebus dicturi sumus et L. Sisenna, optume et diligentissume omnium, qui eas res
dixere, persecutus, parum mihi libero ore locutus videtur.”
5
Esta obra, também conhecida como Bellum Catilinae, composta por 61 capítulos, narra a tentativa de Lúcio
Sérgio Catilina de tomar o poder após ser derrotado por Cícero nas eleições de 63 a.C. Catilina, descendente da
gens Sérgia, de família aristocrática empobrecida, foi Pretor em 68 a.C., Questor em 77 a.C. e Governador da
África entre 67 e 66 a.C. e apoiou a política sulana. Em 62 a.C., reuniu em torno de si, através de um discurso
inflamado contra o poder aristocrático, apoiadores originários de diferentes segmentos sociais, como jovens
aristocratas, plebeus e estrangeiros, objetivando assassinar os Cônsules e tomar o poder. Após uma tentativa
frustrada, foi declarado inimigo público pelo Senado e condenado à morte. Tendo optado pelo combate, Catilina
foi morto em Pistóia.
6
“igitur ubi animus ex multis miseriis atque periculis requievit et mihi relicuam aetatem a re publica procul
habendam decrevi, non fuit consilium socordia atque desidia bonum otium conterere, neque vero agrum colundo
aut venando, servilibus officiis, intentum aetatem agere; sed a quo incepto studioque me ambitio mala detinuerat,
eodem regressus statui res gestas populi Romani carptim, ut quaeque memoria digna videbantur, perscribere, eo
magis quod mihi a spe metu partibus rei publicae animus liber erat.”
7
“Ceterum ex aliis negotiis, quae ingenio exercentur, in primis magno usui est memoria rerum gestarum.”
8
“Verum ex iis magistratus et imperia, postremo omnis cura rerum publicarum minume mihi hac tempestate
cupiunda videntur, quoniam neque virtuti honos datur neque illi, quibus per fraudem iis fuit uti, tuti aut eo magis
honesti sunt.”
9
“Ceterum mos partium et factionum ac deinde omnium malarum artium paucis ante annis Romae ortus est otio
atque abundantia earum rerum, quae prima mortales ducunt. nam ante Carthaginem deletam populus et senatus
Romanus placide modesteque inter se rem publicam tractabant, neque gloriae neque dominationis certamen inter
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DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11418
civis erat: metus hostilis in bonis artibus civitatem retinebat. sed ubi illa formido mentibus decessit, scilicet ea,
quae res secundae amant, lascivia atque superbia incessere.”
10
“igitur primo pecuniae, deinde imperi cupido crevit: ea quasi materies omnium malorum fuere. namque avaritia
fidem probitatem ceterasque artis bonas subvortit; pro his superbiam, crudelitatem, deos neglegere, omnia venalia
habere edocuit. ambitio multos mortalis falsos fieri subegit, aliud clausum in pectore, aliud in lingua promptum
habere, amicitias inimicitiasque non ex re, sed ex commodo aestumare, magisque voltum quam ingenium bonum
habere.”
1111
“Bellum scripturus sum, quod populus Romanus cum Iugurtha rege Numidarum gessit, primum quia magnum
et atrox variaque victoria fuit, dein quia tunc primum superbiae nobilitatis obviam itum est; quae contentio divina
et humana cuncta permiscuit eoque vecordiae processit, ut studiis civilibus bellum atque vastitas Italiae finem
faceret.”
12
“Res postulare videtur Africae situm paucis exponere et eas gentis, quibuscum nobis bellum aut amicitia fuit,
adtingere.”
13
“sed de studiis partium et omnis civitatis moribus si singillatim aut pro magnitudine parem disserere, tempus
quam res maturius me deseret. quam ob rem ad inceptum redeo.”
14
Sed quoniam in eas regiones per Leptitanorum negotia venimus, non indignum videtur egregium atque mirabile
facinus duorum Carthaginiensium memorare;”
15
“ea mora in spem adductus Aulus, quem pro praetore in castris relictum supra diximus, aut conficiundi belli aut
terrore exercitus ab rege pecuniae capiundae milites mense Ianuario ex hibernis in expeditionem evocat [...]”
16
“igitur consul omnibus exploratis, credo dis fretus [...]”
17
“Metellus postquam de rebus Vagae actis conperit, paulisper maestus ex conspectu abit.”
18
“id misericordiane hospitis an pactione aut casu ita evenerit, parum conperimus, nisi, quia illi in tanto malo
turpis vita integra fama potior fuit, inprobus intestabilisque videtur.”
19
[...] tamen aut simulandi gratia, quo regi formidinem adderet, aut cupidine caecus ob thesauros oppidi potiundi
vineas agere, aggerem iacere aliaque, quae incepto usui forent, properare.”
20
“[...] omnia Romae venalia esse”.
21
Jugurta praticava o suborno de várias maneiras, como por exemplo, através de presentes e promessas
(SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, XV; XVI). Entretanto, nem todas as tentativas de corrupção eram bem sucedidas
(SALÚSTIO, Guerra de Jugurta, XXVIII; XXXV)
22
“[...] ne tam prava inciperet neu super fortunam animum gereret.
23
“Nam Metellus conspectum Mari fugerat, ne videret ea, quae audita animus tolerare nequiverat.”