Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
31
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
Percepção dos jovens sobre o novo território 10 anos depois da desterritorialização: o
caso de Itueta
Young people's perception of the new territory 10 years later of deterritorialization: the
case of Itueta
Ernani Soares Rocha
1
Sueli Siqueira
2
Resumo
Itueta, município localizado na mesorregião do
Vale do Rio Doce, vivenciou de 2000 a 2006 a
remoção de sua sede em função da instalação da
Usina Hidrelétrica Eliezer Batista (UHE Aimorés).
Este estudo tem como escopo compreender a
percepção dos jovens desse município que
vivenciaram o processo de realocação, bem como
os efeitos dessa Territorialização,
Desterritorialização e Reterritorialização (TDR)
para esses jovens. Trata-se de um estudo de
natureza qualitativa, tendo como participantes os
jovens e adolescentes residentes no município de
Itueta, que à época estavam na faixa etária entre 16
e 28 anos e hoje adultos entre 30 e 42 anos.
Foram realizadas 10 entrevistas em profundidade
com esses jovens. Os resultados demonstraram que
suas vidas foram marcadas pelo processo de
realocação. Reconhecem a importância da cidade
“velha”, para sua família e seus descendentes, mas
percebem que o deslocamento possibilitou novas
oportunidades.
Palavras-chave: Juventude; Territorialização;
Desterritorialização; Reterritorialização; Itueta.
Abstract
Itueta, a municipality located in the mesoregion of
Vale do Rio Doce, experienced the removal of its
headquarters from 2000 to 2006 due to the
installation of the Eliezer Batista Hydroelectric
Plant (UHE Aimorés). This study aims to
understand the perception of young people in this
municipality who experienced the relocation
process, as well as the effects of this
Territorialization, Deterritorialization and
Reterritorialization (TDR) for these young people.
This is a qualitative study, with participants as
young people and adolescents living in the
municipality of Itueta, who at the time were in the
age group between 16 and 28 years old and now
adults between 30 and 42 years old. 10 in-depth
interviews were conducted with these young
people. The results showed that their lives were
marked by the relocation process. They recognize
the importance of the “old” city, for their family
and their descendants, but they realize that the
displacement made possible new opportunities.
Keywords: Youth; Territorialization;
Deterritorialization; Reterritorialization; Itueta.
Introdução
A partir do início do século XX, a mesorregião mineira do Vale do Rio Doce começou
a receber imigrantes Italianos advindos, principalmente, do estado do Espírito Santo, em sua
porção sul onde hoje são as atuais cidades de Castelo e Cachoeiro do Itapemirim (NICOLI,
2014). Alguns desses migrantes se estabeleceram na microrregião de Aimorés. Um desses
povoamentos deu origem à antiga ou velha Itueta, que fora demolida em face da construção da
1
Mestre do Programa de Mestrado em Gestão Integrada do Território da UNIVALE Governador Valadares/MG.
E-mail: ernanisoaresrocha@gmail.com.
2
Doutora em Ciências Humanas. Sociologia e Política, Professora do Programa de Mestrado em Gestão Integrada
do Território da UNIVALE Governador Valadares/MG. E-mail: sueli.siqueira@univale.br.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
32
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
Usina Hidrelétrica de Aimorés UHE, ocorrida em 2005, obrigando a população local a uma
migração forçada para a agora declarada nova Itueta.
Os lugares, espaços ocupados por pessoas que se constituem em comunidades e cidades,
são repletos de simbologia e não são simples territórios materiais. Eram palco para encontros
sociais, lazer, territorialidades que numa transposição radical e imposta se perdem causando
graves problemas sociais. Em nome do desenvolvimento, esses territórios são reivindicados
para a construção de hidrelétricas, desconsiderando-se os impactos sociais e culturais
provocados na vida da população atingida.
A construção da nova cidade, a transferência da população e a destruição da antiga
localidade aconteceu de forma simultânea, atropelando os processos de adaptação e transição,
necessários à minimização dos transtornos advindos da realocação.
Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, que busca compreender a percepção dos
jovens desse município que vivenciaram o processo de realocação, bem como os efeitos dessa
Territorialização, Desterritorialização e Reterritorialização (TDR) para esses jovens à época da
remoção, hoje adultos.
Foram realizadas entrevistas com jovens e adolescentes à época da realocação na faixa
etária de 16 a 28 anos
1
, residentes no município de Itueta, e todos alunos da Escola Estadual
Américo Vespúcio, escola de segundo grau localizada em Itueta velha, e atualmente na nova
cidade de Itueta. Do total de 191 alunos matriculados no ano de 2005, 77 foram localizados e
dentre estes, foram realizadas 10 entrevistas em profundidade. As entrevistas foram transcritas
e analisadas utilizando a metodologia da “Análise do discurso de Bardin”.
Itueta: uma cidade realocada
A energia elétrica é fundamental para a vida moderna. No Brasil, a principal fonte dessa
energia é a hidroeletricidade, que corresponde a 75,68% do total, produzida em 826 usinas
instaladas em território nacional (BRASIL, 2008). O empreendimento hidrelétrico abrange
iniciativas multidimensionais, que incluem aspectos econômicos, técnicos, políticos,
socioculturais e ecológicos, em um complexo processo de alterações territoriais que rompem a
fronteira do Brasil.
A construção do reservatório e a edificação da barragem produzem implicações
socioambientais, a exemplo do deslocamento de famílias e da supressão de territórios com suas
territorialidades, além de danos ambientais que se avolumam, como o desaparecimento de
espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, paisagens naturais e sistemas ecológicos.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
33
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
Em nome do progresso e do desenvolvimento, a população é percebida como obstáculo,
ou seja, enclaves ou problemas de obstrução para a empresa e que devem ser removidos para a
viabilização do empreendimento, conforme descrevem Vainer e Araújo (1992, p. 20) "[...]
Quanto às populações, passam a ser um obstáculo que deve ser removido para limpar o terreno”.
O contexto sociocultural estabelecido na comunidade é desconsiderado, um novo estilo ou
forma de vida é imposto pela da barragem, instalando-se uma realidade de injustiça social e
desconsideração com o meio ambiente (MARTINEZ-ALIER, 1999; ACSERALD et al., 2004,
apud BREGAGNOLI, 2013).
O município de Itueta tinha inicialmente a extração de madeira como sua principal
atividade econômica e nesses espaços surgiam dispersas fazendas de criação de gado, núcleos
muito pequenos e isolados de garimpo de ouro e agricultura de subsistência. Somente com a
chegada da Estrada de Ferro Vitória a Minas, pelas idas de 1940, facilitando não só a
possibilidade de acesso, mas também a possibilidade de escoamento da produção é que o
município vivenciou sua grande expansão (PREFEITURA MUNICIPAL DE ITUETA, 2018).
Entretanto, a partir dos anos 50, em virtude dos sinais de escassez de madeira, Itueta vivencia
um declínio econômico, o que provoca uma evasão da população da sede do município.
É nesse cenário, que em 1993, a população tomou ciência do projeto de construção de
uma Usina Hidrelétrica na região de Aimorés, o que acabaria por trazer grandes alterações no
contexto do município, tanto no tocante ao território quanto na questão social. Inicia-se, então,
uma série de debates entre os moradores de Itueta e os representantes do consórcio
2
. O
consórcio, criado pelas empresas Cemig e Vale (Antiga Vale do Rio Doce), tinha como
premissa negociar com a população local a realocação, utilizando como fomento todas as
possibilidades e virtudes que tal obra traria ao município.
Em 2000 iniciam-se as negociações, já seguidas das primeiras realocações, finalizando
em 2005 com o assentamento da população no novo território de Itueta. Em sequência, houve
a demolição total da antiga Itueta, ainda em 2005. A nova cidade foi construída a 4 km da vila
de Quatituba (SANTOS; BIAVATI, 2015).
Itueta foi o município mais afetado, com a desapropriação de 318 propriedades, sendo
283 propriedades urbanas inclusive prédios municipais e 35 rurais. Também foram
deslocadas compulsoriamente 80 famílias de meeiros e trabalhadores assalariados não
proprietários, que tinham moradia e ocupação agrícola produtiva em várias das propriedades
desapropriadas. Desse total, 30 famílias teriam sido reassentadas em área rural e as 50 que
tinham optado por realocação urbana, teriam sido indenizadas (RELATÓRIO DO CONSELHO
‘ATINGIDOS POR BARRAGENS’, 2010, p. 63-64).
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
34
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
Este artigo trabalha o conceito de território em sua dimensão mais ampla, que abrange
os aspectos materiais e imateriais. Sendo assim, a compreensão da definição de atingidos
envolvendo todos os sujeitos que direta ou indiretamente foram impactados pelo
empreendimento é o mais apropriado, muito embora, para este estudo foi realizado um recorte,
delimitando os jovens residentes no antigo município de Itueta, à época da remoção.
A construção da usina e o decorrente deslocamento físico imediato da população geram
alterações de grande amplitude na comunidade afetada. Seu modo de vida é modificado, bem
como sua cultura local; danos sociais, morais e emocionais são desconsiderados. O
deslocamento é de território, é físico, é material, assim como deslocam-se as territorialidades,
a paisagem cultural, o deslocamento é também imaterial. Para essas pessoas, a mudança em
função da instalação do reservatório:
Não significa apenas mudar de um espaço físico para o outro, mas significa a troca de
um espaço com sentidos múltiplos: um sentido mais objetivo que permite uma
valorização e uma quantificação monetárias em relação à terra e suas benfeitorias e, uma
valorização baseada em representações simbólicas que atribuem um valor estimativo a
um espaço que foi, também, apropriado e construído socialmente (SCHERER-
WARREN; REIS; BLOEMER, 1990, p. 30).
Nesse cenário, segundo Rezende (2002, p. 31), “muitas são as memórias e as histórias
da população que ficam debaixo d’água para sempre, casas de imensurável valor para
determinadas pessoas, laços de amizade destruídos, culturas sociais desfeitas sem sequer uma
compensação”. No caso de Itueta, grande parte da cidade não foi inundada, mas destruída, a
terra remexida e eliminados todos os vestígios da cidade, e em seu lugar, 14 anos depois, existe
uma mata.
A partir do instante em que os atingidos pela barragem se deparam com a realidade de
deixarem o seu lugar de moradia demonstram a tristeza provocada pelas perdas físicas e
simbólicas, decorrentes dos laços sociais ali estabelecidos por suas raízes, tradições culturais,
meios e modos de vida. Essas diversas ligações constroem o espaço com uma dinâmica de
sociabilidade típica das interações e relações sociais decorrentes dos contextos e círculos em
que as pessoas estão inseridas em determinado local.
No processo de realocação de Itueta, os vínculos comunitários e as redes de
sociabilidade o foram considerados no planejamento para a realocação ou no lculo das
indenizações, e em consequência disso, o sentimento de desenraizamento em relação ao novo
território fica evidente, até porque sem relações de vínculo com o local, sentimentos de solidão
e isolamento se destacam (GENOVEZ, 2013).
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
35
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
Nesse caso de desestruturação e alteração do território de referência, o exercício da
memória por parte dos habitantes de Itueta representou um ato de resistência à condição de
perda/ausência de referências e desamparo que o processo de realocação provocou.
Diante do processo de realocação vivido, a memória de tais momentos faz surgir
ressignificações do território, representações do ser e do fazer dos indivíduos durante todo o
processo. Segundo Delgado (2003), memória, discursos e identidades são institutos
complementares que constituem humanidades. Seguindo tal raciocínio, as memórias constituem
territórios, que dão sentido e significado ao espaço, produzem identidades, colocando-o como
lugar de experiências vivenciadas durante o processo de territorialização. Nesse sentido,
compreender a percepção dos jovens que vivenciaram esse processo, suas expectativas, e como
fazem a leitura dessa vivência na atualidade, bem como a reterritorialização e seus efeitos em
suas vidas é uma discussão que ampliará a compreensão desse fenômeno em mais uma
dimensão, até então pouco explorada.
Território, Territorialização e Memória
Os atingidos, diante da desterritorialização, fazem surgir discursos de valorização de seu
território, de composição de sua identidade, de resgate e recriação de sua memória. Para essas
pessoas, o território se apresenta como sinônimo de um espaço relacional, de interconhecimento
e fundamento de sua identidade.
A realocação da população afetada pela barragem implica uma nova forma de
apropriação do território, uma territorialização na reconstrução de suas vidas e espaços, mas
centrada na experiência vivenciada no antigo território, pautada na memória de seus moradores.
Para refletir sobre o sentimento daqueles que se sentiam integrados ao ambiente que
habitavam e sofreram o deslocamento territorial compulsório, entender as comunidades
desenraizadas, torna-se útil e importante considerar o conceito de topofilia proposto por Tuan
e a noção de pertencimento e identidade utilizados por Bonnemaison. A estreita relação entre
lugar e território, os conceitos de vínculo, pertencimento e identidade possibilitam que uma
comunidade estabelecida em determinado território possa ser analisada por meio da Geografia
Humanista de Tuan (1974), assim como o diálogo entre este autor e os que defendem uma
abordagem cultural como Bonnemaison (1980; 2000).
Na perspectiva de Bonnemaison (2002), o território não se liga apenas a um princípio
material de apropriação ou posse, mas é concebido como espaço socialmente construído e
culturalmente vivenciado, ao qual se atribui um valor e com o qual se estabelece laços de
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
36
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
pertencimento e afetividade, utilizando-o como base para a reelaboração da identidade de um
grupo social a partir de suas experiências de vida.
Bonnemaison (1980) destaca que uma identificação completa entre o ser humano e
o seu território, havendo entre eles uma forte ligação difícil de ser rompida, pois a perspectiva
da tradição e do costume está arraigada. O autor compara o ser humano a uma planta e ressalta
sua ligação biológica com a terra, em que deve viver e morrer, portanto seus costumes
tradicionais compõem sua cultura enraizada em seu território. Considera que a partir da relação
secreta e emocional que liga os homens ao seu território, ocorre a construção da identidade
individual, social e cultural. A identidade cultural aqui é caracterizada por múltiplos sentidos
fluidos sem se desligar dos aspectos da identidade social. Ela se traduz no sentimento de ser e
pertencer a um território e a um determinado grupo.
A territorialidade é que ajuda o grupo a consolidar-se quando precisa se readaptar a um
novo ambiente, permitindo produzir e reproduzir um novo território em seu novo local de vida.
As comunidades afetadas pelos empreendimentos hidrelétricos em seu cotidiano concebem o
território como “um espaço sobretudo etnográfico e deve ser definido pelos diferentes contextos
e pelas práticas sociais que lhe conferem significado” (O’ DWYER, 2012, p. 242).
Ao lugar, segundo Tuan (1983, p. 14) se atribui valor, ele é “uma classe especial de
objeto”, onde se pode morar. Assim, o lugar é o espaço onde se constituem relações sociais
especiais repletas de significado, relações em que se destacam sentimentos de pertencimento
ligados a este espaço. Relações, que por suas características, são individuais e se diferenciam
de pessoa para pessoa.
O território, o ambiente, o tempo, as relações territoriais que se estabelecem em
determinado lugar, uma vez que interferem nas experiências e percepções das pessoas, podem
alterar sua memória. Os conteúdos de tais elementos são reconstruídos, moldados nos termos
das convenções e contextos socialmente relevantes, e sempre considerando as relações políticas
e de poder formadas no processo de apropriação do território.
A memória pode ser concebida como fenômeno psíquico que interfere e guia a ação das
pessoas no território (RICOEUR, 2000). Identifica as pessoas em um tempo e espaço, e a elas
estabelece papéis (sociais) específicos (DUGAS, 1917). A memória tem como base os lugares
com seus percursos, as divisões espaciais repletas de permissões, restrições, proibições e os
desdobramentos próprios da construção de um território. Apesar de conceber a produção
territorial como produção material, os processos de produção dos territórios e suas
territorialidades apresentam necessariamente em suas manifestações elementos cheios de
aspectos e conteúdos imateriais, próprios de seus habitantes e ligados à sua história e à sua
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
37
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
memória; matéria e ideia se misturam em uma produção, em uma totalidade
multidimensional (FLAVIO, 2013).
A história de cada território é construída sobre espaços onde se desenvolvem relações
sociais em direções diversas. Ela se constitui pela síntese de elementos próprios que se
relacionam no dia a dia da vida dos sujeitos sociais. A rotina diária reforça os costumes,
constroem os traços culturais, permite que os valores e tradições sejam repassados, e esse
conjunto e multiplicidade de ações possibilitam a construção da memória dos sujeitos sociais
que compartilham ou compartilharam desse mesmo espaço como um elo entre o tempo passado
e o tempo presente (LACERDA; MENDES, 2017).
Assim, memória e história não são termos sinônimos, pois segundo Nora (1993, p. 09)
[...] a história é a interpretação que tem a pretensão de ser autoridade universal”, ou seja,
válida para a totalidade do grupo. [...] reconstrução, sempre problemática e incompleta, do que
não existe mais”. A memória se apresenta como manifestação, individual ou coletiva, carregada
de lembranças específicas de indivíduos ou grupos sobre fatos e eventos, ou seja, apresenta
características afetivas, que somente o que interessa às pessoas ou grupos específicos é
guardado. Dessa forma, a memória se traduz na compartimentação da história, é a
particularização da história, de acordo com o indivíduo ou o grupo, já que a história pertence a
todos e a ninguém, com a tendência ao universal (NORA, 1993).
Nessa perspectiva, refletindo sobre o objeto deste artigo, podemos considerar o território
de Itueta velha como um espaço onde a ritualização de uma memória-história é o ponto em que
as lembranças simbolizam os momentos vividos. A remoção é um marco nessa memória-
história. De tal modo, segundo Arévalo (2004, p. 5), "só é lugar de memória se a imaginação o
investe de uma aura simbólica [...] só entra na categoria se for objeto de um ritual".
Quando se permitem demonstrar suas memórias afetadas, feridas, as populações
desenraizadas de seu território pelo empreendimento demonstram também uma história
caracterizada por conflitos e resistência. Nesse sentido, o território se constitui como lugar de
encontros, de vivências, de práticas, fazeres e saberes que reforçam significados na proporção
em que os sujeitos sociais se apropriam do espaço produzido e criam vínculos e memórias.
O lugar da rotina, do cotidiano, das experiências e da construção de práticas coletivas,
é o que se concebe como território. Portanto, é nesse território que os jovens vivenciam a
experiência da vida cotidiana e agem em meio a todas as territorialidades existentes,
construindo suas histórias de vida e fixando os fatos na edificação de sua memória.
Não obstante, e para fins de entendimento da identidade territorial, de se trazer as
memórias desses jovens, a fim de perceber a fragilidade temporal deste acervo à (re)construção
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
38
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
da nova identidade, bem como para levantar a representação desse processo na memória e
identidade territorial dos jovens.
A juventude aparece como uma construção cultural relativa no tempo e no espaço. Cada
sociedade organiza a transição da infância para a vida adulta, ainda que as formas e conteúdo
dessa transição sejam variáveis. Embora esse processo tenha uma base biológica, o importante
é a percepção social destas transformações e suas implicações para a comunidade (FEIXA,
1998, p. 28).
Neste artigo, optou-se por utilizar a percepção dos jovens para compreensão do contexto
histórico, indo além dos limites cronológicos, uma vez que as construções sociais variam de
acordo com o grupo, a cultura e o momento histórico vivenciado pela juventude, numa
perspectiva além da idade biológica. Concebe-se o jovem como ser que ama, sofre, diverte-se,
reflete sobre suas condições e experiências de vida, bem como um ser singular que se apropria
do social e por ele é transformado.
A juventude é encarada como um fenômeno social repleto de complexidade, que
envolve a diversidade de experiências e situações contraditórias, além da multiplicidade de
espaços e formas de socialização. Trata-se de uma condição social definida que ultrapassa os
critérios de idade e/ou biológicos (DAYRELL, 2016).
Para compreender a relação da juventude com seu território é preciso lançar mão de
noções de territorialização e territorialidade, como orienta Porto-Gonçalves (2002), na
abordagem da tríade território-territorialização-territorialidade. Segundo esse autor, a
territorialização se traduz no movimento de apropriação do território e esse processo possibilita
identidades, e por consequência, territorialidades específicas.
O território se constrói por meio das experiências nele vivenciadas. Ele se traduz em
uma referência espacial e afetiva na produção da vida do jovem, pois a diversidade das
experiências dos jovens tem relação com a própria diversidade social que constitui os territórios.
Assim sendo, o conceito de territorialidade pode ser compreendido como a forma pela
qual o espaço-território é vivenciado e experimentado. E essa compreensão é fundamental na
medida em que enseja pensar a estreita relação entre território e os vínculos com o lugar,
relevante nesta pesquisa para entendermos a relação dos jovens com o território da antiga e
nova Itueta, bem como as influências em sua história e sua memória.
Territorialidade e multiterritorialidade dos jovens em contexto de deslocamento na
cidade de Itueta
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
39
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
A realocação da cidade afeta toda a dinâmica comunitária, ocasionando, por vezes,
perda de identidade, da história e da cultura dessas populações. A partir dos relatos é possível
considerar que, além de todos os transtornos criados quando da construção e conclusão das
obras da nova Itueta, ainda a frustração das expectativas que as famílias têm para o seu futuro
e de seus filhos nas novas terras. As alterações ocorridas são territoriais enquanto espaço físico
e espaço simbólico, que uma identidade própria das famílias e dos jovens com esse
ambiente e com essa comunidade, o que determina que as frustrações existentes sejam
basicamente nos elementos identitários. Uma memória histórica e cultural, individual e
particular, que determina ações diferenciadas, assim como, impõe realidades distintas.
Identificamos na pesquisa de campo que uma nítida divisão social entre os indivíduos
pesquisados, que instalados em um cenário diferente de seu modo tradicional de vida, passam
então a se comportar ora como outsiders, ora como insiders.
Conforme descreve Norbert Elias (2000, p. 7):
Um establishment é um grupo que se auto percebe e que é reconhecido como uma "boa
sociedade", mais poderosa e melhor, uma identidade social construída a partir de uma
combinação singular de tradição, autoridade e influência: os established fundam o seu
poder no fato de serem um modelo moral para os outros.
Na língua inglesa, o termo que completa a relação é outsiders os não
membros da "boa sociedade", os que estão fora dela. Trata-se de um conjunto
heterogêneo e difuso de pessoas unidas por laços sociais menos intensos do que aqueles
que unem os eslablished. A identidade social destes últimos é a de um grupo. Eles
possuem um substantivo abstrato que os define como um coletivo: são o establishment.
Os outsiders, ao contrário, existem sempre no plural, não constituindo propriamente um
grupo social.
Os indivíduos que viviam em uma invisibilidade social, às margens da sociedade
3
,
conseguiram se adaptar facilmente à realocação e nesse processo obtiveram ganhos sociais e
econômicos. Viram na realocação uma oportunidade de transformação de sua realidade de vida,
se reterritorializaram com essas perspectivas, minimizando os constrangimentos e
estranhamentos decorrentes do processo de realocação.
Analisando o relato de um dos entrevistados, percebe-se que sua realidade é de família
de pouco recurso, em que o trabalho é parte da rotina das crianças desde cedo, o que faz da
realocação oportunidade de novos projetos, abrindo horizontes e possibilitando melhores
condições de vida e moradia, além de proporcionar novas perspectivas para seu futuro. Para
estes moradores, que na perspectiva de Elias (1965) estavam fora, ou à margem do núcleo social
estabelecido (outsiders), a percepção da realocação é diferente dos established. Além da
condição socioeconômica desses jovens, existe a abertura para mudança, o senso de aventura,
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
40
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
própria dos jovens.
Ressalta-se a percepção de possuir um novo espaço, algo por ele construído, que
demonstra a satisfação com o movimento de realocação, que para muitos trouxe benefícios que
superaram as perdas afetivas, como o projeto de uma casa nova, sonho, provavelmente de
muitos anos.
[...] hoje, eu vejo que foi melhor e apesar de todo sofrimento de tudo que a gente passou,
hoje assim economicamente eu posso falar que o lugar cresceu um pouco em vista
do que era lá. Por que lá o único ganho que se tinha era na beira linha ou os donos dos
comércios né (E05, F., 32 anos).
Por outro lado, aqueles que, na perspectiva de Norbert Elias (2000), os establishment,
que se auto percebem e que se reconhecem como uma boa sociedade, com sua história familiar
fincada na tradição, autoridade, e portanto, os senhores do lugar, pois constituíam a “sociedade”
e se sentiam parte dessa, que mantinham uma estreita relação social com esta comunidade,
totalmente territorializados nesse local, ou seja, esses insiders que possuíam um projeto de vida
em andamento nesse antigo território demonstraram nítida dificuldade em romper os laços
estabelecidos, de abandonar seus projetos, de saírem da zona de conforto para a construção de
uma nova sociedade. Estes se sentiam parte desse território, o tinham como propriedade e para
eles foi mais difícil quebrar esses laços sociais, ainda que fossem laços herdados de seus
ancestrais. Nessa perspectiva, suas perdas foram significativas e a realocação representou, se
não perda econômica, perda social e de posição de establishment, pois todos eram outsiders no
novo território.
[...] Raiva e esse consórcio fez pra mim é covardia muita covardia, por que ameaçou
muito o povo esse povo que tem essas casas ai pra cima e meu pai lutando pra poder
eles, meu pai conversou com o pessoal, chamou o pessoal, não vão mudar não, vamos
ganhar mais coisa vamos lutar pra umas coisas [...] (E09, M., 34 anos).
Assim sendo, a ligação com o antigo território e a dificuldade de construir um novo
cenário social, faz que tais indivíduos demonstrem reduzida satisfação com a realocação, pelo
fato da realidade de hoje ser diferente das perspectivas anteriores e gerar discreta insatisfação
com a migração.
O território é vivenciado pelos jovens, segundo Dayrell (1996) de formas variadas. Para
ele, a significação dos espaços é singular, bem como a forma de viver o território também o é.
Aos espaços são atribuídos sentidos pelos jovens, de acordo com a multiplicidade de
experiências que vivenciam.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
41
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
A relação com o território passa pelas experiências concretas, coletivas ou individuais
vivenciadas nesse lugar, assim a construção da territorialidade é dinâmica e requer tempo. Os
indivíduos aqui pesquisados eram jovens à época da existência da antiga Itueta, bem como da
realocação, e não tinham a seu favor esse tempo, pois seu tempo vivido nesse território, apesar
de marcante, retrata uma parte importante da vida, ou seja, a infância e a adolescência, e por
isso, havia espaço para novas experiências em outros territórios. Outro aspecto importante é a
forma como a família vivenciou o processo de realocação. Eram a favor ou contra? Eram
outsiders ou insiders?
Percebe-se nos relatos dos participantes do estudo que a realocação não foi vivida com
a mesma intensidade dos adultos. Suas memórias, passados 14 anos, demonstram que, como
afirma Dayrell (1996), a juventude é um tempo de vivenciar novas experiências sem medos e
apegos, mas de uma forma mais livre. Nesse sentido, o estranhamento e as dificuldades de
desterritorializar-se é distinta dos mais velhos.
[...] Minha mãe juntando as plantas dela que ela queria trazer as plantas dela, tudo
misturado dentro dos móveis e aquela bagunça pra arrumar aquilo tudo. A hora que eles
chegaram lá em casa com umas caixas que ai eu percebi, não, a gente vai mudar. Ai a
minha mãe começou a arrumar aquilo tudo aquela bagunça doida e a gente tinha muita
coisa, que a gente tinha trago muita coisa lá da roça né, onde a gente morava por que os
filhos não quiseram nada, então a gente trouxe os móveis com tudo roupa de cama tudo
que tinha na roça a gente trouxe pra cidade então a gente tinha muita coisa e minha mãe
não queria desapegar de nada coisa assim que ela tinha um apego e ainda tem a muitas
coisas. Não tenho boas lembranças não, da relocação (E05, F., 32 anos).
Ao analisar as entrevistas, ressalta-se que o território físico está presente na memória
dos participantes do estudo. É um território concebido como pano de fundo importante para as
relações sociais, pois a ligação com o território físico é acompanhada de lembranças de um
tempo vivido, mas sem a dor e a amargura dos mais velhos. É um lugar de aconchego,
acolhimento, são lembranças da praça como lugar de encontro e brincadeiras, contudo ressalta-
se o reconhecimento (mesmo que entrelinhas) da sua precariedade e das melhores condições do
novo território (ruas asfaltadas, por exemplo).
[...] Rapaz...A cidade era muito acolhedora muito aconchegante. A pracinha da Itueta
velha era onde todo mundo se encontrava; Que todo mundo se encontrava naquele
lugar né, até por que né, televisão é televisão que a gente assistia era na praça era
fantástico, era os trapalhões que passava novela que rei sou eu era tudo na praça, era
ponto de encontro a noite quer fosse no domingo ou durante a semana [...] (E07, M., 42
anos).
Os territórios se apresentam como a afirmação da identidade, do comum-pertencer de
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
42
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
determinado grupo, ou mesmo de um indivíduo, a partir de suas relações com os lugares.
O domínio do espaço territorial se destacava na antiga sociedade de Itueta e para aqueles
que vivenciaram a redução do espaço físico na realocação, esta não foi bem recebida, diferente
daqueles que não possuíam um espaço físico e no novo local ganham um território. Além dessa
questão espacial, a migração envolve aspectos econômicos, em uma relação de ganhos e perdas.
É interessante como um aspecto é reativado na memória quando a questão evoca a
relação com o território; na antiga Itueta, são as lembranças relacionadas às frutas nos quintais.
Na antiga Itueta, os quintais formavam pomares e a cidade era muito arborizada. O novo
território era um brejo que foi aterrado, por isso, na época da remoção não havia árvores e os
pomares não existiam, e portanto, inicialmente não havia possibilidade de colheita em árvores
frutíferas. A relação e o produto da natureza são ressaltados nos relatos, principalmente porque
esses pomares eram pontos importantes de referências e territorialidades ao tempo em que eram
jovens.
Outro item que se destaca no território objeto da pesquisa é o rio Doce, que aparece em
alguns relatos como elemento natural que, ora causava estrago com as enchentes, ora como
local de lazer. Na memória de alguns, o rio lembrava perigo, principalmente para aqueles que
eram atingidos no período das cheias, geralmente os moradores da periferia da cidade. Os que
moravam na região mais alta e não eram atingidos pelas enchentes anuais, suas lembranças são
povoadas de momentos de lazer. É interessante destacar, mais uma vez, que essa memória
positiva ou negativa está diretamente relacionada à posição de insiders e outsiders,
anteriormente referido. Observa-se nos relatos que a referência negativa do rio é daqueles que
viviam à margem da sociedade ituetense. Para estes, eliminar o risco de enchentes mudando-se
para a Itueta Nova foi positivo, houve ganhos nesse deslocamento.
Ficam ressaltados nos depoimentos, sentimentos e sensações dos participantes do estudo
seus vínculos com o território vivido, tanto no aspecto material quanto imaterial, contudo, com
a abertura para o novo, a aventura e o inusitado, próprio dessa fase da vida, a realocação ganhou
outro significado. O rio, a escola e os quintais com árvores frutíferas são elementos presentes
na memória afetiva, mas a expectativa do novo, de uma cidade com organização e
possibilidades ressignificam essas lembranças, percebendo a realocação como um elemento que
permitiu mudanças, principalmente para os que aqui denominamos de outsiders, pois nesse
movimento, os benefícios superaram suas perdas. Além disso, é importante ressaltar que, como
afirma Dayrell (2003), a juventude é uma fase da vida de abertura para o novo e o inusitado.
Para os participantes do estudo, a realocação significava exatamente isto, ou seja, novas
possibilidades.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
43
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
A análise dos relatos dos entrevistados demonstra ainda que a realocação para uma nova
Itueta trouxe, em geral para o público jovem à época do processo migratório, importantes
reflexões do processo de territorialização que não aconteceram de forma idêntica para todos.
Em alguns momentos é possível perceber um vínculo desses jovens com os sentimentos
de seus familiares em relação ao território deixado, incluindo seus símbolos e sua história.
Entretanto, a realocação, em diversos casos, é encarada pelos jovens de forma positiva, como
um novo processo de territorialização capaz de proporcionar mudanças positivas no modo de
vida da população da região, determinando novas possibilidades de existência individual e
coletiva no novo lugar, a depender de suas ações.
A migração para um novo território significa para os entrevistados uma mudança nas
relações sociais, no entanto, alguns enxergam que houve um prejuízo social gerado pela questão
financeira, inclusive com mudança no comportamento dos moradores.
A forma como foi conduzido o processo de realocação, pela empresa responsável,
causou uma divisão entre os moradores, pois existia o grupo que aceitava e o grupo que resistia.
A negociação foi feita individualmente e à medida que havia aderência, as famílias iam sendo
transferidas para a nova Itueta e suas casas demolidas. Muitos moradores que não tinham casa
própria receberam uma casa nova e cesta básica por um ano. Nessa perspectiva, a realocação
ganha novos contornos, sua aceitação, bem como sua concepção enquanto territorialização
benéfica à sociedade ituetense, é algo que aparece nos relatos de forma conexa à mudança da
situação econômica dos moradores, de sua recolocação financeira após a migração. O conflito
entre os que aceitavam pelos ganhos que obteriam (outsiders) e os que resistiam (insiders) está,
de alguma forma, presente no território atualmente.
O jovem outsider está em um estágio da vida de construção de projetos, assim as
mudanças são vistas como possibilidades. Nesse sentido, consegue se desprender da memória
da antiga Itueta e enxergar a migração para o novo território como algo que supera os prejuízos
sociais e contribui com o desenvolvimento dessa sociedade.
A mudança decorrente da realocação foi percebida por alguns entrevistados com
sentimento de esperança de um futuro diferente e melhor para o desenvolvimento, o que por
derradeiro, contribuiu para facilitar a territorialização desses jovens na nova Itueta.
Diante de uma relação mais objetiva de alguns jovens no que tange à velha Itueta, o
Consórcio surge como possível financiador das expectativas futuras
4
, como possível realizador
do sonho da mudança. Destaca-se que esses jovens são exatamente aqueles que tinham poucas
possibilidades de ascensão econômica e social, contudo, hoje, passados 14 anos da remoção,
reconhecem que suas vidas melhoraram e a realocação é percebida como ganho.
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
44
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
ainda crítica em relação à ação do consórcio que valoriza o aspecto financeiro em
detrimento dos valores humanos e sociais; assim como a ausência de um planejamento mais
cuidadoso com as pessoas.
Passados 14 anos do processo de realocação dos jovens para a nova cidade de Itueta,
tendo alguns se (re)territorializado totalmente e outros ainda em processo de
(re)territorialização, ainda, tendo a relação de pertencimento como importante fator de
determinação e busca de sucesso financeiro e social, a migração não passou despercebida em
suas vidas. Foi um processo que determinou o futuro de suas ações: aqueles que viviam à
margem da sociedade, mesmo territorializados, contudo em condições precárias, se deslocaram
com mais facilidade e foram capazes de usar a realocação como propulsora de novas atitudes,
estabelecendo um novo movimento em sua (re)territorialização. Outros, entretanto, que
possuíam ou carregavam a herança de laços mais estáveis na sociedade anterior, sentiram a
dificuldade de adaptação à nova cidade, e em alguns aspectos, sentem frustrão em relação ao
processo de (re)territorialização, pois perderam sua posição de estabelecidos, e portanto, se não
tiveram perdas econômicas, tiveram perdas sociais.
Considerações finais
Este estudo tem como escopo compreender a percepção dos jovens desse município que
vivenciaram o processo de realocação, bem como os efeitos dessa Territorialização,
Desterritorialização e Reterritorialização (TDR) para esses jovens.
O deslocamento material, a alteração da população de seu território físico, a mudança
de sua localidade, provocam por consequência, perdas imateriais, destruição de laços sociais e
comprometimento do vínculo de afetividade e pertencimento com aquele território, o que se
concebe como deslocamento imaterial, que novos laços sociais e culturais acabam por ser
construídos compulsoriamente.
Diferenças entre o espaço anterior estabelecido e o novo território constituído em função
da instalação do reservatório, possivelmente comprometem o sentimento de pertencimento e a
identificação com o espaço. Aspectos negativos e sentimento de perda são ressaltados e a
realocação em um novo espaço não é capaz de tirar da população a sensação de
desterritorialização.
A partir dos dados coletados e dos resultados obtidos da discussão temática na região, é
possível considerar que a construção da nova Itueta, a transferência da população e a destruição
da antiga localidade aconteceram de forma simultânea e as pessoas não tiveram respeitado o
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
45
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
tempo de adaptação e transição, necessário para a nova realidade imposta.
Nesse caso de desterritorialização e alteração do território de referência, o exercício da
memória por parte dos habitantes de Itueta representou um ato de resistência à condição de
perda/ausência de referências e desamparo que o processo de realocação provocou. Diante do
processo de realocação vivido, a memória de tais momentos faz surgir ressignificações do
território, representações do ser e do fazer dos indivíduos durante todo o processo.
Os relatos foram capazes de demonstrar que a partir da construção da hidrelétrica e o
processo de realocação dos moradores, o singular modo de vida que a população tinha com seu
território, bem como com suas relações sociais, foi rompido e transformado. A mudança afetou
toda a dinâmica comunitária, e, por vezes, demonstrou a possível vulnerabilidade da identidade
do jovem, da história e da cultura dessas populações.
Os dados revelaram uma divisão entre os indivíduos pesquisados. Alguns o se sentiam
participantes ativos das diferentes esferas da sociedade na antiga Itueta (outsiders). Viviam, por
questões econômicas ou sociais, às margens do núcleo mais ativo da sociedade. Para estes, as
possibilidades oferecidas pelo consórcio eram vantajosas, e assim, percebiam a realocação
como uma oportunidade de transformação de sua realidade de vida, portanto o processo de
realocação foi mais facilmente aceito e a reterritorialização se deu de forma mais harmoniosa.
Ao analisar a realocação, ressalta-se que suas memórias são marcantes em relação a esse
território. Contudo, passados 14 anos, consideram as possibilidades que o processo lhes
proporcionou. Por outro lado, aqueles que pertenciam ao núcleo central da sociedade Ituetense
(insiders), vivendo mais intensamente as relações de poder e decisão, bem como possuindo
condições econômicas mais estáveis, percebem de modo diferente a realocação e a sua
territorialização. Esses jovens pertenciam às famílias ligadas ao núcleo da sociedade e para eles
a realocação não trouxe novas possibilidades, não ampliou seus horizontes, pois os tirou de uma
zona de conforto. Acompanhavam o pensamento dos seus familiares, que não percebiam
nenhum ganho nesse deslocamento, pois todas as dificuldades de reconstrução do cotidiano em
um território imposto exigia esforço que não estavam dispostos a fazer. Para estes, a dificuldade
em territorializar-se foi maior. Em seus relatos, demonstraram dificuldade em romper os laços
estabelecidos para construção de uma nova sociedade, e por consequência, a realocação é
vista como perda.
É interessante destacar, que esses jovens insiders, que em seus relatos demonstraram
um vínculo direto com os sentimentos de seus familiares em relação ao território deixado,
abrangendo seus símbolos e sua história, percebem a realocação como um novo processo de
territorialização capaz de possibilitar alterações no modo de vida da população da região,
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
46
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
gerando novas possibilidades de existência individual e coletiva no novo lugar, ou seja, hoje
como adultos, alguns ressignificam a realocação, e declaram-se territorializados na nova Itueta,
apesar das dificuldades enfrentadas no processo. O jovem tem uma perspectiva de futuro mais
evidente, que propicia a ele expectativas de desenvolvimento, ao contrário dos idosos, que
revitalizam em suas memórias a dor da realocação.
Ao analisar todo o processo de realocação após 14 anos, compreende-se pelo estudo,
que esse foi um processo que determinou o futuro das ações de tais jovens: aqueles que viviam
à margem, com poucas possibilidades na antiga Itueta, se desapegaram com mais facilidade e
foram capazes de utilizar a realocação como propulsora de novas atitudes, estabelecendo um
novo movimento em sua (re)territorialização. Outros, entretanto, que já demonstravam possuir
ou carregavam a herança de laços mais estáveis na sociedade anterior, sentiram a dificuldade
de adaptação à nova cidade, e em alguns aspectos, expressam sentimentos de frustração em
relação ao processo de (re)territorialização.
A migração compulsória, decorrente do empreendimento, determina perda de território
e de identidades, desligamento de sua vida social estabelecida, além de afetar memórias e
territorialidades. E tudo isso precisa ser considerado nesse processo, pois como afirma
Bonnemaison (2002), o território não se liga apenas a um princípio material de apropriação ou
posse, mas é concebido como espaço socialmente construído e culturalmente vivenciado, ao
qual se atribui um valor e com o qual se estabelece laços de pertencimento e afetividade,
utilizando-o como base para a reelaboração da identidade de um grupo social a partir de suas
experiências de vida.
Referências bibliográficas
ARÉVALO, Márcia Conceição da Massena. Lugares de memória ou a prática de preservar o
invisível através do concreto. I Encontro Memorial do Instituto de Ciências Humanas e Sociais.
Mariana-MG. Nov., 2004.
BONNEMAISON, J. Viagem em torno do território. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDHAL, Z.
(Org.). Geografia cultural: um século. v. 3, Rio de Janeiro: EDUERJ, 2000.
BONNEMAISON, J. Viagem em torno do território. In: CORREA, R.L.; ROSENDAHL, Z.
Geografia cultural: um século. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2002. p. 83-132.
BONNEMAISON, J. Espace géographique et identité culturelle en Vanuatu (exNouvelles-
Hébrides). Journal de la Société desocéanistes. 1980, v. 36, n. 68, p. 181-188. (tradução)
BRASIL. Empresa de Pesquisa Energética. Agência Nacional de Energia Elétrica. Atlas de
Energia Elétrica do Brasil. 2008. Disponível em: <http://www.aneel.gov.br/arquivos/
atlas.pdf>. Acesso em: 27 out. 2018.
BREGAGNOLI, Narayana de Deus Nogueira. O significado da usina hidrelétrica Cachoeira do
Emboque, em Minas Gerais, para seus atingidos. Plural. Revista de Ciências Sociais
Universidade de São Paulo, v.20, n.2, 2013.
DAYRELL, J. T. A escola como espaço cio-cultural. In: Dayrell, J. (Org.). Múltiplos olhares
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
47
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
sobre educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996.
DAYRELL, J. (org). Por uma pedagogia das juventudes: experiências educativas do
observatório. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2016.
DAYRELL, J. O jovem como sujeito social. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro:
set./dez., 2003, n. 24, p. 40-52.
DELGADO, L. A. N. História oral e narrativa: tempo, memória e identidade. História Oral.
2003, n. 6, p. 9-25.
DUGAS, L. La mémoire et l‟oubli. Paris: Ernest Flammarion Éditeur, 1917. (Bibliothèque de
Plilosophie Scientifique).
ELIAS, Norbert. A Sociological Enquiry into Community Problems. Paris: Fayard, 1965.
ELIAS, Norbert. 1897-1990. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder
a partir de uma pequena comunidade/Norbert Elias e John L. Scotson; tradução, Vera Ribeiro;
tradução do posfácio à edição alemã, Pedro Siissekind; apresentação e revisão técnica, Federico
Neiburg. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
FEIXA, Carles. De jóvenes, bandas y tribus: antropología de la juventud. Barcelona: Editora
Ariel, 1998.
FLÁVIO, Luiz Carlos. A Geografia e os “Territórios de memória”: as representações de
memória do território. Jan/Jun., 2013, v. 15, n. 21, p. 123-142.
GENOVEZ, Patrícia Falco. Entre o território comunitário e o território societário: os impactos
na realocação de Itueta-MG, Geografia. Londrina: maio/ago., 2013, v. 22, n. 2, p. 139-158.
LACERDA, Fernanda Ramos; MENDES, Geisa Flores. A feira como lugar de memória:
tradições e relações sociais na produção do espaço geográfico. XII Colóquio Nacional e V
Colóquio Internacional do Museu Pedagógico. Vitória da Conquista: 26 a 29 de setembro de
2017, p. 729-734.
MARTINEZ-ALIER, J. Justiça ambiental (local e global) In: CAVALCANTI, Clóvis (Org.).
Meio Ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1999.
NICOLI, Sandra. Emigração em Itueta e Santa Rita do Itueto: a chegada dos nonos e a partida
de seus descendentes para o norte da Itália. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-
Graduação em Gestão Integrada do Território. Univale, Governador Valadares, 2014.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. (Tradução) Yara Aun
Khoury. Revista do Programa de Estudos Pós graduados de História. Projeto de História. USP.
São Paulo: dez., 1993. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/
viewFile/12101/8763>. Acesso em: 15 fev. 2019.
O’ DWYER, Eliane Cantarino. Nation Building e relações com o Estado: o campo de
antropologia em ação. In: ZHOURI, A. (Org.). Desenvolvimento, Reconhecimento de Direitos
e Conflitos Territoriais. Brasília: ABA Publicações, 2012, p. 236-254.
PORTO-GONÇALVES, Carlos W. “Da Geografia às Geo-grafias: um mundo em busca de
novas territorialidades.” In: CECENA, Ana Esther; SADER, Emir (Coordenadores.) La Guerra
Infinita: hegemonia e terror mundial. Buenos Aires: CLACSO, 2002, p. 217-256.
PREFEITURA MUNICIPAL DE ITUETA. Nossa História. Disponível em:
<http://www.itueta.mg.gov.br/index.php/nossa-historia>. Acesso em: 15 jul. 2018.
REZENDE, L. P. Dano moral e licenciamento ambiental de barragens hidrelétricas. Curitiba:
Juruá, 2002.
RELATÓRIO DO CONSELHO ‘ATINGIDOS POR BARRAGENS’. Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana, Comissão Especial “Atingidos por Barragens”. Resoluções n.
26/06, 31/06, 01/07, 02/07, 05/07. Brasília, 2010 p. 63-72.
RICOEUR, Paul. La mémoire: l‟histoire, l‟oubli. Paris: Éditions du Seuil, 2000.
SANTOS, Thiago Martins. BIAVATI, Nádia Dolores Fernandes. Discursos sobre o território
de Itueta frente à realocação compulsória: análise discursiva da produção literária de um
ituetense. Revista Letras & Letras. Jan./jun., 2015, v. 31, n. 1. Disponível em:
Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
48
DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11392
<http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras>. Acesso em: 15 fev. 2019.
SCHERER-WARREN, I.; REIS, M.J.; BLOEMER, N. M. Alto Urugai: migração forçada e
reatualização da identidade camponesa. Travessia Revista do Migrante. ano 2, jan./abr., 1990,
n. 6, p. 29-33.
TUAN, Y. Topofilia: um estudo de percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo:
Difel, 1974.
TUAN, Y. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.
VAINER, C. B.; ARAÚJO, F.G. Grandes projetos hidrelétricos e desenvolvimento regional.
Rio de Janeiro: CEDI, 1992.
Recebido em 25/03/2020.
Aceito em 20/04/2020.
1
Dos 10 entrevistados, à época da remoção, um possuía 16 anos, dois com 17 anos, dois com 18 anos, um com 19
anos, um com 20 anos, dois com 21 anos e um com 28 anos. Optou-se por trabalhar com esta faixa etária por
entender ser uma amostra bastante eclética e por pensarmos ter os jovens mais maduros maior capacidade e
possibilidade de contribuição com o objeto da pesquisa.
2
O consórcio foi constituído em 1996, com participação da Cemig, Vale e Nova Era Silicon, cujo contrato oficial
apresentava a proposta de implantação e operação da UHE Aimorés. O empreendimento, atualmente, é controlado
basicamente pela Vale (51% das ações) e pela Cemig (49% das ações). Juntas, compõem o Consórcio da
Hidrelétrica de Aimorés, responsável pela administração e operação do empreendimento (USINA AIMORÉS).
3
Pessoas que vivem à margem da sociedade podem ser definidos como parte das minorias sociais, pessoas que
sofrem com a desigualdade social e não se sentem parte da sociedade em que vivem.
4
O consórcio aparece em alguns relatos como de provedor financeiro que por meio de investimentos em
infraestrutura e por conseguinte geração de empregos, seria capaz de produzir o desenvolvimento econômico da
região.