Fronteiras: Revista Catarinense de História. DossDireitos humanos, sensibilidades e resistências. N 36, 2020/02 ISSN 2238-9717
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DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n36.11278
Rezar, lutar, lavrar: missionários, militares e indígenas na composição das fronteiras da
Província do Amazonas (1851-1852)
Pray, fight, plant: missionaries, military and indigenous in the composition of the
borders of the Province of Amazonas (1851-1852)
Paulo de Oliveira Nascimento
1
Resumo
O artigo consiste em problematizar o projeto de
construção das fronteiras da/na Província do
Amazonas, num momento em que as
autoridades imperiais buscavam nortear a ação
política e administrativa para modernizar
através da operacionalização da frente de
expansão - uma região onde prevaleciam
sociedades tradicionais. Através de uma rede de
fortalezas e de colônias militares, seria possível
garantir o domínio territorial; as missões iriam
cuidar da catequese das “hordas selvagens”,
construindo aldeias e educando para a prática da
e para o trabalho agrícola; a agricultura iria
fixar os povos nômades, suprindo a carência de
alimentos e povoando a região. Através dessa
frente de expansão da fronteira, seria possível
implementar o projeto geopolítico de
“civilização” dos indígenas e modernização da
economia naqueles rincões do Império do
Brasil.
Palavras-chave: Fronteiras; Civilização;
Província do Amazonas.
Abstract
The paper consists of problematizing the project
of building the frontiers of/in the Province of
Amazonas, at a time when the imperial
authorities sought to guide political and
administrative action to modernize - through the
operationalization of the expansion front - a
region where traditional societies prevailed.
Through a network of fortresses and military
colonies, territorial dominance could be
ensured; the missions would take care of the
catechesis of the “wild hordes”, building
villages and educating for the practice of faith
and for agricultural work; agriculture would fix
the nomadic peoples, supplying food shortages
and populating the region. Through this borders
expansion front, it would be possible to
implement the geopolitical project of
“civilization” of the indigenous peoples and
modernization of the economy in those corners
of the Brazilian Empire.
Keywords: Borders; Civilization; Province of
Amazonas.
Considerações iniciais
A Amazônia constituiu-se num desafio significativo para os europeus desde os
primeiros momentos da colonização. Se inicialmente, eram os espanhóis os detentores daquela
vasta região a partir do acordo com os portugueses, firmado através do Tratado de Tordesilhas
durante a União Ibérica e a principalmente na Era Pombalina, a “Grande Floresta” passaria à
posse de Portugal, especialmente porque havia sido esse país que tinha se dedicado à ocupação
e exploração da região e pode reivindica-la através do princípio do uti possidetis. Garantida a
posse legal de grande parte da Amazônia através do Tratado de Madri (1750) e do Tratado de
Santo Idelfonso (1777) caberia a Portugal ocupar efetivamente a região e empreender o seu
projeto colonizador sobre as matas, os rios e principalmente sobre as populações nativas.
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Doutorando em História. Professor do IFAM/Campus Eirunepé. E-mail: paulo.nascimento@ifam.edu.br.
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Todavia, esta tarefa se mostraria bastante desafiadora, tendo se estendido por todo o século
XVIII e chegado ao século XIX.
Após a independência e a consolidação do Estado Nacional do Brasil, o governo
imperial percebera que a Amazônia carecia de atenção especial, tanto no plano político quanto
no plano social e econômico. De um espaço outrora mítico e encantado, com mulheres
guerreiras e tesouros inimagináveis, a “Grande Floresta” mostrava-se um desafio geopolítico,
onde prevaleciam pequenas cabanas às margens de rios e lagos, em contraste com grandes
extensões territoriais intocadas pelos colonizadores, além das “hordas selvagens”, que
necessitavam ser “trazidas à civilização”, coisa que seria possível com a operacionalização
daquilo que entendemos como a frente de expansão da fronteira.
Objetivamos, neste texto, problematizar o projeto de (re)construção das fronteiras da
Província do Amazonas entre os anos de 1851 e 1852, momento em que as autoridades
imperiais da Província do Grão Pará e do Amazonas buscavam nortear a ação política e
administrativa para operacionalização do projeto moderno da Coroa na região. Para tanto, nos
debruçamos sobre os relatórios de presidentes de província escritos por Fausto Augusto Aguiar,
João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha e Manoel Gomes Correia de Miranda,
respectivamente presidente da Província do Grão-Pará, presidente e vice-presidente da
Província do Amazonas. Nesta documentação, é possível perceber que aquelas autoridades
tinham claro em sua orientação política a necessidade da implantação de ações garantidoras do
projeto expansionista imperial, sendo (a) a ação missionária, (b) o estabelecimento de militares
e (c) a promoção da agricultura os principais elementos que comporiam tal projeto.
Por meio de uma rede de fortalezas, alocadas em pontos estratégicos às margens dos
rios, e de colônias militares, seria possível garantir o domínio territorial; as missões iriam cuidar
da catequese das “hordas selvagens”, construindo aldeias e educando para a prática da
católica e para o trabalho agrícola; a agricultura iria fixar os povos nômades, suprindo a carência
de alimentos e povoando a região. Dessa maneira, seria possível implementar o projeto
geopolítico da Coroa na região, através da promoção da frente de expansão da Fronteira na
Amazônia, integrando aquela região no circuito político, econômico e cultural daquilo que seria
o Ocidente. Ao tentar mover a fronteira para o oeste amazônico, buscava-se através da Cruz,
da Espada e da Enxada romper com o passado tradicional e pré-moderno que ainda persistia
no verde das árvores, nas curvas dos rios e na face dos indígenas.
A questão das fronteiras da/na Amazônia
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A questão da Fronteira tem se tornado, a cada dia, uma das grandes preocupações da
historiografia brasileira, ocupando historiadores e historiadoras das mais diversas tendências,
indo da História Política à História Cultural, passando pela análise da composição dos espaços
geográficos e alcançando a construção (e reconstrução) das identidades étnico-culturais e
sociais.
Se pensarmos na palavra Fronteira, somos remetidos à ideia de que esta poderia ser
compreendida como um “fio que nos une e nos separa”. Todavia, ela requer uma reflexão um
pouco mais elabora. Uma fronteira é, pois, o limite entre espacialidades, regiões, é o início e o
fim de um território, é o que define o que pertence e qual é o limite de atuação de agentes
políticos e sociais, mas “não se resume às suas delimitações geográficas” (MYSKIW, 2010, p.
227). Fruto da ação de agentes históricos, a fronteira é o resultado de uma atuação política e
dar-se a partir de práticas de afirmação, adaptação e tensão; junto a cada um destes, temos o ato
de “desbravar”, o contato e as tensões, respectivamente. Torna-se assim um “cenário de
intolerância, ambição e morte”, mas também um lugar de esperança, onde um tempo novo, onde
redenção, justiça, alegria e fartura podem ser vislumbradas. A fronteira é também um terceiro,
que está entre o lado de lá e o lado de cá (MYSKIW, 2010, p. 228). Percebida ainda como um
lugar privilegiado, esta vai se constituir a partir de antagonismos, seja a afirmação, seja a
negação de identidades. Também é um lugar de (re)construção de laços de solidariedades e
(re)elaboração de tradições. Ainda um lugar de conflitos, na condição de frente de expansão, e
de conquistas materiais, quando estão manifestadas as condições de uma frente pioneira.
Para a tarefa que ora empreendemos, parece-nos adequado o diálogo com José de Souza
Martins (2009, p. 134), especialmente no entendimento daquilo que viria a ser a frente de
expansão. De início, dizemos que a frente de expansão diverge da frente pioneira. Esta é
compreendida em razão da presença do capitalismo, em que a terra é apropriada em função do
seu valor no mercado e uma posse legal, caracterizada principalmente pelos registros
cartoriais. Neste sentido, a ocupação dá-se pela ação dos grandes empresários e capitalistas,
além do pequeno agricultor moderno e dos comerciantes. Já a frente de expansão compreende
a ocupação do espaço sem a mediação do capital, sendo que a terra não possui valor, nos termos
da propriedade capitalista, e nem há uma posse legal através de títulos fundiários (MARTINS,
2009, p. 134). Neste contexto, os “desbravadores” deparam-se com indígenas e populações
tradicionais, o que irremediavelmente os leva a situações de conflitos. Ambos os termos não
são conceitos específicos, mas palavras que buscam diferenciar as formas pelas quais os
“civilizados” se expandem territorialmente, momentos e modalidades de ocupação territorial,
modos de ser e de viver no espaço novo (MARTINS, 2009, p. 135).
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Como podemos observar, emprega-se aqui um sentido antropológico e sociológico à
ideia de Fronteira, compreendida enquanto uma fronteira do humano, que “(...) tem um caráter
litúrgico e sacrificial, porque nela o outro é degradado para, desse modo, viabilizar a existência
de quem domina, subjuga e explora” (MARTINS, 2009, p. 11). Trata-se, pois, de um lugar onde
ocorrem importantes sociabilidades, marcadas pela fricção entre os vários grupos envolvidos
no processo. Os sujeitos, portanto, são postos numa “situação de fronteira”, sendo que esta
acarreta, por seu turno, uma situação de convivência, marcada pela pluralidade e pela diferença
em relação ao “outro” (MARTINS, 2009, p. 26).
Quando refletimos acerca do nosso objeto de pesquisa em diálogo com a ideia de frente
de expansão da fronteira aqui exposta, somos levados a algumas ponderações. A primeira delas
diz respeito ao fato de que, na Província do Amazonas, a presença do Estado Moderno estava
muito aquém daquilo que se desejava. Com uma área de 60 mil léguas quadradas (FURTADO,
1858, p. 107) o que equivaleria a aproximadamente 1.398.593,6 km² aquela província era
cortada por rios caudalosos e por uma densa floresta, o que tornava um desafio para as
autoridades imperiais estabelecerem a máquina administrativa naquela região. Naquele
contexto, as relações políticas, sociais, econômicas e culturais entre o “desbravador” tanto os
ricos quanto os pobres e os indígenas foram construídas através dos conflitos e personalismos.
Não apenas os seringalistas e criadores de gado, mas seus empregados e agregados
(camponeses, peões, garimpeiros, seringueiros) compuseram o conjunto daqueles sujeitos que
estariam no lado oposto ao do indígena, tendo sido travado um conflito étnico, social e
identitário que reverberaria nas relações sociais, políticas e econômicas dos povos da Amazônia
até os dias atuais.
Além da ausência do Estado Imperial em grande parte do território provincial, não havia
a presença de uma economia capitalista, uma vez que observamos muito mais a presença de
uma economia mercantilista e/ou de subsistência, seja na relação dos colonizadores com os
povos indígenas, seja na relação entre os próprios colonizadores. Sobre isto, Martins afirma:
“(...) a frente de expansão está mais próxima da economia mercantil simples do que da
economia capitalista e, ao mesmo tempo, está próxima da mera economia de subsistência”
(MARTINS, 2009, p. 158).
Quando pensamos na Amazônia, a partir da segunda metade do século XIX, somos logo
remetidos ao sistema de aviamento, que estava na base das relações entre os seringalistas e os
seringueiros, durante aquele que seria o Primeiro Ciclo da Borracha, mas que remontava a
períodos anteriores. Para o autor acima citado, “o aviamento se tornou não um regime de
exploração do trabalho, mas também um sistema de dominação política e de manifestação do
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poder pessoal” (MARTINS, 2009, p. 84). Caracterizado como uma forma de exploração
compulsória do trabalho, o aviamento tinha como principal característica o adiantamento de
mercadorias a crédito, que deveriam ser pagas com os produtos extraídos da “Grande Floresta”,
sejam as “drogas do sertão”, no período colonial, seja o látex, durante a segunda metade do
século XIX (MARIN, 2010, p. 46). Por este sistema, o seringueiro, o castanheiro e os demais
extrativistas dos rincões da Província eram ligados ao capitalismo monopolista internacional,
com a mediação do seringalista, das casas aviadoras e das casas exportadoras. Regendo relações
sociais, políticas e econômicas entre “patrões” e “fregueses”, o aviamento configurava as
relações de poder, numa espécie de patronagem comercial em que os laços de solidariedade,
fidelidade e lealdade constituíam esta parte da fronteira do humano, em que a exploração e a
violência eram os fios que os uniam e separavam.
Se tratamos de exploração e violência nas relações de trabalho na frente de expansão na
Província do Amazonas, somos remetidos ao terceiro elemento de composição do nosso objeto:
o conflito. A fronteira da Amazônia se construiu historicamente a partir dos contatos entre os
colonizadores e os nativos. Cristãos/civilizados versus caboclos/indígenas, homens versus
pagãos, humanos versus não humanos vão constituir as dicotomias nas situações de fronteira.
“A compreensão da sociabilidade característica da frente de expansão depende justamente de
reconhecer nessa dicotomia um ponto de partida e de nela ver o que tem de revelador”
(MARTINS, 2009, p. 25). Nestas situações de fronteira, portanto, a percepção do “outro”
também contribui para a definição do “eu”. Para além das violências físicas, dos ataques às
malocas, dos raptos, dos estupros, dos tiros de armas de fogo e das flechas envenenadas,
uma “(...) disputa pela concepção de pessoa e de humano entre índios e brancos” (MARTINS,
2009, p. 29). Do ponto de vista do “desbravador”, camponeses, peões, seringueiros,
seringalistas, religiosos, e outros agentes comporiam aquilo que seria o humano, ocupando o
espaço da fronteira entre si e o “não humano”, o selvagem, o natural, o indígena. A fronteira,
neste sentido, serviria para “humanizar” esses elementos para além da fronteira humana, do
ponto de vista do colonizador.
Das leituras preliminares realizadas nos Relatórios dos Presidentes de Província do
Amazonas, a ideia de “ocupação” perpassa necessariamente pela ideia de “humano”. Como isto
se processa? Ora, as autoridades provinciais frequentemente usam o termo “desabitado”
(LACERDA, 1865, p. 7), para se referir àquelas localidades que não estariam ocupadas por
colonos, militares ou mesmo indígenas aldeados. Dizendo de outra maneira, aquelas localidades
habitadas, frequentadas e/ou atacadas por grupos indígenas “selvagens”, não eram considerados
espaços “controlados” ou “enquadrados” pela autoridade imperial. Como podemos observar, a
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ideia de habitar/povoar perpassa necessariamente pela ideia do tipo de habitante, diga-se, os
não indígenas colonos, seringueiros, agricultores ou aqueles indígenas
aldeados/catequisados/“civilizados”.
Do Período Colonial à Era Vargas, a Província do Amazonas assistiu à frente de
expansão como principal força motriz da construção de suas fronteiras. Ausência do aparato
estatal em grande parte do território provincial, relações não capitalistas de trabalho e
principalmente conflitos entre colonizadores e nativos compuseram as bases do processo de
reelaboração territorial e fronteiriça provinciais. No século XIX, período sobre o qual nos
debruçamos, esta região assistiu um importante papel na economia e na geopolítica do Império
do Brasil, seja em razão da riqueza do Primeiro Ciclo da Borracha, seja em função da
manutenção das fronteiras com os vizinhos latino-americanos, seja a partir do enfrentamento
das investidas dos países imperialistas, que cobiçavam as riquezas naturais da “Grande
Floresta”. Era necessário, portanto, transformar uma região ignota, selvagem, não civilizada
naquilo que deveria ser parte daquilo que se entendia como um Estado Nacional Moderno.
Os “delegados do chefe da nação” na Província do Amazonas
Quando refletimos sobre a Modernidade na Província do Amazonas, somos logo
remetidos às primeiras tentativas de implantação da agricultura nos moldes capitalistas,
auspiciada pelas políticas implementadas pelo Marquês de Pombal, ainda no século XVIII.
Posteriormente, teríamos o extrativismo da borracha, no século XIX, e a industrialização já no
século XX, com a implantação da zona franca de Manaus (SOUZA, 2002, p. 31). Estas
iniciativas, todavia, são bem localizadas, não tendo alcançado todo o território coberto pela
floresta amazônica, seja num ou noutro período da história. Em outras palavras, a Modernidade
não chegou em todas as partes da Amazônia, o que nos leva às seguintes afirmativas: a) a
fronteira, na forma como a compreendemos, seria o limite entre o Moderno e o Pré-Moderno
na região; b) a frente de expansão pretendia levar a Modernidade aos rincões amazônicos; e c)
as autoridades imperiais buscaram, seja no plano retórico, seja em algumas ações práticas,
empreender o projeto geopolítico do Império para a fronteira “mais ao norte”.
Compreendemos os Relatórios dos Presidentes das Províncias do Grão-Pará e
Amazonas, respectivamente, Fausto Augusto de Aguiar e João Baptista de Figueiredo Tenreiro
Aranha, bem como a Falla de Manoel Gomes Correa de Miranda, como documentos que estão
para além de uma “prestação de contas” ou um informativo aos sucessores e demais autoridades
sobre os “negócios da província” que estavam sob os cuidados daquelas autoridades conhecidas
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como os “delegados do chefe da nação”. Naqueles relatórios estariam algumas pistas do projeto
geopolítico e administrativo do Império para a região.
Quando pensamos nos presidentes de província como “delegados do chefe da nação”,
somos remetidos ao momento em que o recém-criado Império do Brasil buscava construir
mecanismos de exercício de poder e consolidação de sua posição enquanto um jovem e
independente Estado Nacional Moderno. Usada por Andréa Slemian como título de artigo que
tem como objetivo analisar “a criação normativa da função de presidente de província no Brasil
pós-Independência como uma das facetas do conflituoso processo de construção de novas bases
constitucionais para o projeto de Império” (SLEMIAN, 2007, p. 20), a expressão busca
congregar as ideias em torno do cargo. Durante os 11 anos em que durou a polêmica, buscou-
se um equilíbrio entre os poderes, calcado basicamente na busca por novas formas de
representação política, no sentido de se construir um constitucionalismo para o sistema político
nacional. Dos debates e acontecimentos do período o Primeiro Reinado, a Abdicação, a
Regência e o Ato Adicional os “delegados do Imperador” seriam aqueles políticos (1)
enviados pelo Imperador para administrar as províncias, (2) que exerciam o cargo em nome do
Imperador e em favor do Império, atuando como um contraponto ao poder das elites locais e
(3) precisavam se reportar à Coroa, a fim de prestar contas de suas ações ou solicitar auxílio
para o exercício do cargo. Aqueles sujeitos recebiam a incumbência de administrarem as
províncias em nome do chefe da nação, levando a cabo a ideia de que seria o próprio Imperador
o ator central sobre o executivo provincial, atuando ao lado das Assembleias Provinciais, o que
revelaria, de um lado, (a) o fortalecimento do legislativo provincial, e do outro, (b) o
fortalecimento da função de presidente de província, bem como (c) a conformação de uma
monarquia constitucional nos trópicos (SLEMIAN, 2007, p. 37), ao menos no plano retórico.
E por que dizemos isto?
Para responder à questão anterior, devemos nos reportar às recentes discussões da
historiografia que buscam dar conta do papel das elites locais e provinciais na arena política
nacional, a exemplo dos estudos de Richard Graham (1997) e Miriam Dolhnikoff (2005). No
aclamado Clientelismo e Política no Brasil do século XIX, R. Graham evidenciou a importância
que os potentados locais teriam nas eleições e, por consequência, na composição político-
administrativa do Império. A partir de um sistema político que buscava manter as hierarquias
sociais, a escravidão e o latifúndio, as eleições seriam um teste para os chefes locais, em geral
os grandes proprietários rurais, que garantiriam a vitória política através da cargos, proteção e
favores por lealdade política (GRAHAM, 1997, p. 17), naquilo que tomou a forma do
Clientelismo (CARVALHO, 1997). M. Dolhnikoff (2005, p. 287) chama a atenção para o
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“compartilhamento do poder” entre as elites da/na corte e as elites provinciais que, por sua vez,
estavam mais próximas e precisavam negociar com as forças locais para se manterem nos
espaços de poder. Através dos arranjos institucionais operacionalizados durante o período
regencial, caracterizados principalmente por uma maior autonomia regional, as “notabilidades
de aldeia” conseguiram imprimir significativa autonomia provincial, tendo saído da Regência
com significativo poder de barganha, onde as negociações pela tributação, as obras e os
empregos públicos, os espaços de poder provinciais, as eleições seriam apenas alguns dos
elementos que comporiam o arranjo político e institucional e, mesmo em face do Regresso
Conservador, não seriam afetadas (DOLHNIKOFF, 2005). Dito em outras palavras, a ideia da
atuação dos “delegados do chefe da nação” enquanto agente político de uma monarquia
constitucional, no seio de um Estado Nacional Moderno, passa necessariamente pelas
negociações e relações estabelecidas com as elites políticas provinciais e locais, cuja forças
fazia frente aos presidentes de província nomeados pelo poder central e, em alguns casos,
limitava a sua ação prática.
Quando refletimos acerca da atuação dos primeiros Presidentes de Província no
Amazonas, somos remetidos aos anos de 1851 e 1852, momento em que é instalada a
administração provincial, cerca de um ano após o ato legal de criação da Província do
Amazonas. Mas quem eram estes homens? Quais eram os interesses que os animavam e de que
forma acreditavam ser possível realiza-los? Fausto Augusto de Aguiar presidiu a Província do
Grão-Pará entre 1850 e 1852, tendo sido o responsável por transferir a administração da recém-
criada Província do Amazonas para aquele que fora nomeado presidente da nova unidade
político-administrativa, o paraense João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Formado
bacharel em Direito, Aguiar fora Presidente da Província do Ceará, entre 1848 e 1850 e, após
administrar o Grão-Pará, tornar-se-ia deputado geral e senador, sempre eleito por essa província
(BRASIL, s/d, s/p). Natural do Rio de Janeiro, tomara posse como o 18º Presidente da Província
do Grão-Pará, em 13 de setembro de 1850 (GALVÃO, 1894, p. 91), e deveria informar Tenreiro
Aranha sobre aquele território que outrora pertencia à sua administração. Para tanto, emite o
Auto de Installação em 9 de dezembro de 1851, que, nas suas palavras, teria por objetivo
prestar a V. Exa. [Tenreiro Aranha] as informações e esclarecimentos, a meu alcance, sobre o
estado dos negocios públicos nessa parte do territorio Paraense, que foi elevada áquella
categoria” (AGUIAR, 1851b, p. 3). Neste documento, reporta-se-ia ao Relatório que havia
enviado à Assembleia Provincial, na data de 15 de agosto 1851, no qual estavam contidas todas
as informações que considerava relevante acerca do então território da Comarca do Rio Negro
e que serviria ao presidente da nova província (AGUIAR, 1851a).
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João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, nomeado como o primeiro Presidente da
Província do Amazonas através da carta imperial de 7 de junho de 1851, chegara no início de
1852 na então cidade da Barra do Rio Negro, na qual permaneceria até abril, quando deixaria o
cargo e iria até o Rio de Janeiro, para assumir uma das cadeiras na Câmara dos Deputados como
representante do Grão-Pará (NASCIMENTO, 2019, p. 1). No relatório de 30 de abril de 1852,
Tenreiro Aranha vai recuperar e aprofundar os principais tópicos do Alto de Instalação de
Fausto Augusto Aguiar, bem como do Relatório de 15 de agosto. No seu Relatório, Tenreiro
Aranha faz questão de tratar das pautas que considerava importantes para a administração
imperial colonização, agricultura, navegação fluvial, imigração retomando e dando um
tratamento mais elaborado àquelas questões que considerava relevante para a Província do
Amazonas.
Manoel Gomes Correa de Miranda, na condição de vice-presidente da Província do
Amazonas, nomeado em 18 de agosto de 1851, tomou posse em 27 de junho de 1852, em
substituição ao seu antecessor, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha (GALVÃO, 1894,
p. 47). Político experiente e importante em nível regional, assumiria por diversas vezes o
comando da Província do Amazonas ao longo da década de 1850, dirigindo-se à Assembleia
Provincial em sua Falla, datada de 5 de setembro de 1852, por ocasião da primeira sessão
daquele corpo legislativo provincial (MIRANDA, 1852, p. 3). Sua fala, assim como a dos
dirigentes provinciais anteriores, buscava explicitar aquilo que se projetava para a jovem
província, como as grandes expectativas em relação ao desenvolvimento e à civilização.
Fausto Augusto de Aguiar, em 1851, Tenreiro Aranha e Correa de Miranda, em 1852,
seriam os agentes políticos do Império que iriam orientar e tentar operacionalizar, através de
seus discursos e algumas medidas político-administrativas, o projeto geopolítico de
(re)construção das fronteiras amazônidas, no século XIX. Seus Relatórios e Falas, ao proporem
ações concretas para a atuação missionária, o domínio territorial e a implantação da agricultura,
constituem-se enquanto uma espécie de “plano de governo”, que buscava integrar a Comarca
do Rio Negro e posterior Província do Amazonas naquele que pretendia ser um Moderno Estado
Imperial nos trópicos.
A Cruz
A ação missionária esteve presente na Amazônia desde o início da colonização. Neste
período, as ordens religiosas foram incumbidas da propagação da fé católica no Novo Mundo,
constituindo-se em importantes agentes da ocupação territorial. Para o caso específico da
Amazônia, estas missões ficaram a cargo das ordens carmelitas, franciscanos, mercedários e
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jesuítas, que fundaram um conjunto de aldeias ao longo dos séculos XVII e XVIII nos pontos
estratégicos das margens dos principais rios da região (RESENDE, 2006, p. 103).
Marcado pelo conflito de interesses entre os missionários, que buscavam a catequese
dos nativos, os colonos, preocupados com a escravização, e os militares, que buscavam a
“pacificação do território”, este primeiro momento da ação missionária estava focado
especificamente na “conversão dos gentios”. Até 1750, as ordens religiosas atuaram com certa
independência na região, tendo progredido de maneira significativa na catequese e educação
dos nativos, além de construir uma economia baseada no extrativismo das chamadas “drogas
do sertão” e na agricultura. No momento em que o Império Português não possuía condições
de estender o seu braço administrativo sobre o território amazônico, especialmente no século
XVIII, foram os missionários os agentes de conquista territorial e de afirmação da presença real
na região, agentes de promoção do projeto geopolítico da coroa portuguesa. Em 1740, essas
missões somavam o número de 63, encontrando-se “reduzidos” cerca de 50 mil “almas”
(RESENDE, 2006, p. 114). São estas missões que vão estar no cerne das muitas povoações e
vilas portuguesas e também servirão de argumento reivindicatório a partir do princípio da
“posse útil” – para os já citados tratados de fronteira entre os países ibéricos.
Como é público e notório, o período pombalino foi significativamente desastroso para
a ação missionária, não apenas na Amazônia, mas em todo o Império Português, quando
Sebastião José de Carvalho e Melo resolveu expulsar aqueles religiosos que estavam à frente
das missões. No caso específico da Amazônia, entre 1759 e 1843 houve um “vazio”
missionário, estando os indígenas sob os “cuidados” de proprietários rurais e posseiros
(MENESES, 2002, p. 3). Entregues à própria sorte, os aldeamentos da Amazônia acabaram se
tornando focos de doenças, intrigas, conflitos e mortes, tendo sido paulatinamente abandonados
pelos indígenas ao longo da segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX.
No contexto do pós-independência, faziam-se necessárias algumas ações da política de
Estado a ser direcionada aos nativos. É neste momento que se busca “reabrir” a Amazônia para
a ação missionária, o que vai ocorrer efetivamente a partir da década de 1870. Significativo
notar aquilo que vão chamar de uma “frágil soberania do catolicismo na Amazônia” durante o
século XIX, quando a maçonaria e o protestantismo rivalizavam com as tentativas de
centralização política e espiritual do Vaticano, à luz do Ultramontanismo (NEVES, 2016, p. 3).
Ademais, a escassez de sacerdotes, a ruina de grande parte das igrejas e uma certa frouxidão
nos costumes do clero, constituíam alguns dos principais problemas a serem enfrentados e
combatidos pela igreja (MENEZES, 2002, p. 3).
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A década de 1850 se tornaria um divisor de águas para a Amazônia. Além da criação da
Província do Amazonas, crescia a pressão de potências estrangeiras para a abertura dos rios à
navegação internacional, tal qual os EUA e a Inglaterra, o que tornava cada vez mais necessário
e urgente o povoamento daquela região. Com o surto da borracha, o Vale Amazônico receberia
uma nova onda da frente de expansão, sendo que as missões religiosas deveriam atuar junto aos
indígenas (a) na catequese, (b) alfabetização e (c) formação para o trabalho. Estas ações
deveriam se concretizar através da instituição dos aldeamentos, uma vez que estes
proporcionariam uma ocupação das terras com a agricultura (MENEZES, 2002, p. 5). Os
principais agentes interessados seriam o Estado Imperial, que garantiria a constituição efetiva
de suas fronteiras, a Santa Sé, através do aumento dos devotos, e as dioceses locais/regionais.
O Relatório da Província do Grão-Pará e o Auto de Instalação da Província do
Amazonas, compilados por Fausto Augusto de Aguiar, dão conta tanto das missões quanto da
catequese dos nativos. Aquela autoridade nos informa sobre a existência de três missões naquele
território, sendo a primeira em Porto Alegre, a segunda entre os rios Japurá, Içá e Tonantins e
a terceira em Andirá (AGUIAR, 1851b, p. 7). A missão de Porto Alegre estava sob auspícios
do frei carmelita José dos Santos Innocentes, até 1845, e contava com 1600 indígenas,
dedicados à cultura da mandioca, do milho e da cana-de-açúcar. Tendo o Frei Innocentes
morrido em 1849, foi substituído pelo Padre Antônio Felipe Pereira e, em 1850, quando o
capuchinho Gregório Maria de Bené chegou à missão, estariam vivendo apenas 119 “almas”,
dedicados à pesca e à caça. Em face desta situação, a missão fora abandonada por esse religioso,
ocasião em que a autoridade provincial solicitou à autoridade eclesiástica outra nomeação
(AGUIAR, 1851a, p. 54).
A missão do Japurá/Içá/Tonantins, que havia sido fundada anos atrás pelo padre João
Martins de Nine, encontrava-se sem dirigente, em razão do falecimento daquele sacerdote. Por
esta razão, a autoridade provincial não possuía qualquer informação sobre a referida missão.
Também em função disto, solicitou a nomeação de outro sacerdote para ocupar o cargo de
direção da missão (AGUIAR, 1851a, p. 55).
Destaque é dado à missão de Andirá, sendo que esta encontrava-se situada próxima da
então Villa Nova - posteriormente, Parintins motivo pelo qual ocorrerão significativos
conflitos entre os missionários e os colonos daquela localidade. Em 1849, a missão era
composta por 507 indígenas, sendo 210 homens e 297 mulheres, sendo que a este número fora
acrescido mais de 60 nativos, “descidos” após aquele recenciamento. No último ano, haviam
sido realizados 135 batizados e 41 casamentos, ao passo que foram registradas 70 mortes, em
função de uma epidemia [não identificada] que atacou os nativos. Segundo a autoridade, a
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situação daquela missão era “satisfatória”, especialmente em função da agricultura do café, do
tabaco e do guaraná praticados e das “boas” relações comerciais com a Villa Nova (AGUIAR,
1851a, p. 55).
Significativo é o conflito entre o dirigente da missão, o frei Pedro de Ciriana, e as
autoridades da Villa Nova, desencadeado em razão das reivindicações dessas autoridades para
que o missionário fornecesse os missionados para os trabalhos naquela vila. Sob acusações
mútuas de que nenhuma das partes estaria agindo conforme deveria, tanto as autoridades da vila
(que não são citadas nominalmente) quanto o missionário seriam destituídos de suas funções
pela autoridade provincial, numa tentativa de resolução do conflito.
Para além da exposição destes fatos no Relatório da Presidência do Grão-Pará, Fausto
Augusto de Aguiar assume um tom aconselhador para Tenreiro Aranha, posto no Auto de
Instalação. Sobre a missão, afirma:
Este importante objecto hade por certo merecer a particular solicitude de V. Ex`, que
perfeitamente conhece todas as vantagens, que ganharia a Provincia - tão pobre de
braços, como rica de recursos naturaes - com a civilisação dessas hordas numerosas,
que por seus extensos ermos vagueam, arredadas da nossa sociedade, mas faceis, em
geral, pela docilidade de sua indole, de serem para ella conquistadas (AGUIAR, 1851b,
7).
Como podemos perceber, a autoridade provincial destaca como função da ação
missionária a conquista de braços para o trabalho e a “civilização” daqueles que eram
alcunhados de “hordas”. Vale lembrar que nas missões, havia uma educação voltada para o
trabalho agrícola, uma vez que este seria responsável tanto pela produção de gêneros
necessários à alimentação dos próprios aldeados e para o comércio, quanto pela fixação
daqueles povos em determinadas regiões, favorecendo o povoamento e o controle populacional.
No parágrafo seguinte do Auto de Instalação, Fausto Augusto de Aguiar se debruça
sobre as dificuldades enfrentadas pela ão missionária, não apenas no território da antiga
Comarca do Rio Negro, mas em praticamente toda a Amazônia brasileira. Sobre isto, afirma
que “Os acanhados resultados, que se tem colhido neste ramo do serviço publico, a despeito
dos esforços que se hão empregado, e as cauzas a que attribuo este facto, as expuz no (...) citado
relatório” e conclui que são “(...) a carencia de Missionarios esclarecidos, e animados de fervor
religioso, e de patriotismo a insufficiencia dos meios pecuniarios, que se tem disposto; e a falta
de um systema de educação mais apropriada” (AGUIAR, 1851b, p. 7).
É notória a base sobre a qual estariam assentados os problemas do serviço missionário
na região. Tanto a ausência de missionários quanto a falta de recursos para a missão seriam
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problemas mais que relevantes. Neste sentido, havemos de considerar as condições de vida e
trabalho que os missionários deveriam enfrentar na Amazônia. Sem recursos financeiros
suficientes, esses sujeitos deveriam embrenhar-se por rios e matas onde habitavam animais
ferozes e/ou peçonhentos, numa região pouco conhecida, cheia de indígenas alguns bastante
hostis em relação aos colonizadores estas e outras condições faziam da ação missionária um
desafio o qual poucos se arriscavam.
Dito isto, voltamo-nos para Relatório de João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha.
Interessante notarmos a opção que faz essa autoridade quando da compilação daquele
documento. Conforme fizemos acima, Tenreiro Aranha cita ipsis litteris o Auto de Instalação,
prestando-se apenas à atualização de algumas informações acerca das missões, tendo decorrido
apenas alguns meses de um para outro documento. Sobre isto, diz que as missões religiosas têm
dado muito poucos resultados, especialmente se comparadas ao grande [e estimado] número de
nativos na província (ARANHA, 1852, p. 17).
Retoma os argumentos sobre o fracasso das missões e acrescenta como causa maior de
tal fracasso os desmandos das autoridades civis em relação às missões, fazendo uma referência
direta aos problemas que o padre Ciriena vinha enfrentando no Andirá. A missão do rio
Japurá/Içá/Tonantins não possuía mais um missionário e a do Porto Alegre tivera o seu
missionário transferido. Apesar dos problemas enfrentados no Andirá, Tenreiro Aranha afirma
ser esta a única que persistia, que possuía as suas casas em torno da Igreja e que estava ainda
sob a direção do padre Pedro de Ciriena, apesar de Fausto Augusto de Aguiar ter afirmado que
iria destituir aquele sacerdote, o que nos remete às limitações do exercício do poder por parte
do presidente de província. Além dos indígenas da etnia Maués cerca de 570 “almas”
estariam vivendo no aldeamento famílias brancas, inclusive algumas possuíam escravos
(ARANHA, 1852, p. 17).
Muito mais parcimonioso em suas palavras que os seus dois antecessores, Manoel
Gomes Correa de Miranda retoma a discussão sobre as possíveis causas do atraso da ação
missionária na província, repetindo aquilo que havia sido escrito sobre a temática, mas
destacando a importância das missões para a civilização. Informa o vice-presidente que muitos
chefes indígenas teriam vindo até ele, visitar e prestar homenagens perante a efígie do
Imperador, requerendo presentes e prometendo fazer “descer” as suas aldeias. Também destaca
o desserviço prestado pelas autoridades civis, na medida em que “desencaminhariam” os
indígenas. Ao atualizar as informações sobre as missões, informa que Pedro de Ciriena ainda
se encontra no Andirá e que o frei Gregório José Maria de Bené encontrava-se no rio Uapés
(MIRANDA, 1852, p. 14).
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Ao discorrer acerca das tipologias que classificar a frente de expansão, W. D’Angelis
nos informa sobre a do tipo “civilizador”, que se caracterizaria por seu caráter religioso,
educador e moralizante (2016, p. 35). Seria, pois, este o caráter das missões na Amazônia do
Século XIX, quando adentravam as matas, reuniam os indígenas e construíam um altar, sobre
o qual figurava uma cruz, símbolo da catequese e da moral cristã, mas também uma das faces
do projeto geopolítico imperial, que creditava à religião de estado a tarefa de civilizar as hordas
selvagens da Amazônia.
A Espada
Diferente da cruz que denotava muito mais uma dominação simbólica a espada
representava a força bruta, o domínio através da violência física, que expandia a fronteira à
ferro e fogo, levando a dor e o sofrimento às populações nativas. No plano geopolítico, a espada
do Império seria encravada no seio da floresta principalmente através das fortalezas militares,
que começaram a ser construídas ainda no período colonial e se estenderam até o século XIX,
postas estrategicamente nas áreas de fronteira e na cabeceira dos principais rios que dariam
acesso à região.
As fortalezas seriam, um dos gumes da espada imperial, mas não apenas elas. Também
a Guarda Nacional se constituiu num importante instrumento de imposição da ordem do
Império nos rincões amazônicos, tendo desempenhado papel significativo na composição das
fronteiras, seja no plano geopolítico, seja no plano econômico, conforme pondera Santos
(2018). Todavia, esta temática requer uma análise mais apurada - tendo em vista a carência de
estudos sobre a atuação dos “soldados-cidadãos” na Província do Amazonas - o que não será
possível realizar no presente trabalho. Por enquanto, trataremos apenas de um dos gumes da
espada.
As fortalezas militares vão desempenhar um papel de destaque na conformação
geopolítica do território que hoje chamamos Brasil desde o período colonial. Se, de início, os
portugueses se dedicaram à construção de feitorias, logo perceberam que seria necessário
construir as fortalezas, com vistas em proteger o território que haviam tomado para si. Essas
estruturas militares, portanto, seriam o segundo passo deste longo processo de colonização,
mostrando-se extremamente necessárias, uma vez que dariam suporte para as vilas e povoações
que viriam em seguida (RESENDE, 2006, p. 256).
No caso específico da região amazônica, as fortalezas começaram a ser construídas após
a expulsão dos jesuítas, em 1759. Aqueles que antes eram aldeamentos foram transformados
em povoados ou vilas e receberam novos nomes. Agora, seria o Estado português o responsável
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pela ocupação dos territórios conquistados (RESENDE, 2006, p. 258). Objetivando defender o
território, os fortes seriam colocados estrategicamente ao longo de todo o Vale Amazônico, já
no período colonial, enquanto que no século XIX, ficariam dispostos nas regiões de fronteira
com os países limítrofes. Além da defesa, também dedicar-se-iam à ocupação territorial, uma
vez que constituiriam cleos formadores de vilas e cidades e dariam apoio tanto aos religiosos
missionários e comerciantes (COSTA, 2014, p. 109). Ao longo do século XVIII, o governo
português construiria o Forte de São José das Marabitanas/Cucui, São Gabriel da Cachoeira, o
Forte Real do Príncipe da Beira e outros, que iriam ser revitalizados no século XIX em razão
das novas necessidades do Império.
Quando nos debruçamos sobre a documentação produzida pelas três autoridades
supracitadas, constatamos haver apenas no Relatório de Tenreiro Aranha um tópico específico
acerca da existência das antigas fortalezas. Além disto, é o único que chama a atenção para a
necessidade de revitalização daquela infraestrutura bélica. Tenreiro Aranha chama a nossa
atenção para os locais que considerava adequados para a construção ou revitalização das
fortalezas. São os seguintes: a) Villa Nova, no rio Amazonas; b) Mataurá e Cachoeira de Santo
Antônio, no Rio Madeira; c) Tabatinga, no Rio Solimões; d) Rio Purus, onde não havia nenhum
forte; e) Marabitanas, no Rio Negro; f) São Gabriel, no Rio Negro e; g) o Joaquim, no Rio
Branco (ARANHA, 1852, p. 12).
Para além destas considerações, a autoridade informa acerca daquelas fortalezas que se
encontravam em funcionamento naquele momento. Sobre estes, informa: a) Forte de São José
do Rio Negro encontrava-se com suas muralhas arruinadas, além de estar situado num local
impróprio; b) Forte de São Joaquim, no Rio Branco construção de pequena importância,
defeituosa, o que requeria uma conservação, em razão de sua localização; c) Forte de São
Gabriel e Marabitanas construção em ruínas, sendo que o destacamento vivia no povoamento
próximo; e d) Forte de Tabatinga encontrava-se em “estado sofrível” (ARANHA, 1852, p.
31).
Diferentemente das fortalezas militares, as colônias agrícolas militares vão receber
alguma atenção também do presidente da Província do Grão-Pará, além de uma abordagem
mais minuciosa do presidente da Província do Amazonas. Sobre estas, Aguiar informa acerca
de um projeto de colônia militar agrícola, que seria fixada no Rio Branco, numa localidade
denominada Uariurú, a cerca de 10 léguas de distância o equivalente a aproximadamente 48
km - do antigo Forte de São Joaquim (AGUIAR, 1851b, p. 8). O projeto, todavia, não teria
saído do papel, uma vez que não haviam soldados disponíveis para povoar a referida colônia
(AGUIAR, 1851a, p. 63).
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João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, no seu Relatório, divaga longamente
acerca da necessidade e da importância destes estabelecimentos agrícolas para a Província.
Após citar o Auto de Instalação e o Relatório de Aguiar, Tenreiro Aranha indica os lugares que
ele considera adequados para a instalação das colônias militares, sempre nas margens dos rios.
Rio Inhamundá, Rio Madeira, Rio Solimões, Rio Japurá, Rio Içá, Rio Uaupés, Rio Negro e Rio
Branco seriam alguns dos que careciam de receber as colônias agrícolas militares, isto porque
em suas bacias existiriam significativos números de indígenas e aquelas regiões iriam receber
melhoramentos rurais, além do aumento do comércio e da comunicação com os países vizinhos
(ARANHA, 1852, p. 24). Talvez ponderando acerca das dificuldades de operacionalizar tão
ousado projeto, o presidente Aranha afirma ser de fundamental importância para a estratégia
geopolítica construir aquelas colônias em pelo menos três pontos estratégicos: a) Santo
Antônio, no Rio Madeira, com vistas em coibir a fuga de escravos do Amazonas e Grão-Pará
para o Mato Grosso e para a Bolívia, promover o “comércio lícito” e a comunicação entre as
províncias e fornecer apoio aos navegantes e comerciantes que trafegavam por aquele rio; b)
Entre os rios Içá e Japurá, para a proteção da fronteira naquela região e também para dar suporte
à exploração das “abundantes” matas da região, e; c) Rio Macuxi, próximo do Pirara, ambos
afluentes do Rio Branco, em razão das tensões de fronteira ali existentes (ARANHA, 1852, p.
25).
Assim como as fortalezas militares, também as colônias militares seriam instrumentos
políticos que visavam a ocupação territorial, naquilo que chamaríamos de “ocupação não
espontânea”. A principal diferença das colônias agrícolas militares para as civis estaria
necessariamente no aspecto “militar”, em que os “severos hábitos da disciplina militar”
estariam no cerne daquela organização e, dessa forma, evitaria que tais colônias fracassassem
(ARAÚJO, 2013, p. 69).
Note-se a necessidade de se instituir e manter um rígido padrão disciplinar, de natureza
policial e de controle social, para a segurança e a defesa do território, seja em regiões de
fronteira, seja em centros urbanos, através de sujeitos que estariam acostumados a obedecer às
ordens de seus superiores sem questionar. Ora, fazia-se necessário estabelecer e principalmente
manter as colônias agrícolas na Província do Amazonas, e o modelo militar parecia ser o mais
apropriado, na medida em que os “soldados agricultores” não abandonariam aqueles
estabelecimentos.
Teriam, portanto, como funções principais (a) a manutenção e vigilância do território
nacional e (b) a ocupação dos “Sertões do Brasil”, através do desenvolvimento da agricultura.
Em outras palavras, serviriam como importantes núcleos de povoação das regiões de fronteira
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e dos centros urbanos. Junto com as fortalezas militares, as colônias seriam do tipo “militar” –
se tomarmos a tipologia da frente de expansão (D’ANGELIS, 2016, p. 35) e, como um dos
três gumes da espada imperial, “assimilar” e/ou “pacificar” aquelas regiões da frente de
expansão amazônica onde estariam grande parte dos povos indígenas.
A Enxada
Instrumento constituído basicamente por uma lâmina de ferro semicircular e um cabo
de madeira, a Enxada remonta à longa duração e a um momento de difícil datação, mas que
pode ser caracterizada por uma mudança nas técnicas de cultivo. É um instrumento que serve
basicamente para capinar e/ou revolver a terra, preparar o solo para receber as sementes e
“limpar o mato”, remover as plantas que não são objeto de cultura agrícola. Em outras palavras,
a enxada representa a agricultura.
Tomada enquanto “domínio da natureza”, a agricultura seria, nas palavras das elites
políticas do Império, o oposto e principal combatente contra o extrativismo, considerada uma
forma não civilizada de exploração da natureza, ligada aos hábitos “primitivos” dos povos
indígenas amazônicos. A coleta, a caça e a pesca representaram (e ainda representam) parte
significativa das formas de vida na Amazônia, desde os tempos pré-históricos, o que não
significa que as populações indígenas não praticavam a agricultura. Pensemos na técnica da
coivara derrubada e queima da mata para o plantio e na cultura da mandioca, como exemplos
significativos da agricultura amazônica. Domesticada por volta de 9 mil anos atrás, na região
do Alto Rio Madeira, a mandioca foi cultivada, processada, consumida e disseminada por vastas
áreas, ao longo dos tempos (MOON, 2018). Também não podemos perder de vista o “saber-
fazer” indígena, que desenvolveu as técnicas de descascar, ralar, prensar, ferver e fermentar a
mandioca, processos estes que nos legaram um importante gênero agrícola, que está na base da
alimentação de grande parte da população brasileira e de outras partes do mundo, uma vez que
os portugueses se apropriaram daquela planta e exportaram para outras de suas colônias, a
exemplo daquelas situadas na África.
Mas se houve, como podemos constatar, uma importante agricultura na Amazônia nos
períodos anteriores, por que então os administradores e políticos do século XIX tanto se
empenharam em promover a agricultura na região? Para respondermos esta pergunta, havemos
de entender o que aqueles sujeitos estariam considerando como agricultura. Tendo discorrido
acerca da necessidade da promoção da agricultura na Amazônia no século XIX, chamamos a
atenção para o caráter civilizatório que esta prática representava naquele contexto
(NASCIMENTO, 2019, p. 24). Chegamos à conclusão de que a agricultura representaria o
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progresso, na medida em que inauguraria uma nova relação do homem com a natureza, e esta
relação estaria no cerne daquilo que almejavam as autoridades do Império: povoamento,
produção agrícola e educação para uma nova cultura do trabalho. Por outro lado, esta agricultura
deveria fornecer gêneros para além daquilo que chamam “subsistência”, produzindo-os,
armazenando-os e distribuindo-os nos moldes requeridos pelos circuitos econômicos praticados
no “Norte” (com a cana-de-açúcar) e no “Sul” (com o café).
Quando olhamos para o conjunto dos documentos analisados ao longo desse trabalho e
refletimos sobre o tema objeto deste tópico, somos remetidos àquilo que nos dizia Fausto
Augusto de Aguiar acerca da pobreza de braços na província do Amazonas (AGUIAR, 1851b,
p. 7), ou seja, a carência de trabalhadores. Feita esta admoestação, nada mais é dito pelo
presidente da Província do Grão-Pará. Em outro sentido, todavia, caminha o texto de João
Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha que, quando expõe as suas ideias acerca das
providências a serem tomadas para o desenvolvimento provincial, afirma:
(...) os resultados [das missões], nos seguintes annos, serão bastantes para que ellas por
si mesmo possão ser mantidas, e contribuir com braços para os serviços, e com
productos para as rendas do Estado chegarem ao triplo ou mais daquillo que se lhes
consignar; e sobre tudo se conseguirá a civilisaç de tantos milhares de incolas
desvalidos que podem vir a formar uma população correspondente á vastidaõ desta
Proviucia, e a mais propria para a cultura de suas terras productivas, e para a extracçaõ
de tudo quanto e taõ precioso tem em seu seio o maior dos rios do Universo (ARANHA,
1852, pp. 21-22).
Significativo notarmos a justificativa daquela autoridade para que o Governo destinasse
as verbas necessárias para a implantação das missões na província, acreditando que os
resultados de tais investimentos seriam compensados. Em outra passagem, informa:
Pode porém o progresso d'agricultura, e até o proveito da mineraçaõ aparecer de
prompto, se por ventura o Governo de Sua Magestade O Imperador se dignar attender
ás Propostas que sub-Meti á sua alta contemplaçaõ e munificencia era datas de 5 de
Abril corrente, ás quaes me reporto; pois que com meios sufficientes para a eathequese
e civilisaçaõ dos indios se haõi-de ter centenas de milhares de braços mais uteis e appli
acros a serviços ruraes; com os Presidios rnilitares, Colonos apTiPottes e artistas, nos
lugares que indiquei, todos esses ramos de prosperidade se hão de pôr em acçaõ
(ARANHA, 1852, pp. 21-22).
Como pudemos observar, a problemática da agricultura está intimamente ligada à
catequese e civilização dos indígenas. Numa província cujo número de nativos é significativo,
parecia lógico para os administradores aproveitar os “braços” daquelas populações para o
empreendimento agrícola, o que deveria ser feito através de uma educação para a agricultura
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que incluiria a modificação nas técnicas agrícolas e a introdução de novas culturas, a ser
promovida pelos missionários nos aldeamentos.
A vida nos aldeamentos, a catequese cristã e uma educação para o trabalho agrícola
deveriam, aos olhos das autoridades provinciais, ser capazes de transformar “hordas selvagens”
em agricultores. Ao substituir os arcos, as flechas, as cestas e as canoas pelas enxadas, os
“desbravadores” transformariam os indígenas também em agentes da frente de expansão, frente
esta que classificaríamos, nos dizeres de D’Angelis (2016, p. 35), como agrícola. Assim como
outros colonizadores, também os indígenas aldeados comporiam o conjunto daqueles
indivíduos que se projetavam sobre uma Amazônia ignota, ainda intocada pela Modernidade,
onde tribos antropófagas, feras selvagens, animais peçonhentos, árvores gigantes e rios
caudalosos guardavam os segredos de um mundo desconhecido.
Considerações finais
O século XIX é um período significativo para o Brasil, no qual mudanças importantes
deram uma nova direção às suas fronteiras, seja no campo da política, da economia, da cultura
e da sociedade. Se nas primeiras décadas, as forças políticas e sociais se lançaram à
independência, após séculos de domínio colonial, coube as estas mesmas forças forjar o país
que almejavam. nas décadas finais, aquelas mesmas forças provocariam outras mudanças
importantes, que levariam o Brasil a fechar o século desejoso de implantar medidas que o
levassem efetivamente à Modernidade. Higienismo, urbanização, educação formal são apenas
alguns dos elementos que ainda não estavam presentes em grande parte do território nacional e
que, portanto, careciam de atenção das autoridades. As fronteiras físicas e simbólicas entre o
tradicional e o moderno ainda estavam abertas.
Na Província do Amazonas, a ação missionária, as campanhas militares e a agricultura
a Cruz, a Espada e a Enxada compuseram a frente de expansão da fronteira nacional. Se em
algumas partes do mundo, a Modernidade era uma realidade de longa data, nos rincões
amazônicos e em outras partes do Império ainda prevaleciam formas tradicionais de vida,
ao passo que o Governo Imperial, através do seu projeto geopolítico, tentava transformar e
modernizar. Os Presidentes da Província do Amazonas, enquanto representantes do poder
central, teriam que lidar não apenas com as limitações financeiras dos cofres provinciais ou
aquelas que a natureza amazônida impunha, mas também com as forças políticas provinciais e
locais que, em alguns momentos, se impuseram. As fontes analisadas neste trabalho não nos
permitem vislumbrar de modo claro a natureza e extensão das relações entre aquelas
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autoridades e as “notabilidades de aldeia” amazonenses. O que podemos afirmar, de certeza, é
que o extrativismo da borracha se impôs ao projeto agrícola almejado pelos “delegados do chefe
da nação”, num momento em que as elites provinciais começavam a dedicar o seu tempo e seus
recursos para a extração do látex, tendo saído do século XIX como os “Barões da Borracha”.
No oitocentos período em que tentavam transformar o Brasil num Estado Nacional
Moderno para a Amazônia, a solução possível pensada por algumas autoridades provinciais
seria o desenvolvimento da agricultura. Uma região com terras em abundância, às quais
acreditava-se serem bastante férteis, precisava ser cultivada, povoada, civilizada. Além disto,
havia um contingente populacional que, sendo “civilizado” através de uma educação para o
trabalho, seria capaz de transformar toda a região num “celeiro” nacional, capaz de alimentar
as bocas famintas de toda a população amazônida e, quiçá, do Brasil. Os padres, os militares e
os indígenas agricultores simbolizariam, portanto, o triunfo da Modernidade sobre a “Grande
Floresta”. Este projeto mostrar-se-ia difícil de ser realizado, sendo que até hoje existem partes
da Amazônia em que a Modernidade ainda não chegou, onde as relações sociais, políticas,
econômicas e culturais não chegam nem perto do que viria a ser o Mundo Moderno Ocidental.
Dito de outra forma, a Amazônia ainda é uma fronteira em aberto.
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Recebido em 28/02/2020.
Aceito em 10/04/2020.