Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê Fronteiras, migrões e identidades nos mundos pré-modernos. N 35, 2020/01
ISSN 2238-9717
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DOI: https://doi.org/10.36661/2238-9717.2020n35.11218
Modelando Condutas: uma resenha da obra sobre os poderes nas escolas católicas
masculinas no Brasil
Isabel Schapuis Wendling
1
BOSCHILIA, Roseli. Modelando Condutas: Educação católica em escolas masculinas.
Curitiba: SAMP, 2018.
O livro Modelando Condutas: educação católica em escolas masculinas de Roseli
Boschilia, publicada pelo museu Paranaense em 2018, é resultado de sua tese de
doutoramento, defendida em 2002, na qual a autora analisa os modelos educacionais
propostos por instituições católicas masculinas do Paraná, para perceber as formas e
estratégias por elas utilizadas para educar jovens e crianças, conforme a tradição e moral
cristã. A autora doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e também
professora desta mesma universidade, tem focado suas pesquisas nos temas imigração,
memória, autobiografia e relações de gênero.
Na obra composta por quatro capítulos, mais introdução e reflexões finais, a autora
coloca em debate “os mecanismos utilizados pela Congregação Marista para a construção de
um dispositivo organizacional, social e simbólico que possibilitasse a formação de uma elite
modelada por um sistema único de pensamento” (BOSCHILIA, 2018, p.272). Apoiando-se
em uma ampla lista de autores, tais como Michel Foucault, Roger Chartier, Eric Hobsbawm,
Pierre Bourdieu, Norbert Elias, etc. Roseli Boschilia analisa por meio de dispositivos de
memória de ex-alunos do colégio marista Santa Maria, localizado no Paraná no período de
1920 a 1960. Boschilia analisa ainda as relações do colégio com a política e sociedade e
propõe perceber as formas de controle e poder utilizados pela instituição católica para
modelar as condutas dos alunos, e assim efetivar o projeto pedagógico religioso, além de
conciliar as inovações da modernidade, com os valores tradicionais Católicos ultramontanos.
Para destacar tais questões, o livro possui duas apresentações, a primeira escrita por Etelvina
Trindade e a segunda pela própria Boschilia na qual apresenta o processo de produção da
pesquisa, motivações e apoio bibliográfico.
A autora analisou para a obra uma ampla gama de fontes, que permitiu adentrar nas
diferentes facetas: desde entrevistas com ex-alunos até um acervo documental guardado por
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Mestranda em História na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail:
isabel.wendling@live.com
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estes. Além disso, a autora analisou o Guia escolar (Guide des École a L’usage des petits
frères de Marie).
No primeiro capítulo Igreja, Educação e Juventude, antes de adentrar no colégio Santa
Maria, a autora faz uma breve genealogia da Igreja Católica e da educação no Brasil.
Boschilia anota a preocupação da sociedade com as crianças e os jovens na chegada da
modernidade e, como a Igreja Católica percebe a possibilidade de manter as práticas
religiosas tradicionais através da aproximação com os jovens por meio da educação. Para
tanto, são criadas as congregações religiosas masculinas e femininas, normalmente
direcionadas às populações mais pobres da sociedade. Contudo, até o século XIX, a educação
no Brasil ainda representada em boa parte pelas instituições Maristas, não alcançava toda a
população brasileira. Logo, a educação tornava-se um meio de diferenciação entre as classes
com renda médias e altas para com as mais famílias de renda baixa.
Enquanto no restante do Brasil, as instituições maristas perdem força para instituições
privadas leigas, nas décadas de 1940 e 1950, em Curitiba e boa parte do sul do Brasil, elas se
fortalecem mais. Segundo Boschilia esse fato ocorre devido a forte presença de imigrantes
europeus cristãos nessa região, além da estrutura precária do estado em relação à educação
secundária nesse período.
No segundo capítulo Modelando Condutas, Boschilia aborda a estrutura escolar do
colégio marista, do Instituto Santa Maria, instalado no Centro de Curitiba PR. Uma escola
acessada por alunos, na maioria, descendentes de imigrantes europeus, com certo privilégio
econômico. Em 1925, este instituto passou a oferecer os cursos Primário, Intermediário e
Ginasial. Com apoio do Estado e de boa parte da sociedade Curitibana, o Instituto Santa
Maria, teve seu estabelecimento regulamentado permanentemente em 1935. Nesse período,
houve um fortalecimento do modelo de militarização proposto pelo governo Vargas, como
forma de reconhecimento e fortalecimento de sua estrutura na sociedade, todavia, o Instituto
seguia o Guide des École a L’usage des petits frères de Marie (BOSCHILIA, 2018, p.113),
um guia nos moldes tradicionais ultramontanos que buscava a promoção de bons cristãos e
cidadãos virtuosos (Op. cit., p. 116).
Utilizando de obras de Foucault e Thompson, Boschilia nota que modelos de conduta
utilizados pelas instituições católicas para educar os meninos se embasavam no conceito de
disciplina e nas tecnologias de poder, para moldar as condutas individuais. A vigilância
constante no cuidado do corpo, controle e usos precisos do tempo do aluno, além da utilização
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das hierarquias entre os estudantes, foram algumas estratégias utilizadas pela escola para
educar indivíduos virtuosos, dentro da moral e tradição cristã.
Quanto à formação intelectual, Boschilia afirma que a educação seguida a partir do Guia
buscava a percepção, a imaginação e a memória, estimuladas pelos professores que traziam
diversos conteúdos que se relacionavam constantemente com a vida externa e a escola. A
religiosidade era abordada em todas as aulas como atividade comum, além de haver os cultos
e missa, atividades obrigatórias dos estudantes. Boschilia percebe que o cuidado com o corpo
e a alma também estava vinculado à religiosidade, a exemplo do ditado “Deus vê tudo” que
era utilizado como uma das formas de controle. O Instituto Santa Maria prezava também por
atividades que ensinavam o amor à pátria e a civilidade, através do batalhão escolar,
atividades estas estimuladas pelo governo Vargas; por meio desse batalhão escolar eram
realizados mostras e desfiles cívicos, demonstrando as práticas de ordem e disciplina
presentes no colégio católico.
No terceiro capítulo, Construindo identidades, Boschilia aborda a estrutura escolar e os
modos de organização dos estudantes nas atividades cotidianas como forma de criar uma
identidade institucional e buscar o reconhecimento dos alunos na sociedade. A primeira
característica que difere as escolas Maristas para com as escolas públicas, refere-se ao espaço
onde são construídas as escolas católicas, normalmente em regiões retiradas dos centros das
cidades, com muitas áreas verdes e envoltos pelo silêncio, pois ali seria um espaço de maior
aproximação com Deus e longe dos perigos da modernidade. Eram nesses espaços onde se
incentivava a sociabilidade, com a finalidade de criar relações entre os estudantes. Ao criar
uma identidade própria, distinguiam-se os alunos destas escolas, dos alunos de escolas
públicas, esses considerados como tendo uma educação religiosa precária, portanto jovens
com os quais os das escolas Maristas não deveriam se relacionar. O Instituo Santa Maria,
entretanto, conseguiu uma localização diferencial, localizada no centro de Curitiba, mas ainda
contava com amplo espaço de campo e arborização, o que atraia maior público por estar perto
da população e possuir uma boa estrutura de estudos e socialização.
Os espaços de sociabilidade mais reconhecidos pelo Instituto Santa Maria eram: futebol,
jornal escolar, cinema e atividades religiosas. O Futebol, atividade iniciada pelos alunos, logo
tomou forma, com treinamentos adequados e mais tarde, com o fim do batalhão escolar,
tornou-se aula complementar de educação física. A criação de jornais institucionais,
formulados e organizados por alunos também teve grande importância, com várias edições e
repercussão, inclusive da comunidade externa. Boschilia afirma que, através da leitura desses
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jornais, é possível analisar o comportamento dos alunos na escola, tanto durante as aulas
como em atividades externas ao colégio (BOSCHILIA, 2018, p.192). O Serviço de alto-
falantes também foi utilizado para animar os recreios e organizar eventos, como festas.
Uma das atividades muito frequentadas pelos estudantes e comunidade próxima era o
cinema Santa Maria, que iniciou seu funcionamento em 1950, como forma de utilizar a
modernidade em prol dos objetivos de uma instituição católica. As sessões eram organizadas
e adequadas pelo colégio que, com participação dos alunos, selecionavam e adequavam os
filmes à moral cristã. Em relação aos círculos religiosos, incentivados pela escola e pelo Guia
escolar, era formado apenas por alguns alunos de elite selecionados por processos de
aprovação. No meio desses grupos se mantinha a tradição religiosa, a pureza e a fé. As
atividades comuns ao grupo eram de catecismo, trabalhos sociais e recreativos. Por fim um
dos grupos de identificação com certa importância foi a Associação dos Antigos Alunos do
colégio Santa Maria, responsável em reunir os ex-alunos, a grande maioria de uma elite do
colégio, que mantinham as tradições e religiosidade.
No capítulo Construindo Memórias, Boschilia busca entender como os ex-alunos do
colégio Santa Maria reveem ou reconstroem as experiências vividas no colégio, focando tanto
na memória individual quanto na coletiva. Neste sentido, trabalha com o conceito de geração,
não apenas cronologicamente, mas também como forma de unir experiências. Revendo o
conceito de memória, Boschilia passa desde Aristóteles, para se apoiar em Michael Pollak,
Michel de Certeau e Paul Ricoeur, além dos nomes mais recentes como Jacques Le Goff e
Pierre Nora, para entender o trabalho do historiador com a memória. Relacionando a memória
com a identidade escolar, Boschilia busca nos estudantes do colégio Santa Maria rever a
memória construída por esses personagens. A autora trabalha, por meio das narrativas da
memória, sobre como lembravam os alunos da escola, nota que conforme o grupo em que se
encontrava o entrevistado e o período em que esteve no colégio, estes relembram a escola e as
motivações que os levaram a ela, de forma diferente.
Para a identificação e seleção desses estudantes, Boschilia separa em dois grupos
distintos devido às fases e processos diferenciados que o Santa Maria passou. O primeiro unia
desde a formação do colégio até 1942, e o segundo grupo a partir de 1943 que se inicia com
os projetos vindos pelo Estado Novo e final do governo Vargas. Boschilia afirma que, por
meio das memórias e noções de pertencimento, foi possível perceber a eficácia das redes
estabelecidas entre os antigos alunos do colégio, pois muitos alunos remeteram aos encontros
de antigos colegas e amigos de infância vindos do colégio (BOSCHILIA, 2018, p.269). Entre
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os dois grupos organizados pela autora para a realização de entrevistas, ela nota uma evidente
diferença entre a construção da memória, mas observa que ambos constroem suas memórias
positivas e negativas a partir de momentos importantes ou excepcionais à vida cotidiana.
Assim, “Enquanto os mais jovens deram asas à imaginação, lembrando-se de acontecimentos,
personagens e lugares ligados à vida escolar [...] os mais velhos, aos falarem sobre a escola,
procuram avaliar a própria experiência de vida” (BOSCHILIA, 2018, p.271).
Essa pesquisa de Boschilia se apresenta muito atenta a todas as relações e formas de
poder estabelecidas no colégio Santa Maria, o que nos permite visualizar de forma muito clara
como era a vida de quem estudava nesse colégio e também permite estender para colégios de
estrutura similar que se espalharam pelo Brasil no século XX. Embora pouco se atente ao
currículo dos professores do colégio Santa Maria, a autora mostra um cuidado excelente e
atencioso com as fontes que utiliza. Além disso, as relações de poder expostas nessa pesquisa
evidenciam (ainda mais por meio das entrevistas de ex-alunos no último capítulo) como essa
instituição forjou por meio de micro poderes as maneiras e estilos de vida de seus alunos,
perpetuando nos homens de classe média alta os costumes tradicionais religiosos e sociais. A
autora também nos lembra de como os espaços de sociabilidade tiveram grande importância
para a formação desses sujeitos e a identificação e defesa do colégio.
Agradecimento
Agradeço a CAPES pela bolsa.
Recebido em 22/12/2019.
Aceito em 02/04/2020.